A idéia de que o Estado é a solução dos problemas da sociedade vem do início do século XIX e encontra sua melhor expressão na obra de Hegel. O hegelianismo é uma filosofia idealista, já superada por Marx em sua época, de difícil aplicação prática no mundo atual. Hegel foi o primeiro filósofo a afirmar que a História tinha uma lógica e que se movia devido a forças internas objetivas, que essas forças se articulavam em conflitos, e que os conflitos se resolviam ciclicamente pela afirmação de uma nova realidade qualitativamente alterada. Trata-se da famosa lógica dialética expressa no movimento de tese-antítese-síntese.
O erro de Hegel foi o de encerrar artificialmente a dialética da História no estágio da constituição do Estado burguês europeu. O seu método dialético entrou em contradição com seu sistema dogmático, para o qual o Estado era a presença da Razão e de “Deus na História”. Para Hegel, o Estado era o fim da História. Mas a dialética da História não pode ter fim. Se o Estado burguês é a síntese de uma situação anterior resolvida pela emergência das revoluções burguesas (das quais o protótipo clássico foi a Revolução Francesa), ele é também a tese de uma nova contradição que se inicia no século XIX com a generalização da Revolução Industrial inglesa.
Quem apontou a contradição foi justamente Marx, que mostrou que a lógica que move a História é a da luta de classes (e não os desígnios abstratos da Razão). A igualdade prometida pelo Estado burguês é abstrata e superficial, pois se limita ao plano jurídico e eleitoral e não garante a igualdade substantiva no plano do trabalho e da reprodução da vida social, onde uns arcam com o ônus de produzir e outros açambarcam o bônus de consumir e desfrutar do trabalho alheio. O Estado democrático burguês é uma conquista em face do arbítrio dos privilégios feudais, mas já nasce condenado a ser tão somente o cenário institucional dentro do qual a classe trabalhadora lutará para se libertar da opressão econômica.
A luta entre as classes não se resolve com a instauração do Estado burguês, pois em oposição à burguesia a classe operária traz consigo o germe de um novo modelo de sociedade baseado na organização racional da produção social (em contraste com a anarquia perdulária e destrutiva da produção capitalista orientada pelo mercado). De acordo com o projeto de Marx, o Estado deve deixar de existir e ser substituído pela livre associação dos produtores, organizados de modo que cada um trabalhe para a sociedade na medida de suas capacidades e receba o sustento na medida de suas necessidades.
Para Marx, esse tipo de organização dos produtores associados deveria ser pensada e construída em escala mundial. A base objetiva para essa construção seria dada pela própria expansão mundial do capitalismo. O papel histórico do capitalismo seria justamente o de criar o mercado mundial que colocaria em contato todos os povos do mundo, permitindo o intercâmbio de suas culturas e produções. Nesse sentido, Marx já falava em globalização, pois no Manifesto do Partido Comunista de 1848 já estava claramente delineada essa visão do mercado mundial como cenário dentro do qual a classe trabalhadora travaria a sua luta pela libertação. Ou seja, o início do século XXI nos devolve ao dilema de meados do século XIX. Para Marx a verdadeira globalização seria aquela que permitisse o livre intercâmbio entre os produtores da riqueza social, tanto material como cultural, o que permanece sendo o desafio de nossos dias.
Num certo sentido, o Estado foi um obstáculo para a emancipação, pois, nos países centrais, desenvolveu-se sob a forma de Estado imperialista, dedicado a conquistar pela força colônias e mercados (é preciso lembrar que a principal instituição do Estado burguês são as Forças Armadas e a polícia, sempre prontos para defender a propriedade das classes dominantes e impor a submissão dos explorados), estimulando o chauvinismo e a xenofobia, com o desastroso corolário de duas Guerras Mundiais. Por outro lado, nos países atrasados, o Estado chegou a esboçar ser uma ferramenta de afirmação das populações exploradas contra o imperialismo, em busca de alguma margem real de independência material sob a forma de um projeto “nacional-desenvolvimentista”.
No contexto atual, com o fim desse nacional-desenvolvimentismo, tudo que o Estado faz, inclusive no Brasil de Lulla, é zelar pela continuidade da iníqua divisão internacional do trabalho social, na qual nos cabe oferecer juros aos especuladores a título de uma “dívida externa” fraudulenta, impagável e eterna e à custa do sangue e suor de nossas massas miseráveis. Aquela virtual utilidade emancipatória do Estado burguês periférico foi diluída na capitulação de seus dirigentes à globalização neoliberal. Mas antes disso, o projeto nacional-desenvolvimentista já estava condenado pelas paralisantes contradições do capitalismo mundial.
Na perspectiva marxista, está equivocado dizer que o “estatismo” seria por si só a solução dos problemas da miséria mundial. Não se trata de dar ao Estado a direção da vida social, mas de determinar quem controla o Estado. Uma vez que desconhece a desigualdade substantiva entre os indivíduos, ou seja, o seu papel na economia, porque seu fundamento é a igualdade jurídica abstrata, o Estado se torna inútil como instrumento de libertação. O Estado não passa de uma oficialização da separação entre o econômico e o político. Por isso Marx falava na necessidade de uma nova forma de gestão social, a Comuna, em substituição à forma Estado. Na Comuna, não existe separação entre econômico e político: os trabalhadores dirigem diretamente a produção, determinando o que produzir, onde, quando e em que quantidade, tendo em vista as necessidades humanas socialmente planejadas.
Logo, do ponto de vista marxista, a tarefa que está colocada é superar o Estado, em direção a uma forma de gestão social pós-estatal e pós-política. Chega a ser divertido o cacoete dos ideólogos burgueses de atribuir aos socialistas o culto ao Estado. Por meio dessa mistificação rasteira, o socialismo passa a ser identificado com os vícios do Estado burguês: corrupção, burocracia, ineficiência, etc. O que não é divertido é o fato de muitos daqueles que se intitulam socialistas contribuam para essa confusão ideológica ao abandonar a tarefa de destruir o Estado.
Para esclarecer essa questão é oportuno oferecer um exemplo concreto. Pense-se no caso do Brasil. O Estado brasileiro é dono de diversas empresas estatais. Entretanto, essas empresas atuam como empresas comerciais iguais às outras, concorrendo no mercado em disputa por lucros. Mas de que adianta o Estado possuir empresas estatais se se utiliza delas apenas para disputar lucros com as empresas privadas, e com esses lucros apenas engorda a arrecadação do Tesouro Nacional, e com essa arrecadação não reverte nada em benefício da população, mas tão somente paga juros da “dívida externa”?
Pior ainda, de que adianta existir uma empresa estatal se é para servir de fonte para a malversação de dinheiro público em prol dos esquemas oportunistas de grupos políticos de passagem e aventureiros de plantão dedicados a perpetuar seu poder particularista? Esse tipo corrompido de “presença do Estado na economia” só serve para fortalecer os argumentos dos neoliberais que são contra qualquer intervenção do Estado e defendem a privatização daquilo que restou do patrimônio público. Os propagandistas da “eficiência” e da “modernidade” do mundo da “livre iniciativa” empresarial estão sempre a postos como abutres à espreita de lucrativas oportunidades de locupletação às expensas da carniça do que sobrou do Estado brasileiro.
Esse discurso privatista se alimenta da péssima imagem histórica dos serviços públicos no Brasil, marcados pelo estigma da corrupção, das propinas, dos achaques, do desvio de verbas, da ineficiência, da lentidão, da burocracia, do nepotismo, dos funcionários de “má vontade”, barnabés e marajás, etc. Quem nunca foi mal atendido por um funcionário público? E do lado oposto do balcão, qual o funcionário público que deixa de perceber erros e absurdos no trabalho que faz?
Ou seja, de nada adianta ter um Estado “forte” e agigantado como o do Brasil se não há o principal: o controle social dos recursos públicos. O Estado só poderá ser uma ferramenta contra a miséria e em prol da emancipação se tiver sua prioridade invertida para beneficiar os serviços públicos de educação, saúde, transporte, habitação, saneamento, cultura, ao invés de priorizar o pagamento da “dívida externa”. E essa ferramenta somente vai funcionar se for empregada sob controle direto e democrático dos trabalhadores e da população interessada, na definição das prioridades, na escolha dos métodos e na fiscalização dos recursos e dos resultados. Ou seja, será preciso fazer uma revolução para conseguir as reivindicações básicas que o Estado burguês não atende. E na revolução a forma Estado deve ser superada por um novo poder de tipo transicional, em direção à abolição das classes e da política.
Nas periferias mundiais, a situação é idêntica à que é vivida aqui no Brasil. Vigora incontestado um projeto de desmonte e sucateamento do Estado, de privatização predatória, corrosão da soberania, entronização do predomínio das finanças sob o controle de “Bancos Centrais independentes”, entrega das riquezas naturais às mega-corporações transnacionais, destruição dos direitos trabalhistas, dos sindicatos e organizações do movimento de massas, destruição dos serviços públicos de educação, saúde, saneamento, abastecimento de água, eletricidade, telefonia, transporte, infra-estrutura, entrega desses serviços à predatória exploração da iniciativa privada, destruição das universidades públicas, saque da previdência pública por especuladores privados, degradação, desprestígio, perseguição, arrocho, demissão e extinção dos servidores públicos, etc., etc., etc.
Nesse contexto, é compreensível que o reforço e a volta do papel do Estado sejam vistos como soluções para minorar a miséria. Entretanto, é preciso novamente questionar qual é a natureza desse Estado que se quer trazer de volta. O Estado tal como está hoje (des)organizado e (des)estruturado funciona sob o estrito comando dos setores sociais identificados precisamente com o programa da globalização neoliberal. As lúmpen-burguesias nacionais periféricas, como a do Brasil, já se renderam irremediavelmente ao projeto de desmonte resumido no parágrafo anterior.
Logo, somente o Estado sob controle das classes subalternas poderá servir como instrumento de reorganização da produção social em direção à superação da miséria e à emancipação. Já não será mais o Estado burguês de Hegel, mas uma forma de “não-Estado” transicional orientado pelo projeto do fim da separação vertical hierárquica entre os produtores e os controladores da produção social, rumo a uma sociedade sem classes.
Uma sociedade sem classes será uma sociedade sem política, ou seja sem Estado, uma vez que não será mais necessário um instrumento institucional de ludíbrio dedicado a impor os interesses de uma classe sobre a outra. Na ausência das classes e do Estado, os interesses dos indivíduos sociais se manifestarão livre e democraticamente sob novas mediações organizativas horizontais e não-hierárquicas.
Por fim, para realizar o imperativo do fim do Estado, será preciso retomá-lo das mãos daqueles que o utilizam autoritariamente para perpetuar a miséria. Nesse sentido, o projeto socialista é a única forma conseqüente de anarquismo verdadeiro, capaz de superar o paradigma do Estado como instituição matriz do autoritarismo e da opressão em todas as suas formas.
Daniel M. Delfino
31/12/2005
Nenhum comentário:
Postar um comentário