INTRODUÇÃO (*)
A História está cheia de derrotas que ensinam e de vitórias que obscurecem. Em particular a história do socialismo está marcada por contradições e incompreensão. A Revolução de 1917 deu ao mundo a primeira demonstração de que a classe operária poderia tomar o poder e se manter nele. Trata-se de uma grande vitória histórica. Entretanto, as circunstâncias nas quais os socialistas tomaram o poder transformaram o projeto emancipatório original de uma ditadura do proletariado em uma “ditadura sobre o proletariado”.
E o século XX foi perdido para o socialismo por conta da incapacidade do movimento socialista internacional de se articular em um modelo diferente daquele da “ditadura sobre o proletariado” de Stalin. Isso aconteceu tanto por força da pressão inquisitorial das seções da Internacional stalinista em cada país (os vários PCs, Partidos Comunistas, como o PcdoB no Brasil, etc.), quanto por conta da repressão do fascismo, do imperialismo, do macartysmo, das ditaduras, etc.; e ainda, por causa da debilidade organizativa demonstrada pelos marxistas dissidentes, acadêmicos e simpatizantes.
O entendimento das distorções do processo iniciado em 1917 constitui um tema fundamental para a história futura do socialismo, do ponto de vista de que a História, ao invés de ter terminado, como queria Fukuyama, ainda nem sequer começou. Entretanto, o tema a ser tratado aqui diz respeito não aos desvios do processo revolucionário de 1917, mas aos seus acertos. Os acertos a serem destacados começam com o aprendizado realizado pelos bolcheviques no “ensaio geral da revolução” (Lênin). A Revolução de 1905 foi a experiência prévia que deu aos socialistas russos o conhecimento de como se comportar numa situação de ruptura do regime, respondendo às demandas populares, organizando a luta e confrontado o poder constituído.
A grande inovação histórica de 1905 foi o “soviet”, o conselho de representantes de fábrica, criado na capital russa no decurso da greve geral de outubro daquele ano, transformado em foco organizativo da luta pelo poder. Essa expressão autêntica da democracia direta, por força de sua extrema originalidade e novidade, foi mais tarde transformada no próprio sobrenome do novo Estado surgido com a Revolução de 1917. Entretanto, ironicamente, quando a União “Soviética” passou a usar esse sobrenome, já não tinha mais nada de soviético. O todo-poderoso Grande Irmão Stalin já havia substituído o “todo poder aos soviets” de Lênin.
Para entender como essa formidável criação brotou do solo virgem da História é preciso percorrer a história da Revolução de 1905, destacando: 1º.) seu cenário e antecedentes, 2º.) os debates político-organizativos entre os revolucionários, 3º.) o recrudescimento das lutas sociais, 4º.) o conjunto dos acontecimentos decisivos do processo, 5º.) o breve período de vigência no qual o soviet se transformou em laboratório de aprendizado teórico-político; e finalmente 6º.) tentar de alguma maneira situar a importância das conquistas ali realizadas no contexto radicalmente alterado prevalecente por ocasião do seu aniversário de 100 anos.
1.1 – ANTECEDENTES
A Revolução de 1905 não foi um acontecimento avulso no turbulento início do século XX. As contradições do capitalismo precipitavam explosões e confrontos nos mais variados cenários, deflagrando revoluções, guerras civis, guerras de libertação, guerras interimperialistas, por todos os continentes. O conluio entre o Estado burguês e o capital monopolista deu um salto de qualidade no período, no que se refere à tarefa de deslocar as contradições do sistema para o cenário global, mormente pela força das armas, multiplicando as confrontações.
Precisamente, a união entre capital monopolista e Estado é o que se chama de imperialismo. O Estado burguês, por meio de sua instituição fundamental, as Forças Armadas, trabalhando diretamente a soldo do capital monopolista, passa a esquadrinhar o mundo em busca de mercados. O homem branco assume o pesado “fardo” de levar a “civilização” às terras “bárbaras” da Ásia e da África. Na América Latina, vigora o “big stick”, a diplomacia das canhoneiras por meio da qual o Tio Sam se impõe sobre as republiquetas de banana da região.
Evidentemente, nada disso se passa sem provocar confrontações dos mais diversos tipos. São exemplos dessas confrontações a Guerra Hispano-americana (1898), a Guerra Sino-japonesa (1894-95), a Guerra dos Bôeres (1899-03), a Guerra dos Boxers (1900-01), a Revolução Mexicana (1910), a Guerra entre Itália e Turquia (1911-12), a Revolução Chinesa (1911), as Guerras Balcânicas (1912-13), entre outras. Dentre essas confrontações, tivemos também a Guerra Russo-japonesa de 1904-05. Essa guerra, desastrosa para o Império russo, foi um dos fatores decisivos que precipitaram a Revolução em 1905.
Entretanto, mais do que um simples acidente de percurso na marcha do imperialismo global, a Revolução de 1905 desponta como um marco na luta pelas transformações sociais mais abrangentes. Não se tratava apenas de uma tentativa de libertação nacional, de reformas dentro dos termos de referência do Estado burguês, ou de simples “modernização” nacional; mas de luta pelo socialismo. Nesse sentido, a Revolução de 1905 representa um passo adiante numa longa trajetória, retomando a luta ensaiada pelos franceses na Comuna de Paris em 1871 e antecipando a tomada definitiva do poder que se daria em 1917.
O movimento socialista já tinha atrás de si uma história de décadas de luta, que podia ser datada pelo menos desde a Primavera dos Povos de 1848, ano de publicação do célebre “Manifesto Comunista” de Marx e Engels. O movimento já tinha passado pela experiência da Associação Internacional dos Trabalhadores (1a. Internacional, de 1864-1876), e estava agora sob responsabilidade da 2a. Internacional (fundada em 1889). Os líderes da Revolução russa, organizados no POSDR (Partido Operário Social-Democrata Russo), faziam parte da 2a. Internacional; estavam portanto integrados no contexto de um movimento socialista internacional. O movimento socialista vinha se colocando pois em aberto desafio contra a ordem burguesa e se oferecendo às massas trabalhadoras como uma alternativa organizativa, política e teórica de intervenção material no mundo.
O desafio ao sistema manifestou-se frontalmente em 1905 e as alternativas organizativas brotaram do solo da luta como grandes novidades históricas.
1.2 – A SITUAÇÃO DA RÚSSIA
No início do século XX, a Rússia era um Império em condições de decadência política e de intensa convulsão social. Com sua população de cerca de 130 milhões de habitantes, dos quais uma esmagadora maioria de mais de 90% eram camponeses, respirava ainda relações feudais de produção. Ao mesmo tempo, nos grandes centros urbanos como Moscou e Petrogrado (São Petersburgo), desenvolvia-se uma rápida industrialização, voltada para setores de base como metalurgia, associada a capitais estrangeiros, principalmente ingleses. Essa industrialização deu origem a um proletariado agrupado em grandes concentrações fabris, que freqüentemente tinham mais de mil empregados, submetidos às mais brutais condições de exploração.
Nestas condições, as contradições do capitalismo tendiam a assumir contornos mais explosivos, num ritmo diferente daquele que se desenvolvia então nos grandes países capitalistas europeus. Na Europa os trabalhadores já haviam conseguido, em maior ou menor medida, conforme o país em questão, conquistas como a regulamentação da jornada de trabalho, contratos coletivos, previdência social e até sufrágio universal. Na Rússia viviam-se ainda os primeiros movimentos por redução da jornada e melhores salários. Eram comuns as jornadas de 11 a 12 horas de duração, em semanas de 6 dias de trabalho.
Contra essa situação, a única arma disponível era a greve. À medida em que avançava a industrialização, crescia também a mobilização popular. As massas experimentavam uma situação de ascenso das lutas sociais: “La última década del siglo XIX se caracterizó por el crecimiento constante de la actividad obrera. En 1893 el gobierno apeló 19 veces a las tropas para reprimir huelgas y movilizaciones obreras; en 1899 lo hizo 50 veces; em 1900, 33; en 1901, 241 y en 1902, 522.” (1)
O proletariado russo, ainda que bastante minoritário em relação ao conjunto da população, era levado a uma postura de confrontação aguda contra o sistema, por força das próprias condições concretas de sua existência. A opressão não se manifestava só por meio da força econômica da burguesia, que o explorava diretamente, mas também por meio da conformação política do Estado absolutista russo. A autocracia do Czar desconhecia as mais elementares concessões democráticas já comuns no ocidente (governo constitucional, sufrágio universal, liberdade de imprensa, etc.).
Se na Inglaterra, Alemanha e França já existiam sindicatos e partidos de trabalhadores legalizados, com imprensa própria e grande poder de mobilização, na Rússia tais organizações ainda eram clandestinas, semi-clandestinas ou em estágio de construção. Da postura de confrontação aguda do proletariado e do próprio atraso material e intelectual das massas camponesas russas resultavam tarefas diferenciadas para o movimento socialista daquele país.
2 – A QUESTÃO DO PARTIDO
As condições objetivas determinaram em grande medida as tarefas que os socialistas russos deveriam enfrentar. De saída, ressalta o fato de que tais condições eram bastante diferentes daquelas que vigoravam no ocidente. Na Europa os grandes partidos socialistas com eleitorado de massa, como o SPD alemão, debatiam a questão da transição ao socialismo em termos de uma disjuntiva entre reforma e revolução.
Este espaço não comporta uma apresentação adequada de tal debate, mas exige uma referência sumária aos seus termos principais.
Basicamente, havia uma ala da qual Eduard Bernstein era o líder que dizia que a transição ao socialismo era um sonho do passado e que bastava ao proletariado obter melhorias na sua condição de vida por meio do crescimento eleitoral de seu partido, através de conquistas graduais, sem nem mesmo romper com o capitalismo. Por outro lado, a ala da qual o nome mais representativo era o de Rosa Luxemburgo defendia a necessidade da revolução, a ser realizada pela mobilização das massas. No decurso das greves de massa, defendia a revolucionária de origem polonesa, o proletariado descobriria sua força e criaria seus instrumentos de poder.
Na Rússia esse debate tomava outra forma, pois nem sequer havia um partido legalizado, e muito menos havia eleições a serem disputadas por representantes dos trabalhadores. A forma de luta tradicional naquele país era o terrorismo dos “narodniks” (populistas), que em 1881 haviam assassinado o Czar Alexandre II. Esse tipo de ação desesperada (que resultou na prisão, condenação e morte dos terroristas, entre os quais o irmão mais velho de Lênin) e materialmente contraproducente expressava de maneira dramática a ausência histórica do sujeito social da revolução. O proletariado ainda não era capaz de se mobilizar para enfrentar o regime e o campesinato estava completamente alheio ao discurso e aos atos de seus auto-proclamados libertadores.
O POSDR teve que disputar espaço com o terrorismo e oferecer novas perspectivas teóricas e práticas ao movimento dos trabalhadores: “No que se refere à Rússia, o marxismo pode ser resumido como sendo a afirmação de que a história russa é parte da história mundial e de que, por causa disso, a Rússia teria que passar pelo capitalismo para chegar à futura sociedade socialista. Não era o campesinato, consideravam os marxistas, que seria capaz de dirigir a marcha para o socialismo, e sim a classe operária das fábricas. O terrorismo teria que ser abandonado como tática que era tanto inútil como, em vista das forças sociais em desenvolvimento, supérflua. A principal tarefa dos dirigentes revolucionários consistia na criação de um partido disciplinado da classe operária para conduzir a Rússia à terra prometida.” (2)
A formação de um partido revolucionário unificado em torno de uma política conseqüente não foi uma tarefa fácil, nem isenta de acidentes. As disparidades eram muitas: “O amplo arco de opiniões dentro dos limites gerais do marxismo foi ornado com facções manifestando todas as concepções possíveis, desde o reformismo mais brando até a violência mais extremada.” (3) Diversos elementos de vacilação e oportunismo tiveram que ser contornados e isolados. Ressalte-se ainda a brutal repressão policial do regime czarista, que obrigava as principais lideranças do movimento a operar na clandestinidade e no exílio.
Entrementes, a tarefa foi levada adiante. O foco de organização partiu de um órgão da emigração. “Hacia fines de 1900 comenzó a publicarse en Ginebra el periódico Iskra (La chispa). Su secretaria es N. Krupskaia y su cuerpo de redacción estaba contituido por Plejánov, Mártov, Axelrod, V. Zasulich y Lenin. (...) La redacción se proponia trabajar para formar un partido politico bajo la bandera de la socialdemocracia, entendiéndolo ‘como un partido revolucionario dirigido contra el absolutismo, ligado indisolublemente al movimiento obrero’ ” (4). O núcleo em torno do Iskra colocava-se assim como um representante da tradição marxista revolucionária, distante de posições revisionistas, como a de Bernstein, que conduziriam a social-democracia alemã ao oportunismo e o conjunto da II Internacional à falência, anos depois.
Naquele momento, a degeneração da social-democracia alemã, principal partido da Internacional, ainda não estava clara. Do ponto de vista russo, urgia primeiramente construir seu próprio partido, antes de pensar no debate internacional. Depois de enfrentar as tendências economicistas, reformistas e oportunistas, o POSDR surge unificado por uma política decididamente classista, socialista e revolucionária, mas dividido pela questão organizativa. O opúsculo de Lênin, “Que fazer?”, publicado em 1903, expõe a estratégia de um partido de quadros profissionais atuando de modo centralizado. Tratava-se de uma grande novidade, pois até então o movimento socialista estava familiarizado com a fórmula do “partido de massas”. Os opositores de Lênin advogavam critérios de organização menos rígidos e mais abrangentes, ainda que não propusessem a criação de um “partido de massas” na Rússia no momento imediato, pois reconheciam que as condições objetivas impunham uma atuação clandestina.
Lênin obteve nessa questão o voto da maioria (em russo, “bolchevique”), cabendo a Martov a liderança da minoria (“mencheviques”). Naquele momento, as diferenças entre os dois blocos ainda não eram grandes, pois era mais importante conseguir a unidade de ambos contra aqueles elementos reformistas que contaminavam o marxismo russo. As diferenças entre as duas frações podiam ser assim caracterizadas: “Em termos gerais, os bolcheviques tinham uma preocupação organizacional. Lênin queria que o partido consistisse em pessoas cuja vida estivesse plenamente dedicada à revolução - um grupo de ‘revolucionários profissionais’. Os mencheviques se contentavam se os novos membros em potencial fossem ‘simpáticos’ à revolução. Aceitariam qualquer pessoa que apoiasse intelectualmente o movimento, sem que fosse necessária sua participação pessoal. Em uma palavra, os bolcheviques acreditavam que o partido era a ponta de lança da revolução: os mencheviques eram favoráveis ao comício ou mesmo ao gabinete de trabalho.” (5)
É muito comum a confusão histórica que associa os bolcheviques à obsessão imediata pela revolução e os mencheviques às tentativas de conciliação (à la Bernstein). Se isso é verdadeiro para o decurso da Revolução de 1917, ainda não estava colocado em 1905. O debate entre mencheviques e bolcheviques não era sobre “reforma ou revolução”, mas sobre “partido de quadros” ou “partido de simpatizantes”. Há ainda outras confusões sobre o papel de Lênin e de Trotsky nessas questões, o que será objeto de breve discussão adiante. De todo modo, os bolcheviques acabariam sendo historicamente identificados como a fração mais decididamente revolucionária do partido, enquanto que os mencheviques por fim degeneraram para o reformismo e mesmo para o oportunismo.
Daniel M. Delfino
21/08/2005
* O presente texto é a adaptação de um trabalho apresentado para o curso de Filosofia da FFLCH-USP pela impessoa deste escriba, válido para a disciplina optativa de “História Contemporânea I” no primeiro semestre de 2005. (voltar)
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