8.5.07

O Conselho de Jornalismo e o escriba




Está em pauta uma discussão sobre a criação de um “Conselho Nacional de Jornalismo”. A idéia partiu há tempos da Federação Nacional dos Jornalistas, espécie de sindicato da categoria, e foi recentemente encampada pelo governo federal. A função do Conselho seria “disciplinar, orientar e fiscalizar” a prática do jornalismo. De pronto, a sugestão foi atacada pelos meios de comunicação, que de forma quase unânime, condenaram a iniciativa em seus editoriais. Jornais, TVs, Rádios, apresentaram a medida como uma tentativa do governo de censurar os meios de comunicação e obstruir a “liberdade de imprensa”. Os mais afoitos, aparentemente afeitos a teorias conspiratórias, farejaram um pendor autoritarista e ditatorial no governo do PT, como se Lula estivesse experimentando a tentação de se tornar a versão tropical do Grande Irmão.

A reação contra a idéia de um “Conselho Nacional de Jornalismo” misturou-se com a reação contra a idéia do Ministério da Cultura de criar uma Agência Nacional do Audiovisual (ANCINAV), para disciplinar o mercado de cinema, vídeo, televisão, etc. Aparentemente, estaríamos diante de uma maciça tentativa do governo Lula de manipular a imprensa e distorcer a opinião pública a seu bel-prazer. Contra essa suposta “campanha autoritária” do governo, a mídia deslanchou uma contra-ofensiva de desinformação visando confundir a população e dar a entender que “eles”, os mocinhos, os paladinos da “liberdade de expressão”, estariam sendo caçados por uma furibunda Inquisição stalinista.

Além de denunciar o ridículo de tudo isso, é importante separar os diferentes aspectos da questão. Todo governo sempre tentou de alguma maneira restringir a ação da imprensa e fazer suas operações nos bastidores, a salvo da bisbilhotice de jornalistas e do público. Este governo não é diferente neste aspecto, como em tantos outros. Um “Conselho Nacional de Jornalismo” devidamente “comprometido” viria bem a calhar no complicado momento presente, para “disciplinar, fiscalizar e orientar” jornalistas “irresponsáveis” que viessem perturbar a “ordem natural” das coisas com denúncias “inconvenientes”.

Em qualquer época, uma iniciativa desse tipo provoca mal-estar, à esquerda e à direita. Entretanto, a mídia se sentia bastante confortável com a situação anterior, vivendo parasitariamente de sobras da corte tucana, à espera de que a disputa entre as facções e gangues do amplíssimo guarda-chuva feagaceano originasse vazamento de informações, migalhas da mesa, para alimentar manchetes chocantes, escândalos de bolha de sabão e cortinas de fumaça para disputas palacianas travadas na sombra, onde as questões eram verdadeiramente resolvidas.

Agora, a mídia se sente desconfortável porque aqueles que lá estão não são “dos seus”. Não são da sua espécie. Não pertencem a famílias quatrocentonas, não fizeram doutorado em Paris, não trafegam com a esperada galhardia no “jet set” internacional. A mídia não suporta a atual corte petista. Não que por isso eles sejam muito melhores que os anteriores inquilinos do poder do Estado. São aliás mais ridículos, comportam-se como novos-ricos, deslumbrados com a posição que “alcançaram”, esquecidos que estão do passado de lutas pelo qual foram alçados. Seja como for, os novos e os antigos donos do baile não se bicam e vivem às turras. Qualquer mínima questão prática levada adiante pelo governo é pretexto para cotovelaços e encontrões nas entrelinhas dos editoriais.

Se os atuais inquilinos do poder do Estado são ridículos por seu deslumbramento de novos-ricos, a grande mídia colocando-se como defensora da “liberdade de expressão” soa ridícula em seu jacobinismo de ocasião. O traje não lhe cai bem. “Liberdade de expressão” para quem, cara pálida? Certamente não para o povo. Este não encontra ocasião para dizer o que pensa, ou qualquer coisa que diga é imediatamente desqualificada. O povo não domina o jargão das atas do COPOM, portanto não está “apto” a debater de maneira “civilizada”. Mesmo que lhe caiba dizer, antes de mais nada, que não elegeu COPOM nenhum e menos ainda lhe deu procuração para aumentar os juros e eternizar a miséria.

A mídia nunca expressou a opinião do povo brasileiro. A imprensa sempre trabalhou para os poderosos, com honrosas exceções. O Brasil esmerou-se na técnica de “mudar para continuar como antes”, inventando o telecoronelismo. As oligarquias arcaicas reciclam seus currais eleitorais seculares com o instrumento das mídias eletrônicas modernas. Políticos reacionários, corruptos, criminosos, são donos de emissoras, rádios, jornais, editoras, telefônicas, Internet, todas as formas de comunicação possíveis nos seus feudos. E nesses feudos políticos, praticam a mesma censura, cerceamento da opinião e manipulação do povo das quais querem agora acusar o governo federal.

Jornalistas independentes, autoridades subalternas, promotores e investigadores, militantes de movimentos sociais são censurados, caluniados, perseguidos, afastados, agredidos, ameaçados, mortos por esses potentados, com o beneplácito de seus dóceis jornais de província e demais meios de comunicação. Eles são “a elite”, comportam-se como donos de seus Estados e contam com a defesa de juízes, policiais, jornalistas e outros acólitos, devidamente comprados, que acobertam seus crimes e desmandos. Agora, esses acólitos bem pensantes e bem pagos esbravejam contra a suposta tentativa do governo federal de censurar a “liberdade de expressão”. Seria ridículo, se não fosse hediondo.

Que moral tem as grandes redes de TV, os grandes jornais, as grandes revistas semanais, para falar em “liberdade de expressão”? Que moral tem eles, que sempre expressaram a opinião dos poderosos, defenderam seus interesses, difundiram seus preconceitos, deseducaram o povo, ajudaram a perpetuar a miséria material e espiritual? Essa crítica da mídia ao governo evidentemente erra o alvo, porque a idéia de criar o Conselho não representa uma tentativa de cercear a “liberdade de expressão”, tentativa que na verdade é desnecessária, como se verá adiante. Mas a crítica não deixa de ser bem-sucedida, porque desvia o foco da verdadeira questão.

Enquanto todos são obrigados a vir a campo para defender a “liberdade de expressão”, inclusive este escriba, que o fará ao final do artigo, a verdadeira questão passa despercebida. Qual seja, a criminosa concentração de poder nas mãos dos proprietários dos meios de comunicação. Donos de empresas que abrigam TVs, rádios, jornais, etc., num mesmo conglomerado, concentrando um virtual monopólio da informação, a serviço de interesses anti-populares. Esse é o verdadeiro problema.

Países civilizados possuem leis que impedem esse tipo de concentração, proibindo a propriedade conjunta desses diferentes meios por uma mesma empresa. Do mesmo modo, há países onde a concentração de poder chegou ao ponto em que um pequeno grupo de grandes empresas de mídia possui um poder político decisivo. Basta lembrar o caso da eleição presidencial estadunidense de 2000, em que o candidato derrotado levou o cargo “no grito”, quando foi aclamado pela rede Fox como vencedor. Ou o caso de Silvio Berlusconi, que usou o poder de suas empresas de mídia para se eleger primeiro-ministro da Itália e com isso desmontar o Judiciário, que poderia condená-lo por suas conexões mafiosas pregressas.

A questão da concentração de poder na mídia torna-se portanto uma questão política central para o Estado contemporâneo e para seu povo. E a alternativa é evidentemente a desconcentração. TVs comunitárias, rádios comunitárias (pejorativamente alcunhadas “piratas” e policialmente desmanteladas), imprensa alternativa, iniciativas locais, websites, blogs, são a única maneira de levar adiante a informação e o debate livres, onde o povo possa ver a si mesmo, falar de si mesmo e conhecer sua realidade. É preciso romper o monopólio de grandes redes, grandes cadeias empresariais, grandes jornais, grandes revistas auto-proclamadas arautos da vontade geral.

É preciso escapar do círculo vicioso de COPOM, taxa de juros, Bolsa, cotações, mercado financeiro, FMI, especuladores, porque isso não faz parte da realidade de ninguém, a não ser dos próprios jornalistas. É o seu assunto preferencial, porque é o único que ninguém entende, é fácil, repetitivo e anestésico. Comentários de economia se parecem com as colunas de horóscopo dos jornais. Dizem coisas óbvias, vagas, repetitivas e sem substância. Qualquer texto pode ser reciclado para a semana seguinte sem que se perceba a diferença. A eterna esperança de que chova na horta da economia nacional e de que o Príncipe Encantado do “investimento estrangeiro” apareça num cavalo branco.

A mídia deveria falar de pessoas reais, de problemas reais, provocar debate, discutir à exaustão, trazer todas as opiniões. Falar sobre a miséria, a violência, o desemprego, mas não na ótica dos programas policiais das 18:00s, e sim com programas de fôlego, que fossem mostrar as origens e conexões dessa miséria. As perversas conexões que interligam a riqueza de alguns com a miséria de muitos. A mídia deveria mostrar a luta de pessoas que se articulam para mudar essa realidade, iniciativas, exemplos, inspiração, humanismo, que com certeza continuam vivos.

Nesse contexto político, evidentemente soa estranho e contraditório a idéia de criar um “Conselho Nacional de Jornalismo”. A ameaça autoritária não paira sobre a cabeça dos bem pensantes acólitos do poder instalados nos prestigiosos postos de comando da grande mídia. A ameaça existe, sim, mas ela diz respeito à outra porção da mídia. É para os jornalistas independentes que o “Conselho” foi pensado, para impedir que se tornem independentes demais.

Os jornalistas assalariados pela grande mídia não precisam de um “Conselho” para regulamentá-los. Como se o jornalismo fosse uma profissão passível de regulamentação, nos moldes daquela que rege por exemplo os médicos, os advogados, os engenheiros. Médicos, advogados, engenheiros, são profissionais que possuem formação técnica especializada, prestam serviços personalizados e de maneira individualizada. Isso é totalmente diferente de um jornalista, que é um funcionário (proletário) contratado por uma empresa que fornece um produto (informação) a uma grande massa de consumidores (público).

Médicos, advogados, engenheiros que cometem erros podem ser impedidos pelos seus respectivos Conselhos de exercer a profissão, caso se comprove que agiram com má fé ou negligência. Mas como se pode impedir um jornalista de escrever? É possível fazer isso? É necessário fazer isso? A resposta é não, porque o jornalista não tem poder sobre o que escreve. Não cabe ao jornalista a propriedade sobre aquilo que seu trabalho produz. Esse trabalho não lhe pertence, pertence ao dono da empresa de comunicação. É a ele que cabe a responsabilidade pela publicação (ou não publicação) do trabalho do jornalista.

Nesse caso, a censura já existe. Qualquer tentativa de implantar sub-repticiamente (ou nem tanto) a censura por meio de um “Conselho Nacional de Jornalismo” é supérflua, já que a censura já existe. Dentro das empresas de comunicação, todos sabem o que é “próprio” e o que é “impróprio” para publicação. Todos sabem o que agrada e o que desagrada os poderosos. Além disso, jornalistas realmente irresponsáveis, não os meramente “inconvenientes”, podem ser judicialmente responsabilizados pelo que escrevem, como já acontece na legislação atual. Como aliás acontece com qualquer profissão, mesmo nas que não dispõem de um “Conselho” para “disciplinar, fiscalizar e orientar”.

A censura é supérflua no que se refere aos jornalistas integrados ao sistema, mas é talvez “necessária” no que se refere a jornalistas independentes considerados autores “irresponsáveis” de matérias e “inconvenientes”. Talvez sejam esses os que precisam ser “orientados, fiscalizados e disciplinados” pelo “Conselho Nacional de Jornalismo”. Talvez o “Conselho” seja a maneira do governo mirar no que vê e acertar no que não vê, fingindo de morto, fingindo que não é com ele. Silenciar as vozes dissonantes, as opiniões matizadas e os comentários que vão além da superfície. Aquele 1% que não se limita a repetir o mesmo discurso de sempre.

Para quem acreditar em histórias da carochinha, sobra o argumento de que o projeto do “Conselho” se destina a tão somente aperfeiçoar a profissão de jornalista. O projeto estabelece a obrigatoriedade de que todo profissional de jornalismo seja formado numa faculdade de jornalismo. Somente jornalistas formados poderão exercer o jornalismo. Apresentada dessa maneira, a idéia parece fazer sentido, já que pode estabelecer um padrão de qualidade para o trabalho que é produzido pela mídia.

O problema é que uma faculdade de jornalismo não ensina apenas a técnica da escrita, mas ensina também a ética das redações. Ensina o que é “apropriado” e “inapropriado” de se escrever e se mostrar. Ensina o que o mercado quer ver, ouvir ou ler. Ensina a pautar o trabalho por um padrão de bom gosto e respeitabilidade que não agrida e não provoque o público. Ensina a repetir o pensamento único, o discurso dominante, os preconceitos e os valores adequados ao sistema. Ou seja, ensina a tornar o jornalismo uma atividade irrelevante.

É interessante especular sobre como seria o exame do “Conselho Nacional de Jornalismo” para conceder a “carteirinha” que autorizaria o “profissional” a exercer sua profissão. É interessante imaginar que tipo de respostas seriam consideradas “adequadas” ou “inadequadas” num exame como esse. É interessante conjeturar a respeito do critério de correção que permitirá aferir a capacidade de um determinado profissional de trabalhar como jornalista. Todo critério embute automaticamente uma tomada de posição política e ideológica a respeito do que se considera aceitável e dizível.

Seja como for, esta discussão não diz respeito a este escriba, visto que o trabalho que se desenvolve aqui não é jornalismo. É um exercício de crítica e de opinião. Esse exercício não é remunerado por nenhum patrão, nem é patrocinado por nenhuma empresa, nem é vendido a nenhum comprador. Não tem fins lucrativos; aliás, é deficitário, já que consome tempo e recursos do escriba. É uma extensão da militância política do autor.

O escriba era aquele cidadão da Mesopotâmia que rabiscava cuneiformes em tabuinhas de argila. A sua capacidade de organizar informações por meio de símbolos era a justificativa da sua existência social apartada da classe dos escravos que produziam a subsistência da sociedade. Este escriba, na condição de proletário, não partilha da mesma condição privilegiada dos jornalistas assalariados do sistema, nem aspira a ela. Ao proclamar-se um “escriba”, o autor-proletário que aqui escreve recusa-se a aceitar o monopólio dos escribas oficiais e oficiosos seu discurso monocórdio em favor da classe dominante.

Daniel M. Delfino

19/09/2004

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