A pizza está servida. Sabor bode expiatório. Severino Cavalcanti renunciou, Maluf está preso, Jéferson foi cassado. Eis o resultado de meses de convulsões e histeria. A temporada de caça está encerrada. Desligam-se os holofotes. A opinião pública teve o que queria. Depois da malhação dos Judas, todos esperam o Cristo da moralidade política ressuscitar no Domingo de Páscoa (que vai cair no dia de São Nunca), ou reencarnar no novo presidente da Câmara dos Deputados, ou no futuro presidente do PT, ungidos em primícias excelsas e livres de qualquer mácula do Pecado Original.
A crise acabou. O país pode respirar aliviado. Podemos dormir tranqüilos. Tudo voltou ao normal. A política sai de cena, para voltar apenas depois da Copa do Mundo, nas eleições. Fecham-se as cortinas no teatro da vergonha nacional. A comédia das CPIs encenou seus últimos atos. A temporada já estava se estendendo para além do suportável. O respeitável público já estava se cansando de tanta burla e galhofa. A piada perdeu a graça depois de tantas vezes repetida.
Ninguém foi condenado, os cofres públicos não foram ressarcidos, bens não foram confiscados, nenhum dinheiro foi repatriado, nenhuma porta para os valeriodutos foi fechada, nenhuma lei foi modificada, não se avançou um milímetro sequer na transparência das instituições, a máquina do Estado continua de posse das quadrilhas, o povo continua alheio e confiante nos mesmos processos viciados. Os mesmos partidos vão concorrer em novas/velhas mesmas eleições a serem disputadas debaixo das mesmas regras, com as mesmas coligações, os mesmos conchavos, os mesmos esquemas de financiamento de campanha, os mesmos lobistas e tesoureiros atuando solertes nos bastidores. Os mesmos políticos vão ser reeleitos, a mesma ilusão do salvador da pátria vai ser reciclada e tudo vai continuar como antes.
Os convivas do banquete seguem em seu repasto, enquanto ninguém virar a mesa e por todos para fora. No festim do acordão, as fatias distribuem-se amistosamente. Cada um recebe seu pedaço. A despeito da violenta hostilidade por vezes encenada entre as facções em disputa, substantivamente, não existe oposição de fato ao governo, e também não existe de fato governo. Existem máfias em disputa pela rapinagem do espólio público. Já virou clichê dizer que não há diferença entre os blocos partidários formados por PT/PL/PMDB/PTB/PP de um lado e PSDB/PFL de outro. Os dois praticam o assalto sistemático ao Estado, às escondidas. E na superfície, onde deveriam apresentar projetos à sociedade, os dois defendem a mesma política econômica. Na prática, trata-se de duas gangues, separadas por suas posições opostas, unidas por seu modus operandi.
Assim como o futebol é um espetáculo unitário formado pela concorrência entre dois times, a “democracia representativa” é uma farsa protagonizada por supostos representantes do povo que disputam para representar os interesses de grupos de financiadores. Na crise atual, quase foi possível ver por baixo da saia da democracia. A virulência da crise recente foi tamanha que ameaçou desacreditar perante o povo todo o conjunto das instituições. Alerta vermelho. Algo estava indo longe demais. Depois de provar que o PT no governo é um partido igual aos outros, a devassa, caso fosse estendida a toda corrupção, poderia expor as pontas ainda soltas dos fios da bandalheira da era FHC. Negociatas como as privatizações, o maior esquema de pilhagem da história do país, seriam trazidas à ribalta. Traços desse emaranhado poderiam despontar se uma investigação séria alcançasse, por exemplo, os fundos de pensão.
Esse perigo assustador, e o próprio esgotamento natural da crise por conta de sua exaustão, impuseram o acordão. Os adversários fazem as pazes. Logo no início do atual governo, deliberou-se enterrar a CPI do Banestado para não causar embaraços judiciais à nata do stablishment político-empresarial brasileiro. Uma lista de nomes que só perde em conteúdo incendiário para a da cafetina do mensalão foi beneficiada pelo acobertamento do escândalo multibilionário das remessas ilegais de fortunas ao exterior. No apagar das luzes deste mesmo governo prematuramente encerrado, caberá a tais nomes fazer o mesmo em relação ao escândalo do mensalão/cuecão. Uma mão lava a outra, com lama.
Entre mortos e feridos, salvou-se o regime da democracia de fachada. O governo Lulla saiu queimado pelas beiradas, e as cartas estão postas para as eleições de 2006. O risco bastante palpável de uma duradoura hegemonia petista, que se vislumbrava apesar da catastrófica situação social mantida intacta no governo Lulla, foi pulverizado de maneira fulminante. O ParTido que despontava como um virtual PRI mexicano, no aspecto de ser capaz de se manter no poder por décadas, terminará seus dias melancolicamente como o decadente peronismo argentino, ou seja, uma camarilha sindical com apelo demagógico entre os setores mais atrasados da população. Foi restabelecida a igualdade na disputa entre as facções de pizzaiolos.
A fatia do leão, naturalmente, cabe ao FMI, como sempre. As eleições de 2006 já estão decididas. Quaisquer que sejam os candidatos, o FMI já ganhou. O Brasil não elege presidentes de fato. Colônias do imperialismo como nós não têm esse privilégio. Quando muito, elegemos um síndico de massa falida. Uma rainha da Inglaterra, útil para fazer discursos, mas incompetente para quebrar a vassalagem do país ao grande capital global. Os crédulos leitores dos jornais diários dirão prontamente que o Brasil não tem mais acordo formal com o FMI. Como se isso fizesse alguma diferença.
O superávit primário se consagrou como cláusula pétrea da prática administrativa, mais rígida do que qualquer princípio da Constituição. Imexível. A ele somar-se-ão no próximo período a autonomia do Banco Central, as PPPs, as reformas sindical, trabalhista e universitária, a privatização de Petrobrás, BB e CEF, o TLC (Tratado de Livre Comércio) com os EUA em lugar da ALCA, o loteamento da Amazônia, etc. Qualquer que seja a opinião do eleitor brasileiro a respeito desses temas cruciais, esta opinião não encontrará meios de se expressar concretamente nas eleições e não terá qualquer efeito materialmente decisivo. As eleições vão debater a barba de Lulla, a careca de José Serra e o cabelo amarrado de Heloísa Helena, mas jamais a política econômica, que é o tema que verdadeiramente interessa.
Para discutir a política econômica, seria preciso ter um projeto de país. E isso ninguém tem. O Brasil foi abortado. Na falta de um projeto de país, compra-se a receita de fora. Um pacote pronto desembarca em embalagem reluzente, nas malas de economistas formados em Chicago ou em Princeton. A muamba é vendida com a duvidosa aparência e a péssima dublagem de um comercial de TV de produtos encomendáveis pelo 0800. “La garantia soy yo!”
A pizza que nos é servida foi condimentada em estrito acordo com a receita do continuísmo econômico. A mídia comemora o fato de que, apesar da crise política, a “economia vai bem”. Bem para quem, cara-pálida? Sob que parâmetro o atual modelo de política econômica pode ser considerado bem-sucedido?
A política econômica atual é herdeira do plano real de FHC. O plano real foi inventado por um bando de aprendizes de feiticeiro para debelar a inflação por meio de uma moeda forte (aprendizes que hoje batem asas com a desenvoltura de predadores no mercado da especulação financeira que tão habilmente fomentaram). Para lastrear essa moeda “real” (o nome não poderia ser mais duplipensado), o Brasil passou a ter a necessidade de atrair dólares. Para atrair dólares, elevou a taxa de juros, transformando a especulação com títulos da dívida pública no negócio do século.
Como gostam de dizer os estadunidenses, “não existe almoço grátis”. Nem pizza. Não existe mágica para acabar com a inflação. O artifício monetário dos prestidigitadores feagaceanos escondeu o problema debaixo do tapete. Escondido, mas não morto, o dragão metamorfoseou-se num insaciável buraco negro de dívidas intermináveis, sorvendo porções crescentes da riqueza nacional. A dívida externa multiplicou-se por 10. E de quebra o patrimônio público foi alegremente saqueado por uma malta de bucaneiros globalizados, obscenamente financiados com linhas de crédito do BNDES. Ao insulto juntou-se assim a zombaria.
Estabeleceu-se uma perversa armadilha da falsa estabilidade. Enquanto o governo continuar pagando a dívida que ele mesmo fabricou, está “tudo bem”. Ao menor sinal de que ele seja incapaz de continuar pagando, seja por decidir politicamente não fazê-lo, seja por se tornar economicamente incapaz de pagá-la, o mercado brande o seu chicote e põe em pânico a mídia, exigindo pronta obediência das autoridades econômicas. Prisioneiro da necessidade de atrair dólares para rolar a dívida no curto prazo, o governo mantém elevados os juros que tornarão a dívida fatalmente impagável a longo prazo. Ao mesmo tempo, os juros astronômicas asfixiam a economia, impedindo que se criem as condições para que, hipoteticamente, essa dívida possa em qualquer prazo ser paga.
A decisão política de não pagar a dívida porque se tornou economicamente inviável pagá-la é passada como uma batata quente para o governante seguinte. Mas qualquer que seja este, seu discurso contém sempre a reiterada promessa de um inatingível “crescimento” econômico, cujos frutos iriam beneficiar o conjunto da sociedade, permitindo ao mesmo tempo continuar pagando a dívida sacrossanta. A cada passagem do bastão, a situação só faz deteriorar-se mais. Enquanto o enfrentamento inadiável dessa questão é postergado, pão e circo para o povo.
Espetáculo de crescimento e fome zero. Promessas, mentira e incompetência unificam os programas e as práticas da direita e da “esquerda”. Ambas omitem o fato de que o capitalismo brasileiro, por conta de seu papel subordinado na divisão internacional do trabalho, não comporta mais qualquer margem de manobra para políticas de bem-estar social, de distribuição dos frutos do crescimento, ou mesmo as políticas sociais compensatórias. No atual modelo, não haverá distribuição, porque não haverá frutos, nem crescimento. A menos que se rompa a opção submissa. Independência ou morte.
A dieta da pizza prescreve um rigoroso apertar dos cintos. O Estado precisa “controlar os gastos”. Existe uma lei de “responsabilidade fiscal” que proíbe os governos de investir em saúde, educação, habitação, saneamento, etc. Enquanto isso, continua faltando algo muito mais importante, uma lei de responsabilidade social que proíba os governantes de desviar a riqueza nacional para uma dívida fraudulenta. As prioridades estão absurdamente invertidas. Preserva-se a economia da agiotagem, ao custo do aprofundamento da pobreza.
Miséria, fome, doenças, desnutrição, crime, ignorância, etc., ao que parece, são problemas da África, não do Brasil. O Brasil vai bem, dizem os relatórios do FMI, ou da Standard & Poor’s. “Os fundamentos da economia são sólidos”, proclamam as pitonisas do mercado. É preciso manter esse rumo, vaticinam os atenciosos vigários da moralidade econômica. Déficit nominal zero, clamam os mais entusiasmados guardiões da autêntica receita continuísta.
O povo pode esperar para ter sua parte. O povo sempre pode esperar mais um pouco. Suas necessidades não são concretas. São abstrações estatísticas. Seu sofrimento não existe, já que só aparece (como caricatura) no telejornal local das 6:00. A realidade que interessa ao mercado está no noticiário nacional. Aqui temos o supra-sumo da informação: os famigerados índices econômicos. Neste aprazível recanto de auto-ilusão, é possível desfrutar em paz da saciedade proporcionada pela pizza. Aqui tudo é simples e coerente. O povo não atrapalha. No reino dos números, basta esperar e torcer para que as médias atinjam as metas estipuladas. Estamos no terreno da mais apurada ciência, a refinada arte da econometria. Neste campo, não se pode ceder a tentações populistas. O mercado requer seriedade. É preciso ser responsável.
Bem-vindos ao reino da desfaçatez, estágio superior do cinismo. A estabilidade dessa economia da miséria é considerada um sinal auspicioso de que o Brasil está chegando à modernidade. Crises políticas não afetam mais a “estabilidade econômica”. Estamos “blindados” contra a crise. Por trás do uso recorrente dessa palavrinha da moda, está o ato falho de quem se acostumou a olhar a realidade detrás da janela de carros blindados. O mercado saúda a firmeza das “instituições democráticas”, a “solidez dos fundamentos”, a competência dos gestores, a eficiência da máquina, etc. Estamos vacinados contra a insensatez política. A massa pode seguir na miséria, e os políticos podem saciar-se com as bordas que sobram, chamuscadas, é verdade. Podemos seguir tranqüilamente em direção ao radioso futuro que nos espera. Amém.
Assim como o bolo requer a cereja, a pizza, para estar completa, demanda uma azeitona de escárnio. A crise se fechou no palco da política, mas os seus repiques, rescaldos e espasmos se multiplicam e reverberam nos mais variados níveis. A principal campanha publicitária do atual governo, arquitetada com o objetivo explícito de melhorar a imagem do país e a auto-estima de sua população (afinal, contratos publicitários não servem só para desviar dinheiro), dizia o seguinte: “o melhor do Brasil é o brasileiro”. Em quê o brasileiro é melhor? No futebol, com certeza. Agora, como que para desfazer qualquer possível resultado positivo dessa campanha, descobre-se que o próprio futebol também está contaminado pela corrupção.
A última cidadela da auto-estima nacional foi aviltada. O futebol, que foi no último meio século o cimento da nacionalidade, rica fonte da nossa auto-imagem, motivo de orgulho e glória da raça, rebaixa-se na vala comum dos resultados arranjados. Juízes fabricavam placares de jogos para beneficiar redes de apostadores clandestinos. O Campeonato Brasileiro está desacreditado. É melhor parar por aqui e não se estender muito sobre esse assunto, para não correr o risco de ficar mal na fita: o time para o qual torce este escriba foi comprado recentemente por um testa de ferro da máfia russa para servir como canal de lavagem de dinheiro para o crime organizado internacional. Ninguém tem moral para atirar a primeira pedra.
O melhor do Brasil é o futebol, que, por sua vez, também está podre. Quando nem o futebol se salva, é porque não ficou mesmo pedra sobre pedra.
O Brasil morreu.
Requiescat in pace!
Daniel M. Delfino
19/08/2005
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