8.5.07

Desarmando os espíritos




Está em curso uma campanha nacional de desarmamento. Mediante pagamento de indenização, a Polícia Federal está recolhendo armas de fogo da população. Diariamente, as televisões e a mídia em geral comemoram os números da apreensão, festejando cada centena, cada milhar de trabucos, garruchas, mosquetões e arcabuzes entregues. Aparentemente, estaríamos dando um grande passo para diminuir a “onda de violência” que ameaça a sociedade. Pelo menos, é o que se quer que a população acredite.

Normalmente, quem critica uma campanha de desarmamento é automaticamente associado ao pensamento político de direita. Do tipo que diz: “o cidadão de bem tem mais é que se armar!”, pensamento que é completado por: “bandido tem mais é que morrer!”. Mas não é disso que se trata aqui. Não se critica o desarmamento pelo seu propósito, mas pela sua alegada eficiência. O desarmamento é necessário, mas não será feito por meio da entrega voluntária de armas da população.

Até as pedras sabem que os criminosos não vão entregar suas armas. Não vão se desfazer de seus instrumentos de trabalho. Ao contrário, provavelmente estão de olho nos arsenais que estão sendo recolhidos pela Polícia, prontos para serem saqueados. O que uma campanha desse tipo pode evitar, no máximo, são os acidentes domésticos do tipo criança-encontra-o-revólver-do-pai-em-cima-do-guarda-roupa.

Não que esse tipo de tragédia seja desimportante. Ao contrário, toda vida humana desperdiçada assim estupidamente é uma perda incomensurável. Se tiver ao menos o resultado de prevenir esse tipo de acidente, a campanha fará algo de bom. O problema é vender a idéia de que com isso “a sociedade” ficou mais segura. É produzir um verdadeiro “arrastão” sentimental, destinado a vender uma idéia, fabricar uma causa, criar um clima. Criar uma sensação falsa e artificial de que “nós os cidadãos de bem” estamos cumprindo a nossa parte.

Mais do que uma iniciativa de política de segurança, trata-se de mais uma iniciativa de marketing. Inflar iniciativas de marketing absolutamente vazias de conteúdo prático é só o que a grande mídia sabe fazer. Produzir um grande estardalhaço, uma “corrente pra frente”, tipo “Criança Esperança”, como se tal coisa pudesse resolver algum problema concreto.

O papel do governo como detentor do monopólio legal do uso da força é propor políticas sérias e consistentes de combate à criminalidade. Se no Brasil houvesse polícia, justiça, presídios, etc., seria até possível discutir que tipo de polícia, de justiça, de presídios são desejáveis. Mas não os há. Segurança pública e Judiciário são só mais uma das grandes lacunas históricas do Estado, como educação, saúde, política ambiental, etc. Uma das peças da máquina que não funcionam, não produzem nada, não existem na prática, constam apenas “para inglês ver”.

É bom que se diga que isso é um problema histórico, que vem de governos anteriores e persistirá para além do atual governo. Incapazes de apresentar qualquer solução efetiva para o problema da violência, assim como para qualquer outro, o governo nada mais faz do que criar peças publicitárias, como essa atual campanha. Mas um governo que paga R$ 150 bilhões de reais em serviço da dívida não merece mesmo ser levado a sério. É no máximo uma piada de mau gosto. Acredito já haver exaurido a paciência dos leitores com esse tema em textos anteriores (vide por exemplo “Receita de mãe para o governo Lula”), portanto passemos adiante.

Quanto à mídia, o seu papel é (deveria ser) o de produzir informações e opiniões capazes de formar uma massa crítica na sociedade, suficiente para que a população possa decidir que tipo de políticas são adequadas ou não. O que a mídia deveria mostrar é que, segundo dados do Ministério da Saúde, o homicídio é a principal causa de mortes no Brasil na faixa etária de 15 a 44 anos (Revista Superinteressante, ed. 200, pg. 19/20). À frente de qualquer doença e de outra estupidez como os acidentes de trânsito. Uma informação desse tipo deveria ser repercutida e problematizada.

Um debate sério sobre esse tema serviria para mostrar que o país tem estatísticas equivalentes à de uma país conflagrado. O Brasil está em guerra civil. Diariamente, na periferia das grandes cidades, assim como nos latifúndios dos grileiros, acontecem chacinas e massacres. O Brasil, país do futebol, do samba, das praias, da natureza exuberante, do povo simpático e amistoso, é um verdadeiro inferno. Um país de assassinos, um pesadelo homicida, uma terra de ninguém, um faroeste sem lei, um “Mad Max” desenfreado. Imagens essas que não “pegam bem” em qualquer espécie de mídia.

O que deveria ser discutido é o fato de que um verdadeiro genocídio está em curso nesse país. A população negra do sexo masculino entre 15 e 25 anos de idade está em extinção na periferia. A demografia já registra toda uma camada da população em que as famílias são compostas por mães-solteiras-jovens-viúvas-de-jovens-mortos-pelo-crime. Uma mutação populacional está em curso, equivalente a de países que passaram por situações reais de guerra.

Quando se diz que o Brasil está em guerra civil, não se trata de uma metáfora de autoria de agitadores alarmistas, mas de uma realidade demográfica concreta. É claro que, quando os alarmistas entram em pânico, é porque “a violência” atingiu algum jovem universitário branco da burguesia, ou classe média, como gostam de chamar. E então “a sociedade” se mobiliza e organiza campanhas do tipo “Viva Rio”, faz passeatas, engaja algumas celebridades e pára o trânsito.

E assim como deve ser considerado louvável que a campanha de desarmamento em curso reduza os acidentes do tipo criança-encontra-o-revólver-do-pai-em-cima-do-guarda-roupa, também devem ser apoiadas iniciativas “pela paz” do tipo “Viva o Rio”. Não há como ser contra iniciativas como essas, em princípio. Pelo contrário, elas deveriam ser apoiadas e expandidas. Toda vida humana é infinitamente valiosa e insubstituível. Tanto a do jovem burguês como a do negro da periferia.

Se toda vez que um Zezinho filho de dona Maria da favela fosse morto à bala a sociedade se indignasse e paralisasse com igual eficiência e estardalhaço, alguma coisa teria mudado nesse país. Há um evidente desequilíbrio na forma como as coisas são avaliadas e expostas pela mídia. Porque, como se disse acima, o que lhe interessa não é explicar concretamente os fatos, mas criar climas e mobilizações vazias como bolhas de sabão, que tão somente pacificam as consciências.

Porque a mídia não questiona a utilidade da indústria armamentista? Para que servem as armas? Para que serve um instrumento criado para destruir a vida humana? Qual é o valor de uso desse produto? Para responder a essas questões de maneira conseqüente seria preciso dizer que a indústria armamentista é a encarnação fatal da doença terminal do capitalismo como sistema de metabolismo sociorreprodutivo. Ela produz o produto que foi feito para não ser usado, mas tão somente para ser comprado e fazer circular o capital. O que é um bombardeiro nuclear de U$ 100 milhões senão um lixo de U$ 100 milhões? O que se poderia fazer de realmente útil no mundo com todo dinheiro gasto em armas?

A demonstração mais monstruosa dessa doença é o orçamento militar dos Estados Unidos, equivalente ao PIB do Brasil. Se alguém deveria ser desarmado nesse mundo, são os Estados Unidos. Como se pode tolerar a insanidade de um arsenal nuclear de 10.000 ogivas estar ao alcance das mãos de um deficiente mental, alcoólatra e psicopata entronizado como Presidente dos Estados Unidos? Como um mundo que se diz racional pode permitir isso? O mundo permite porque o sistema capitalista não sobrevive sem o incentivo estatal de encomendas de armas materialmente inúteis e economicamente perdulárias.

Armas são produzidas para equipar exércitos que nunca entrarão em guerra. Armas que vão fatalmente parar nas mãos de criminosos. Criminosos que lucram com coisas como tráfico de drogas. Drogas que são lucrativas porque são proibidas pelo Estado. Um Estado que é conivente com a ciranda financeira internacional que lava o dinheiro do narcotráfico. Narcotráfico, sonegação fiscal e desvio de verbas produzem uma massa de dinheiro virtual, que para todos os fins práticos é idêntico ao dos chamados “investidores”. Dinheiro virtual que circula livremente nas veias apodrecidas do capitalismo-cassino global.

A lavagem de dinheiro e os paraísos fiscais são tão essenciais ao capitalismo terminal de hoje quanto o complexo industrial militar. Lavagem de dinheiro, predação financeira e Estado corrupto que nos levam de volta ao Brasil do desarmamento. Com a mesma presteza com que se recolhem os trabucos, garruchas, mosquetões e arcabuzes, alguém deveria recolher as canetas assassinas de presidentes do Banco Central que decretam juros asfixiantes e outras políticas econômicas homicidas.

Aí está o verdadeiro crime, a verdadeira violência da qual a sociedade deveria se proteger. Aí estão os marginais, aí está a bandidagem. Mesmo porque, aí está a chave para a perpetuação da miséria, da exclusão, da falta de oportunidades, que são o celeiro do crime de violência. As gangues de economistas com doutorado em Harvard são mais nefastas para o país que qualquer traficante do PCC. Mas o foco da mídia está nestes, não naqueles. De modo que nem a iniciativa do governo é séria, nem o debate sobre segurança na mídia pode ser levado à sério. Não servem para desarmar o crime, mas tão somente para desarmar a crítica, desarmar o raciocínio, desarmar a reflexão, desarmar o conhecimento que poderia questionar a lógica criminosa do sistema. Desarmar os espíritos de uma população passiva e atemorizada.

Daniel M. Delfino

08/08/2004

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