Nome original: Ray
Produção: Estados Unidos
Ano: 2004/I
Idiomas: Inglês
Diretor: Taylor Hackford
Roteiro: Taylor Hackford, James L. White
Elenco: Jamie Foxx, Kerry Washington, Regina King, Clifton Powell, Harry J. Lennix, Bokeem Woodbine
Gênero: biografia, drama, música
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
As biografias de celebridades correm facilmente o risco de se transformarem em um burocrático exercício laudatório sem nenhuma intensidade dramática. Principalmente quando o biografado, ainda vivo, tem o poder de exercer alguma interferência sobre a obra, como é o caso de “Pelé eterno”, que por encomenda de Edson Arantes do Nascimento se transformou num filme caseiro de recordação, a que somente sua família suporta assistir. O risco de algo semelhante acontecer cercava a biografia de Ray Charles filmada por Taylor Hackford, uma vez que foi produzida sob os auspícios do músico, que pôde assisti-la, ou melhor, ouvi-la (é fácil esquecer que o cantor era cego), antes de morrer, em 2004, e dar sua aprovação.
O desastre cinematográfico total não aconteceu graças à coragem quase inacreditável que o próprio Ray Charles mostrou ao concordar em expor todas as facetas de sua trajetória, mesmo as mais sombrias. Numa época em que as celebridades se transformaram em aberrações para o circo de horrores da mídia (vide o julgamento de Michael Jackson), é difícil encontrar o equilíbrio na delicada tarefa de expor uma rica e incomum personalidade humana com sua carga inerente de vícios e virtudes, sem cair na tentação de divinizar (como em “Pelé Eterno”) ou satanizar o objeto em questão. Não se pode dizer que “Ray” encontra esse equilíbrio perfeito, uma vez que resvala num certo exagero, melodrama e afetação, mas a tentativa é digna.
Ray Charles expõe nesta biografia seu vício em heroína, seus adultérios, as escolhas musicais e empresariais equivocadas, os companheiros de jornada a quem abandonou pelo caminho, a busca cega por fama e fortuna (com perdão pelo trocadilho). Ele expõe seus defeitos como quem acredita que a qualidade extraordinária de sua arte pode redimir todos os pecados. Essa parece ser a crença que move a realização do filme e a disposição para confessar os erros.
O talento é a saída para enfrentar a condição duplamente discriminada de negro e de deficiente visual e depois, de viciado em drogas. É interessante como no início de carreira ele era discriminado pelos próprios colegas músicos negros por ser cego, deixado de fora e excluído das farras que se seguiam aos shows. Pelo menos até que o público feminino descobrisse quem era o verdadeiro talento da banda.
Como qualquer celebridade, Ray Charles foi passado para trás mais de uma vez em sua escalada rumo ao topo do competitivo showbiz estadunidense. Da mesma forma, deixou para trás alguns dos que o apoiaram no início da carreira. Foi acusado de vendido e mercenário pelos músicos negros mais engajados, quando assinou com uma grande gravadora e começou a fazer músicas mais comerciais. Estamos tratando aqui de uma transformação e um dilema que eram comuns naquele período extraordinário. A época retratada, as décadas de 1950 e 60, foi a da explosão da música pop, com as diferentes vertentes do rock n’ roll disputando a atenção do público. Não apenas a trajetória de Ray Charles foi colhida num turbilhão, mas a da música em geral.
Passou-se da condição em que o músico era um profissional que ganhava o suficiente para viver com seus shows para aquela em que se assinam contratos milionários, se vendem milhões de discos, se aparece na televisão em rede nacional, se fazem turnês ao exterior, se compram mansões, etc.. Ray foi um dos astros desse período e enfrentou todas as suas contradições, pagando um elevado preço pessoal por isso e se sobressaindo por força de seu talento, de modo que seu nome deverá constar de qualquer antologia da música do século XX.
A explosão da música pop, tendo como eixo o rock n’ roll, catapultou para a fama toda uma série de subgêneros e estilos da música negra, com seus respectivos astros, como Ray Charles, que saltaram os muros de seu gueto cultural e social para se tornarem ídolos de toda uma geração. A década de 1960 foi o período em que a juventude WASP passou a ouvir a música do proletariado negro. Isso era um dos aspectos cruciais da chamada “rebelião da juventude”, pois atacava um dos pilares fundamentais do conservadorismo em todos os tempos, a repressão sexual. As classes sociais subalternas são em geral mais desreprimidas sexualmente que as superiores, razão pela qual a música negra era considerada escandalosamente sensual ou “coisa do demônio” pelos guardiões da moral e dos bons costumes.
Do ponto de vista dos brancos ou dos estrangeiros, a música de Ray Charles era mais uma das novidades quentes do período. Mas para os próprios negros, ela era mais do que escandalosa, era abertamente sacrílega. Tratava-se de uma união do “rythm and blues” (R&B) com o “gospell”. O gospell é a música que embala os cultos das igrejas protestantes de denominação batista ou pentecostal freqüentadas pelos negros. O gospell é, musicalmente, tão nitidamente diferente do R&B quanto são para nós brasileiros o forró e o samba, com a diferença radical de que um deles é sacro e o outro profano.
Daí o espanto da mulher de Ray (ex-cantora de gospell) ao ouvi-lo tocar um gospell com letra de R&B, ou um R&B com melodia de gospell, mesmo que composto em homenagem a ela. A característica musical do gospell de unir uma voz principal a um coral que responde em contraponto foi comercialmente explorada por Ray e suas backing vocals, as “Raelettes”. Ele usou os recursos melódicos do gospell para cantar sua paixão pelas mulheres, acompanhado por cantoras que invariavelmente se tornavam suas amantes, o que só ajudava a deixar a coisa toda ainda mais incendiária.
Essa cópula entre o sagrado e o profano faz com que a carreira de Ray decole e com ela também o filme. Especialmente a partir do momento em que ele entra para o elenco da gravadora Atlantic Records e passa a evoluir musicalmente e encontrar seu próprio som. Sua fase mais criativa e revolucionária se desenrola nesse período. Antes disso, ele era semi-amador, e depois, como todo artista consolidado, se torna comercial e repetitivo. Se o restante do filme é convencional e até burocrático, o momento que retrata o seu auge criativo vale por todos os defeitos.
É difícil ficar parado na poltrona do cinema quando é mostrada a gênese de clássicos como “What did I say?”, totalmente improvisada, que quando é tocada ao vivo pela primeira vez, literalmente põe a casa abaixo, como diz o próprio Ray; ou “Hit the road, Jack”, composta quando sua amante (e backing vocal) Margie Hendricks rompeu com ele; ou ainda “Unchain my heart”, já fora da Atlantic. Estamos tratando de um período da história em que a música realmente significava algo, e por isso ainda permanece irresistivelmente poderosa décadas depois, fazendo empalidecer qualquer criação contemporânea e parecer que vivemos em outro planeta.
Mas não só de música vive um filme (o que chega a ser uma pena) e é preciso de alguma maneira encaminhar o desenlace dramático da história. Apesar da fama e da fortuna, os problemas ainda perseguem Ray e ele deverá enfrentar uma batalha para se livrar do vício em heroína, depois que uma tragédia o alcança e a mulher ameaça deixá-lo. A recompensa virá em 1979, quando ele é readmitido no Estado da Geórgia, de onde fora banido.
Banido? Sim, Ray Charles fora banido por descumprir um contrato e se recusar a tocar para uma platéia segregada, em pleno auge do movimento pelos direitos civis. Ray não foi nenhum entusiasta de primeira hora do movimento, e o filme é honesto o suficiente para mostrar isso. Ele precisou ser convencido por um militante, na porta da casa de shows, para rever a questão e mudar de posição. Assim, enfrentou o banimento e deixou de faturar com shows no Estado para o qual compusera “Geórgia on my mind”, para desespero da gravadora. Honestidade e transparência são as maiores qualidades dessa biografia, de modo que o retorno triunfal ao Estado que adotou aquela bela canção como uma espécie de hino oferece um ponto final ideal para a narrativa.
Um último destaque vai para o ator Jamie Foxx, num desempenho antológico, comparável ao daqueles raros casos em que um ator realmente encarnou um personagem, como Ben Kingslei em “Gandhi” ou Robert Downey Jr. em “Chaplin”.
Daniel M. Delfino
25/02/2005
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