28.5.07

Os nazistas também foram eleitos




Adolf Hitler perdeu a eleição para a Presidência da República de Weimar, em 1930. Mesmo assim, o Partido Nazista conseguiu a maioria no Reichstag (Parlamento). Em 1933, o Presidente Hindenburg convidou Hitler para o cargo de Chanceler (1º. Ministro). Nesse mesmo ano, um proviencial incêndio destruiu o prédio do Reichstag, servindo de pretexto para que os nazistas exterminassem a oposição comunista. Daí para a extinção da República de Weimar e a proclamação do 3º. Reich foi um passo muito curto.

Em 2000 George W. Bush perdeu a eleição para Presidente dos Estados Unidos. Mesmo assim o Partido Republicano tinha a maioria na Suprema Corte (até então ainda se imaginava que a instância máxima do Poder Judiciário fosse “apartidária”). Bush foi assim “legalmente” empossado. Em 2001, um providencial atentado destruiu o World Trade Center e parte do Pentágono, fornecendo o pretexto para que a administração republicana silenciasse a oposição interna e externa às veleidades imperialistas emanadas do complexo industrial-militar, em sórdida simbiose com a indústria petrolífera. Daí em diante, a administração do medo coletivo, dos preconceitos arraigados, da ignorância disseminada, bem como o uso reiterado de mentiras escandalosas foram suficientes para garantir a reeleição de Bush.

Esse conjunto de analogias superficiais serve para mostrar o quão facilmente as plataformas políticas mais irracionais e oportunistas podem conseguir o poder sem violar as formalidades do Estado burguês. George W. Bush foi eleito “democraticamente” (voltaremos a esse conceito de “democracia” adiante), assim como o Partido nazista chegou ao poder por vias legais. Bush perdeu a primeira eleição, mas levou “no tapetão”, como se diz no futebol. Agora, venceu a segunda eleição de maneira aparentemente incontestável. Isso lhe servirá, de maneira muito bizarra, para reivindicar a legitimidade que lhe foi negada insistentemente, e com razão, ao longo de todo o 1º. mandato, pela forma grotescamente fraudulenta com a qual o angariou.

De maneira bizarra porque diz-se por toda parte que “dessa vez ele venceu”. Essa é a curiosa frase que se repete em todos os comentários sobre a eleição estadunidense: “dessa vez ele venceu”. Cabe aqui perguntar: como assim, “dessa vez”? E quanto à vez anterior? A vez anterior foi diferente? Na vez anterior ele não venceu? Ele não venceu e o caso fica por isso mesmo? A vitória em uma única eleição pode resolver a questão de uma vez por todas?

O sentido com o qual o Partido Republicano celebra a vitória nessa eleição é esse, o de uma vitória para acabar com todas as controvérsias. “Uma eleição para acabar com todas as eleições”, possibilidade sinistramente anunciada pelo fato de que os republicanos levaram, além da Presidência, a maioria das duas casas do Legislativo. O Partido Republicano e seus admiradores estritamente lastreados nas formalidades da democracia burguesa podem jactar-se do feito histórico, amparados no comparecimento maciço do eleitorado e na polarização radical da campanha, provavelmente a eleição mais disputada até hoje na história dos Estados Unidos.

O Partido Republicano ameaça se tornar uma espécie de PRI (Partido Revolucionário Institucional) estadunidense, que tal como seu congênere mexicano, ficou mais de 70 anos no poder (mais do que o Partido Bolchevique sob o sistema de Partido único da antiga URSS). O Partido Democrata, por sua vez, encaminha-se para a melancólica condição de MBD estadunidense, a oposição de fachada da época da nossa ditadura tupiniquim, que podia fazer tudo menos oposição de verdade, porque não tinha chances concretas de disputar o poder. Na medida em que os democratas se recolhem à insignificância política, aproximamo-nos da proclamação do “Reich Estadunidense”.

Do ponto de vista dos vencedores, contestar a eleição é um comportamento digno de “maus perdedores”, uma “choradeira” que não merece mais do que desprezo. Mas o buraco é mais embaixo, ou melhor, mais adiante, para lá de Bagdá. Enquanto “nós ocidentais” ainda podemos nos dar ao luxo de discutir se a eleição foi ou não foi verdadeiramente democrática (tanto a primeira como a segunda), para os afegãos e iraquianos (e quem sabe quantos outros em breve) essa simples diferença conceitual pode se materializar na nada sutil diferença entre ter ou não ter suas casas bombardeadas, suas famílias massacradas, suas vidas destruídas, e ter ou não ter as riquezas do país saqueadas pela máfia dos 40 ladrões da Halliburton & Cia ( e CIA).

Para qualquer país periférico do sistema capitalista atual, como o Brasil, não é mais um assunto meramente acadêmico a questão de saber se as eleições foram de fato “democráticas” e conseqüentemente se o mandato de Bush é ou não “legítimo”. É uma questão vital de sobrevivência material. Que espécie de “democracia” é essa que coloca um homem como Bush na Casa Branca? Como é possível que o povo estadunidense o tenha reeleito “democraticamente”?

Uma primeira resposta está no erro estratégico do Partido Democrata de não se diferenciar da plataforma republicana. Kerry se apresentou como o candidato que faria basicamente as mesmas coisas que Bush, especialmente no que se refere à principal pauta da campanha. Principal pelo menos no que nos diz respeito, como súditos de segunda categoria (ou de Terceiro Mundo) do Império, a saber, sua política externa (a “guerra” [invasão] do Iraque). Se é para ter alguém que vai fazer a mesma coisa, apenas com mais racionalidade, o eleitor preferiu o original à cópia. Se é para dar uma de “cowboy”, que se chame o xerife texano, não o veterano-do-Vietnã-que-virou-hippie.

O Partido Republicano justificou sua pretensão ao poder em termos de ser o único capaz de manter a segurança dos Estados Unidos. Não importa que mesmo em relação a esse estrito requisito de legitimidade (a tal “guerra ao terrorismo”) esse Partido tenha se mostrado brutalmente incompetente. Os Estados Unidos não estão nem um pouco mais seguros e o terrorismo não está nem um pouco mais debilitado ao fim da primeira administração Bush. Antes, pelo contrário. Mas isso não importa. Importa é que Bush prometeu que vai sacar primeiro e perguntar depois. No imaginário estadunidense, é isso o que conta, a atitude.

Uma segunda resposta está na atitude do Partido Democrata em relação aos demais temas da campanha, os temas da política interna. Seria melhor falar a falta de atitude. Demonstrou-se nessa campanha a inabilidade e a inapetência dos democratas para se afirmar como alternativa radicalmente diferente em termos de gestão econômica do capitalismo. A política de Bush é ruim não apenas para o mundo, mas também para a própria economia e o povo do seu país.

A política de diminuir os impostos e desregulamentar a atuação das corporações aumenta o déficit público, aumenta a distância entre ricos e pobres, desfaz as redes de proteção social, responsabiliza os indivíduos pelos defeitos do sistema e autoritariamente encarcera os “perdedores”. Dessa vez, nem mesmo o discurso de que “é a economia, estúpido”, que valeu primeiro mandato de Clinton contra Bush sênior, bastou para tirar o estúpido Bush júnior do poder.

A economia estadunidense vai mal das pernas, mas isso não pareceu incomodar muito os eleitores. Um capitalismo movido a cartão de crédito, dívidas públicas e privadas além da capacidade de pagamento, surtos de especulação financeira e consumismo desenfreado, fraudes contábeis e desperdício generalizado, ameaçado a médio prazo pelo esgotamento da matriz energética dos combustíveis fósseis; precisa de outras soluções que não as políticas do estúpido de turno.

Seja como for, os democratas não souberam focalizar a campanha nesses temas, onde teriam a chance de apresentar alternativas materialmente significativas. Em função dessa inapetência, os republicanos nem precisaram “pegar pesado”, apelando para algum incidente que produzisse a necessária histeria. Um vídeo do cabo eleitoral de Júnior e patrão da família Bush, Osama Bin Laden, exibido às vésperas da eleição, teve efeitos desprezíveis no resultado eleitoral.

Não que a influência da mídia tenha sido insignificante no pleito. A influência da mídia é a razão pela qual colocamos todas as aspas possíveis ao falar da “democracia” burguesa e estadunidense em particular. A mídia tem sido chamada de “quarto poder” nas sociedades capitalistas, em alusão aos três poderes constitutivos do Estado burguês, Executivo, Legislativo e Judiciário. Mas na verdade, a mídia é a expressão extra-política do poder econômico, por trás e acima do poder político. Cadeias de televisão, jornais e corporações da indústria cultural atuam em espúrio conluio com o complexo industrial-militar para fabricar consensos convenientes a políticos assalariados a seus interesses.

Populações hipnotizadas pelo medo irracional, pelo preconceito e pelo ódio, elegem políticos que se candidatam para fazer guerras, gastar absurdos bilhões em armas e conquistar territórios e riquezas estratégicos. Uma mídia que vive em estado de plantão permanente em busca do próximo fato sensacional que mantenha os traseiros dos espectadores nas poltronas, seus cartões de crédito em uso e seus cérebros na geladeira é o derradeiro aperto no parafuso que fecha o círculo de perversidades desse sistema. Dar a essa grotesca caricatura de sociedade o nome de “democracia” é um violento insulto a todos os sinceros democratas (com exceção do Partido Democrata, que há séculos dança conforme essa música), mais do que uma cínica piada de mau gosto.

Mas essas três respostas ainda são aproximativas. O aspecto mais importante a ser finalmente destacado, que se sobrepõe aos outros três, é o fato de que a vitória de Bush consagra a vitória da política baseada no irracional.

A questão foi finalmente decidida pelo eleitorado religioso conservador. O assunto mais “quente” da campanha foram os temas comportamentais: casamento homossexual, direito ao aborto, pesquisa médica com células-tronco. Kerry mostrou-se favorável ou ambíguo em relação a essas iniciativas. Bush mostrou-se frontalmente contra. O Presidente apresentou-se como o defensor último dos valores cristãos. Por isso foi eleito. Simples assim.

Não importa que na sua interpretação peculiar da moral do cristianismo esses temas comportamentais sejam mais graves do que a questão de se poder matar milhares de pessoas para roubar as riquezas de dois países. Assistiu-se a uma batalha do “bem” contra o “mal”. No mundo unidimensional do eleitor cristão fundamentalista de direita, não há espaço para posturas racionais, matizadas, nuançadas, como as de Kerry.

Estados que baseiam sua política na religião não são uma novidade no mundo moderno. Temos os casos de Índia, Paquistão, Irã, Israel, de uma forma ou de outra governados ou assolados por fundamentalistas religiosos. Esse predomínio da religião sobre a política nunca foi muito problemático para além das fronteiras desses próprios países, nunca teve potencial para se tornar uma ameaça concretamente global. Mas passou a sê-lo, e bastante, quando atingiu o próprio centro dinâmico do sistema.

Na última oportunidade em que um Estado de grande porte, materialmente significativo no equilíbrio entre as potências como era a Alemanha, optou por uma política baseada no irracional (supremacia da “raça ariana”), deu-se a hecatombe do supracitado 3º. Reich. A sinistra possibilidade de que os Estados Unidos sob Bush, Schwarzenegger ou quem quer que o suceda, continuem a levar “a palavra de Deus” ao resto do mundo, convenientemente escudada pela supremacia do capital estadunidense e seus abutres, nos ameaça como a sombra de um Holocausto global em câmera lenta.

Adorno e Horkheimer estavam errados quando disseram que a barbárie da Segunda Guerra Mundial foi o resultado de uma perversa manifestação da dialética do Iluminismo. Na verdade, a razão iluminista ainda nem sequer começou a vigorar em parte alguma do mundo. O preconceito, a superstição, o obscurantismo e o misticismo dominam a política do século XXI. Tal como na Idade Média, vivemos numa Idade das Trevas. Com a singela diferença de que esta é televisionada. Ou de que está “on-line” na internet.

O melancólico epílogo deste comentário não poderia deixar de mencionar o vácuo ideológico deixado pela “derrocada do socialismo”. O “fim” da alternativa racional ao capitalismo abriu as portas para que as alternativas irracionais (fundamentalismo islâmico) passassem a disputar o imaginário das populações aprisionadas aos elos débeis da cadeia do sistema global do capital. Por outro lado, abriu as portas também para as justificativas irracionais (fundamentalismo cristão protestante de direita) com as quais o próprio capitalismo passa a se auto-legitimar.

Que o socialismo não tenha experimentado nenhuma “derrocada”, mas na verdade nem sequer se iniciado, é assunto para outra oportunidade. Se “Deus” nos permitir.

Daniel M. Delfino

12/11/2004

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