Tivemos ocasião de comentar, em artigos recentes, as limitações da postura de determinados setores da intelectualidade de esquerda e da mídia onde esta se expressa de interpretar a crise do PT e do governo Lulla em termos de um “golpe das elites” contra um “governo popular”. Essas limitações decorrem da capitulação dessa intelectualidade à opção política reformista. Essa opção, através do clamoroso fracasso do governo Lulla, demonstrou cabalmente sua inviabilidade.
O desafio de reconstruir o projeto de esquerda no Brasil para além do reformismo historicamente inviabilizado, em direção a mudanças históricas qualitativas, implica em certos movimentos preliminares que dependem de opções pessoais certamente difíceis. Impõem-se escolhas dolorosas, mudanças radicais de trajetória, revisões teóricas, balanços e autocríticas. Tais movimentos são bastante penosos, especialmente para uma camada social como a dos intelectuais, que constrói suas carreiras e suas vidas com base em escolhas muito precisas e identificações às vezes demasiado rígidas. Frente a esse trabalho, significativas parcelas da esquerda optam pelo silêncio. É certo que é preciso respeitar o ritmo de cada um. As rupturas se dão em diferentes velocidades, intensidades e profundidades. Mas a realidade não esperará por mais muito tempo o alçar vôo da coruja de Minerva.
Para manter a metáfora zoológica, voltemos as lentes para o lado oposto do espectro político, onde as cobras se assanham em seu ninho. Do ponto de vista da direita o fracasso do PT serve como prova do fracasso da esquerda em geral. Os mais apressados, como Jorge Bornhausen, comemoram o fato de que vão ficar “livres dessa raça por uns trinta anos”. Esse raciocínio é um exemplo típico da cegueira social daqueles que consideram que o “esquerdismo” que se manifesta vez por outra na história é uma mera questão de “opção religiosa messiânica” de alguns grupos de “idealistas românticos”.
Os que pensam assim não levam consideração que os programas da esquerda surgem das contradições materiais do processo de reprodução social, ou seja, da evolução da própria luta de classes. Tão logo a crise das formas capitalistas de reprodução social precipitar um novo ascenso das lutas populares no Brasil, a raça de que Bornhausen se imagina livre baterá novamente às portas do poder. Só resta trabalhar para que as organizações de então não repitam os erros e a trajetória de capitulação do PT.
Essa hipótese, é claro, não passa pela cabeça de Bornhausen e seus pares. De seu ponto de vista, o momento atual é de euforia descontrolada, a ponto de se permitirem proferir acintes daquele calibre. O fato de que o senador pefelista tenha pronunciado uma frase desse tipo não é nada surpreendente considerando-se a extração de classe de onde ele se origina, ou seja, a camada dos políticos e banqueiros, que são os mais bem acabados representantes da nossa elite predatória.
O senador foi apenas um pouco mais sincero ou indiscreto do que costumam ser os meios de comunicação que lhe servem de porta-vozes no Brasil. Juntamente com o senador, a grande imprensa também festeja a auto-destruição do PT. Mais do que o fim de um ParTido, festejam o “fim das ideologias”, o “fim das utopias”, o “fim da história”, a “morte do socialismo”, etc. Depois de quinze anos, caiu o Muro de Berlim no Brasil. Ao tratar o fim do PT como a tão desejada “prova” da suposta “inviabilidade do socialismo” no país a grande imprensa o faz como algo a ser comemorado. E ao comemorar assim precipitadamente o suposto “fim da esquerda” ela revela inadvertidamente o seu ódio de classe contra os setores subalternos da sociedade. Imaginam que junto com o PT estão sepultando a luta de classes no Brasil. Como se o relógio da História não fosse mais girar.
É assim que a grande imprensa interpreta e festeja a implosão do PT. O seu alvo não é o PT ou Lulla, que de resto já caíram no repúdio de amplos setores populares. O alvo é a própria idéia de organização das lutas sociais. As presas dos tubarões da mídia gotejam sangue toda vez que se abre a oportunidade para atacar as causas populares.
O açodamento com que a direita descarta o conjunto do “esquerdismo” por meio da estigmatização do PT se manifesta no uso desavergonhado de um anticomunismo reciclado. Descarta-se o PT com o jargão da Guerra Fria. Como se Lulla e seus barbudos fossem a encarnação do “perigo comunista” no Brasil. Ataca-se Zé Dirceu como se fosse o líder de um “partido bolchevique”. Toma-se o comportamento do PT como exemplo do “centralismo leninista”. Na falta do ouro de Moscou, “Veja” saca o ouro de Havana como evidência do “perigo vermelho” que nos ameaça. Nada pode ser mais sintomático do avançado estágio de putrefação desse estoque de idéias do que esse pastiche de teoria da conspiração excretado pela semanal da Abril.
Brotou dessa mesma publicação o mais sério candidato a piada do século na política brasileira. Uma “reportagem” inteiramente construída com base em insinuações, conjecturas, ilações e fotomontagens tendenciosas de fulano de tal que ouviu dizer que beltrano que já está morto soube que num certo avião, em certas caixas de bebida (o cachaceiro decerto também aprecia o rum caribenho), um certo dinheiro, um certo agente de Fidel, uma foto do Delúbio, etc. “Os caras do PT treinaram para a luta armada em Cuba, portanto só pode ser verdade”.
Ao que parece, porém, as sombrias conexões da nomenklatura petista com o Eixo do Mal, tão prontamente denunciadas por nossos infatigáveis “combatentes da liberdade” ainda não tiram o sono do Grande Irmão do Norte, visto que na ótica de Bush, “Lula é essencial para consolidar a democracia na América” (sic). A CIA precisa urgentemente mandar seu pessoal fazer estágio na intimorata reportagem de Veja, para o bem da segurança hemisférica.
Piadas à parte, Marx dizia que as personificações do capital “podem não saber muito bem o que dizem fora de seu negócio, mas sabem muito bem o que fazem dentro dele”. Bush sabe o que acontece no seu quintal e não está nem um pouco preocupado com as “conexões bolcheviques” de Lulla, pois a coleira dos acordos internacionais mantém o barbudo firmemente atado a Wall Street.
Descontada a submissão de Lulla, o perigo envolvido nas manobras diversionistas dos patrióticos “combatentes da liberdade” no bravo jornalismo brasileiro é bastante sério. Veja descobriu a prática da auto-congratulação sistemática (utilizada também pela Globo no período de sua consolidação) como técnica de construção de imagem. Conseguiu definir-se como “indispensável” e servir como pauta de discussão (“você viu o que saiu na ‘Veja’?”) das pessoas “esclarecidas” em nossa sociedade barbarizada por uma abissal divisão entre as classes. No âmbito daqueles que constituem “a sociedade”, Veja destila o ódio ao restante das classes subalternas e a pregação de saídas individuais para a situação pessoal e social de seus leitores.
Tudo contra o coletivo e a convivência, tudo a favor da competição e do egoísmo. Sarcasmo, ironia, arrogância, falsa superioridade dos defensores do status quo escorados na prevalência atual do neoliberalismo (ideologia do capitalismo em sua fase de crise terminal) sobre o senso comum contra todos os elementos que apontem para uma tentativa de reconstrução de um mundo humano.
Voltemos ao artigo. O equívoco histórico gritante embutido nessa retomada do jargão da Guerra Fria deverá ser objeto de um comentário à parte. O setor dirigente do PT não tem nada a ver com o leninismo, o bolchevismo, ou o centralismo, a não ser talvez como seu adversário, como deverá ser verificado no momento pertinente. Por enquanto, cumpre aprofundar a caracterização das determinações sociais de onde irrompe o amargo fel destilado por esses militantes “combatentes da liberdade”.
Livre da necessidade de debater “civilizadamente” as questões propostas pela esquerda, a grande imprensa pode sair do armário, soltar a franga e assumir despudoradamente sua identidade direitista. Enquanto o PT descobre os dissabores de ser vidraça, a grande imprensa se esbalda no prazer de ser pedra. Tudo serve de pretexto para atacar o governo Lulla. Da febre aftosa e da gripe do frango até a seca da Amazônia.
Todas as mazelas acumuladas nos últimos 500 anos de história do Brasil, ou melhor, acumuladas desde o início dos tempos, quiçá desde antes ainda, passam a ser culpa de Lulla. Nem com toda sua incompetência Lulla e equipe seriam capazes de ter a responsabilidade por tudo de errado de que o acusam. Mas claro, isso não tem a menor importância para seus acusadores. Com o mais desavergonhado oportunismo, reduzem unilateralmente o debate a um rasteiro maniqueísmo: se vier de Lulla é “mau”, se é contra Lulla é “bom” (sendo “bom” e “mau” para os interesses da elite carcomida).
A grande imprensa imagina que assim ficará livre da obrigação que lhe é penosa de ter que levar a sério e debater os temas tradicionalmente propostos pela esquerda. O esforço de ceder páginas e gastar argumentação para discutir reivindicações do MST ou de outros movimentos sociais, em nome da propalada “imparcialidade”, passa a ser considerado desnecessário. Essa plataforma foi jogada na lata de lixo da história. Tudo o que resta agora é a “pura racionalidade do mercado”.
De agora em diante entraremos no milênio neoliberal, no qual os administradores tecnocratas vão fazer seu trabalho em paz, ou seja, cortar verbas sociais, sem ser incomodados pelas reclamações de políticos “populistas” com suas propostas “irresponsáveis”, pois que ao final estará provado que tais políticos se revelam nada menos do que corruptos. A globalização não nos permite o luxo de cometer irresponsabilidades nacionalistas. Os mercados anseiam por gerentes de perfil “equilibrado”. O candidato dos sonhos de FHC para sua sucessão era Pedro Malan. Se o sapo barbudo ficar definitivamente inviabilizado, o PT lançará Palocci. Ou quem sabe, Delfim Neto.
Malan, Palocci ou Delfim, não há diferença, visto que o conteúdo é o mesmo. A grande imprensa sabe disso. Ao mesmo tempo em que destrói a política, diviniza a economia. Na economia, ao contrário da política, não há lugar para o povo que essa imprensa tanto odeia. Essa imprensa é a guarda pretoriana dos interesses do nosso patriciado neocolonial. Os profissionais desses veículos, na sua posição de burgueses educados, graduados, cultivados em línguas, refletem não só por profissão e dever de ofício mas por condição de classe e ambiente social a alienação com relação às suas raízes. Por meio de sua formação no exterior e contatos intelectuais permanentes com a cosmópole globalizada, imaginam-se parte da elite mundial neoliberal e desvinculam-se da nacionalidade à qual pertencem.
Odeiam o país no qual nasceram e o povo com o qual são aparentados. Odeiam os negros, os pobres, os analfabetos, odeiam nossa cultura popular autêntica. Fazem de tudo para se desidentificar desse conjunto de coisas. Odeiam os retirantes da seca, odeiam os vendedores ambulantes, odeiam os favelados, odeiam as pixações nos muros, odeiam tudo que traga à memória o fato inescapável de que vivem num país miserável e não nos Estados Unidos. Ao invés de odiar a miséria, odeiam os miseráveis.
Uma das maneiras de se desidentificar daquilo que odeiam é a crítica permanente ao projeto da ideologia que tenta resgatar a massa pauperizada e barbarizada de sua condição abjeta. Destruir o PT é uma maneira que encontram de estar em paz com suas consciências vendidas, pois com isso imaginam estar provando a “inviabilidade” da esquerda e do socialismo no Brasil. Querem encontrar no fracasso do PT a certeza de que optaram pelo lado certo da luta, o lado vencedor.
A massa pauperizada e barbarizada assiste impassível ao duelo, suspeitando em suas entranhas que continuará a sair perdedora em qualquer cenário que resultar do desdobramento do duelo. Direita e esquerda trocam farpas na imprensa, uma denunciando o “ouro de Havana”, outra o “golpe das elites”. Nesse fogo cruzado, quem sucumbe é a possibilidade de entendimento dos processos em andamento. No samba do crioulo doido da direita conspiratória contra a esquerda auto-iludida, o inimigo do meu inimigo passa a ser automaticamente meu amigo. Desaparece o espaço para posições diferenciadas.
Quem pretende se colocar à esquerda da esquerda “oficial” é imediatamente convocado a realinhar-se pelos patrulheiros da fidelidade plebeística a qualquer custo. A esquerda de Marilene Felinto, a esquerda do superávit primário, que reivindica ser a única esquerda verdadeira, sem aspas, exige stalinisticamente da esquerda “ressentida e mascarada” (para a qual ela usa aspas) que cerre fileiras na defesa dos bastiões eleitorais que a primeira esquerda açambarca (e dos correspondentes cargos e benesses estatais e sindicais). E que venha “disputar o governo por dentro”, se quiser.
Os interesses táticos imediatos subvertem qualquer consideração estratégica de longo prazo. Tudo o que interessa são as declarações de impacto instantâneo. O importante é ver o circo pegar fogo. Desliza-se na superfície exterior dos discursos. Substitui-se a profundidade pela eloqüência, a precisão pela retórica, a dialética pelo sofisma. Os discursos são apenas frases ao vento. Desconhecem-se as conexões entre tais discursos e os programas que os sustentam, entre os programas e os setores e classes sociais determinados que os reivindicam.
Quem denuncia o “ouro de Havana” é a elite quatrocentona paulistana, anti-nacional por nascença e anticomunista-fora-de-época por absoluta falta de criatividade. Quem denuncia o “golpe das elites” é a burguesia sindical petista encastelada na direção dos organismos do movimento de massas que subitamente redescobre a necessidade de apelar à classe trabalhadora, para se manter no topo da burocracia do Estado e seguir negociando em posição privilegiada os termos da vassalagem à agiotagem globalizada. Enquanto travam sua disputa midiática quixotesca e materialmente estéril, ambos os setores impedem o amadurecimento da consciência política do conjunto da sociedade.
A estratégia da sangria gradual do petismo, que nunca desemboca num golpe de misericórdia, propicia à elite o desdobramento da luta em duas frentes: a retomada eleitoral do Estado pelos partidos de direita em 2006 e a doutrinação ideológica da sociedade pelo discurso da “morte da esquerda”. Essa segunda tarefa é desempenhada pelos setores mais conseqüentes e articulados da intelectualidade de direita, que enxerga a oportunidade histórica de assestar um golpe devastador num adversário ideológico politicamente prostrado. Antes que a esquerda se reorganize, a direita precisa bloquear qualquer possibilidade de mobilização envenenando as massas com a idéia da morte das lutas sociais. Que o PT se preste a esse papel de contra-exemplo pedagógico da desmoralização da esquerda somente serve para atestar a profundidade da sua decomposição.
Entretanto, a simples realidade da brutal fragilidade do PT não é garantia por si só da viabilidade da dupla estratégia da direita. O sistema como um todo está debilitado. Nem está garantida a vitória eleitoral da direita de escol em 2006, nem o sucesso da conversão ideológica. A direita também não tem alternativa pela positiva, apenas contundência negativa conjuntural. Não é porque o PT fracassou que a direita passa automaticamente a ter um projeto. Pelo contrário, o PT foi o tampão que o sistema encontrou para impedir o escoamento da governabilidade diluída pelo já fracassado programa da direita. No presente momento, as duas alternativas estão igualmente inviabilizadas.
Se a esquerda vai mal das pernas com a tese pedestre do “golpe das elites”, a direita não fica muito atrás em incompetência com a inacreditável denúncia do “ouro de Havana”. Temos aí a evidência derradeira do poço sem fundo em que mergulhamos, da perda de qualquer medida do ridículo. É trágico, mas também não deixa de ser risível
Daniel M. Delfino
04/09/2005
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