Ao fim de dois anos de governo Lulla, apresenta-se a ocasião para um balanço crítico do primeiro biênio petista, oportunidade iluminada pelos recém-lançados documentários “Peões” e “Entreatos”. Cenas e frases contidas nos dois filmes ajudam a explicar o trágico naufrágio a que estamos assistindo, com funestas conseqüências de longo prazo para a História do país. Antes de propor uma interpretação sintetizadora à guisa de conclusão, convém recolher algumas sinalizações parciais adiantadas nos textos anteriores desta série.
Em “Entreatos” vimos a preocupação de Lulla com sua imagem pessoal e a desqualificação sumária das práticas políticas de esquerda divergentes daquelas do campo majoritário do PT. Lulla se esforça por parecer burguês e confiável. Ele se diverte com suas gravatas e seu aspecto de homem público de imagem “respeitável”. Muito já se falou das gafes de Lulla como se motivadas pela mesma deselegância do “pobre-que-enriquece-de-repente” e quer experimentar de tudo de uma vez. Até certo ponto, pode-se sempre conceder a qualquer vitorioso o direito de se divertir com sua própria vitória. Mas só até certo ponto, pois o preço dessa vitória, ele próprio inadvertidamente o confessa ao falar do MST, foi a passagem definitiva para o lado de lá, a traição de classe.
Em “Peões” ficamos conhecendo os representantes da classe que foi traída, os peões que “não deram certo”, brilhantemente retratados. Conhecemos os anônimos que ficaram para trás enquanto o seu ilustre companheiro galgava penosamente as escadas do sucesso político/midiático, carregando consigo as esperanças de todos eles (apenas para se desfazer delas tão logo fosse possível). “Não deram certo” porque a ascensão na sociedade burguesa, a despeito da propaganda enganosa que esta faz de si mesma, premia apenas alguns poucos. Os muito esforçados, os bem comportados e os espertos. E os que, como Lulla, se enquadram em mais de uma dessas três categorias, à escolha do leitor.
No debate com os diretores, acontecido na USP em seguida à projeção dos filmes, considerou-se muito natural o passo a que chamamos de traição de classe. Todos foram muito compreensivos ao absolver Lulla por sua assimilação à classe burguesa, à qual, parece, ele sempre quis pertencer. E que parece natural considerar que todos desejem pertencer. Todos querem os mesmos bens de consumo e o mesmo conforto. Qual é o problema em gostar de usar terno e gravata?
Já em 1978, lembra J. M. Salles, o problema da gravata apareceu, quando Luís Inácio foi questionado pelos companheiros sobre o impróprio uso da indumentária burguesa. Lulla respondeu que também quer bens de consumo burgueses, não quer ser operário para sempre. Lulla confessa que tudo o que queria era ser visto como alguém de “classe média”, que tem TV, geladeira, microondas, máquina de lavar. Era isso que ele queria que o entrevistador do censo perguntasse, quais móveis e eletrodomésticos ele tinha em casa. O operário queria pertencer à “classe média”.
Do alto de sua insignificância, este escriba preferiu não intervir no debate e reservar-se o direito de se perguntar, neste espaço: o que isso tem a ver com a causa da luta da classe trabalhadora, à qual Lulla supostamente estava ligado? Com isso chegamos a uma linha de questionamentos que pode conduzir à conclusão pela qual buscamos. Qual é a causa de Lulla afinal? Qual é o motivo de sua “luta”? Qual é o “projeto” de seu governo? Ter bens de consumo é o objetivo último da luta social? O que as gravatas tem a ver com o modelo de sociedade?
A posse de bens de consumo e de conforto material é uma aspiração legítima de qualquer pessoa em qualquer sociedade. No entanto, não é essa condição de consumo que define o grau de emancipação. O maior ou menor acesso a bens de consumo é uma regalia ocasionalmente franqueada pelo capitalismo à classe trabalhadora em momentos favoráveis do ciclo econômico de acumulação. O que absolutamente não é o caso da conjuntura brasileira e internacional, onde campeiam crises e incertezas. Ou seja, nem mesmo esse limitado progresso é factível e generalizável ao conjunto dos trabalhadores brasileiros no contexto das limitações do nosso atual ciclo de fictício “espetáculo de crescimento”.
A distinção das classes de acordo com faixas de consumo é uma conversa fiada que tão somente serve para tentar encobrir a subordinação hierárquica estrutural que separa os trabalhadores do controle de suas condições de existência. É essa subordinação essencial ao sistema do capital que determina materialmente a questão, por mais que uma abundante e palavrosa literatura acadêmica/sociológica e jornalística/economicista perfeitamente anódina se divirta em tentar estratificar artificialmente as sociedades capitalistas selvagens como o Brasil com base em analogias superficiais, lançando mão de pseudo-conceitos totalmente vazios como “classe A, B, C, D e E” ou “classe média”.
Por mais que os tais bens de consumo pudessem se tornar acessíveis a todos (e não podem), o que importa não é tentar fazer com que um número maior de pessoas passe a ter geladeiras, mas lutar para que todos tenham o poder de decidir sobre suas condições de existência, não importa se trabalhadores braçais ou intelectuais de qualquer tipo, determinando coletivamente onde alocar suas capacidades produtivas socialmente necessárias.
A especialização técnica das profissões que separa tanto o trabalho braçal como o intelectual em infinitas gradações é uma determinação material horizontal inerente à dinâmica da reprodução sociometabólica em qualquer formação econômico-social complexa tais como as que adentram o século XXI. Sob o sistema do capital, essa determinação se transforma em estratificação vertical das funções de controle social artificialmente compartimentadas em níveis de poder econômico-político alienado materialmente opressivo. Forma-se uma classe dos que mandam e uma dos que obedecem, sob o pretexto apologético de que “cada um tem sua função”.
Deixemos o próprio Lulla divagar a respeito. Ele deixa claro em “Entreatos” que a vida de operário era dura e que detestava o trabalho pesado. Dito de maneira mais direta, Lulla “detestaria ter que voltar para a fábrica”. Até aí tudo certo. Ninguém é obrigado a gostar de trabalho braçal. Mas o que fazer diante disso? Buscar alternativas coletivas de auto-gestão do trabalho social, em face das necessidades humanas, que inescapavelmente demandam quantidades variadas de trabalho braçal e intelectual de acordo com as condições tecnológicas historicamente mutáveis; ou encontrar soluções pessoais no quadro da institucionalidade capitalista? Diante da trajetória de Lulla, é legítimo perguntar se a opção de se tornar sindicalista e líder político não é apenas uma maneira de fugir do trabalho pesado.
Essa pergunta é capciosa, porque ataca não só a trajetória de Lulla, mas a de todo e qualquer representante sindical. Atinge a própria justificativa da representação sindical em si. E no entanto, essa pergunta, ainda que aparentemente mal intencionada, é legítima. O dirigente sindical está moralmente obrigado a refletir se o seu trabalho está de fato realmente ajudando os seus companheiros, que continuam dando duro no trabalho braçal. Pois se não estiver, o seu mandato como trabalhador intelectual não serve para nada. A legitimidade do mandato sindical está fundada na confiança dos trabalhadores de que o seu representante os está representando da melhor forma.
Como Lulla responderia a essa pergunta? Não se espera é claro uma resposta verbal a essa questão. A resposta está na prática, no próprio governo do PT, para quem quiser avaliar. Governar é bastante cansativo. É um cansaço diferente daquele de quem dá duro debaixo do sol, ou de telhas de brasilite, como lembra Luís Inácio. Mas aqueles que dão duro tem o direito de se perguntar se aqueles que estão governando por eles estão de fato governando para eles. Em outras palavras, põe-se aqui uma questão de lealdade de classe. Com quem está a lealdade de Lulla?
A primeira resposta a essa pergunta, para a qual os assessores governistas já estão mais do que ensaiados, será de que esse é um governo de composição, que precisa de “outros apoios” na sociedade para conseguir se sustentar. Daí a necessidade, justificada de mil maneiras, de cortejar com cargos o balaio de gatos do PMDB. E de premiar com uma obscena imunidade ministerial tirada do bolso do colete o fraudador do fisco Henrique Meirelles, que zela pelos interesses da especulação financeira internacional convenientemente alojado no estratégico posto de Presidente do Banco Central.
Uma resposta menos confortável e menos palatável para o noticiário das 8:00 é que Lulla está governando contra a classe trabalhadora da qual saiu e contra a maioria do povo brasileiro. Está governando para a burguesia financeira internacional e os interesses locais colonizados a ela fiéis. Lulla acreditou na história do próprio “sucesso”. Acreditou que pelo fato de ter “chegado lá”, o conjunto dos trabalhadores teria também chegado com elle. Devemos nos contentar com a glória reflexa de ter eleito um Presidente e deixar de exigir mudanças fundamentais nas condições de existência, as quais ficam adiadas para o distante horizonte da utopia.
Lulla acreditou que estaria sendo aceito, assimilado e metabolizado pela burguesia brasileira. Muito antes do que pudesse imaginar, está sendo excretado por ela. A arqui-reacionária plutocracia paulistana festeja a vitória de José Serra (ou melhor, a derrota de “Martaxa”, já que Serra é notoriamente infestejável) e já comemora a retomada do Planalto por Alckmin em 2006. Salve-se quem puder. Aqui embaixo, não temos opções. Lá de cima, Luís Inácio tinha a opção de se aliar com as forças progressistas que dele esperavam tudo. Lulla preferiu aliar-se ao outro lado. Agora, assistindo à lenta decomposição de seu “governo”, colherá a decepção de entrar para a História como o nosso De La Rua em câmera lenta.
Cada vez mais este escriba se convence de que a verdade sobre a campanha de 2002 foi dita num outro evento, na mesma USP, há mais de dois anos. Num debate com os estudantes em meados daquele ano, o também candidato José Maria, disputando a eleição Presidencial pelo PSTU, disse que a disputa na verdade já tinha sido decidida muito antes do 3 de Outubro, muito antes dos eleitores sequer começarem a votar.
A campanha foi decidida no momento em que Serra e os candidatos “de oposição”, Lulla, Ciro e Garotinho, compareceram perante FHC para assinar embaixo dos acordos do tucanato com o FMI. Ajoelhou, tem que rezar. A partir daquele momento, os eleitores brasileiros já não tinham qualquer opção concreta de modificar os rumos do país, não importa qual candidato fosse eleito. Não havia alternativas concretas em disputa. Escolhia-se entre versões de diferente coloração de um mesmo programa. Pilotos equivalentes entre si para um Titanic já condenado de saída.
Equivalentes em conteúdo por mais que na aparência um seja peão e outro economista. Pois quer se crer que essa diferença seja irrelevante. O objetivo do peão terá sido este mesmo desde sempre. Tornar-se o arremedo de líder que se tornou.
Chegamos então à conclusão de que o governo Lulla está sendo extremamente bem sucedido. Lulla chegou exatamente onde queria. Tudo o que Luís Inácio queria quando crescesse era ser igual a Collor de Melo, o reluzente candidato engendrado em tubo de proveta pela Globo, que o derrotou em 1989. Pois bem, Lulla conseguiu. Ele está cercado das mesmas companhias de Collor e está pondo em prática a política inaugurada por este pitoresco predecessor. Nada mais justo, em face desse retumbante progresso, do que homenagear Luís Inácio, como o leitor atento já terá percebido neste e nos demais textos, com o logotipo dos dois “ll” colloridos que ele tanto se esforçou por merecer.
E por último, mas não menos importante, é preciso acrescentar que estes filmes e o subseqüente debate, partes de um evento realizado na USP em pleno horário comercial de um dia de semana, em plena segunda-feira, somente tornaram-se-me acessíveis, e o aqui encerrado comentário só foi possível, em virtude de este escriba estar gozando do seu período anual de um mês de férias, que já no próximo ano pode não mais constar da ameaçada legislação trabalhista, em vista das declaradas intenções (contra)reformistas do nosso “companheiro”, nosso muy amigo Presidente-peão...
Daniel M. Delfino
29/11/2004
P.S. Filmes Comentados:
Nome original: Entreatos
Produção: Brasil
Ano: 2004
Idiomas: Português
Diretor: João Moreira Salles
Roteiro:
Elenco: Lula, José Dirceu
Gênero: documentário
Nome original: Peões
Produção: Brasil
Ano: 2004
Idiomas: Português
Diretor: Eduardo Coutinho
Roteiro:
Elenco: Maria Socorro Morais Alves, José Alves Bezerra, Zacarias Feitosa de Morais
Gênero: documentário
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
Nenhum comentário:
Postar um comentário