Em todos os horários, em todos os canais, em todas as mídias: Olimpíadas. A febre olímpica toma conta. Atenas é aqui e agora. A todo momento, um brasileiro está prestes a entrar em campo, entrar na quadra, na piscina, no ringue, no cenário que for. A todo momento, há alguma competição se desenrolando nas históricas e veneráveis plagas da Hélade. Vestimos o uniforme, fazemos o aquecimento, esperamos o apito do juiz. Vai ser dada a largada! Em suas marcas! 3, 2, 1... É competição, e ninguém resiste a uma boa competição. Todo mundo gosta de jogo, de disputa, de animação, de torcida, de festa.
Ainda mais, sendo brasileiro, com os genes propícios para o carnaval inseridos de maneira indelével no DNA. Todo brasileiro gosta de uma farra, tudo aqui é pretexto para comemoração. Tudo que a mídia faz é soprar um pouco de entusiasmo, de chauvinismo, de patriotada, e pronto. A corrente pra frente está formada. Não importa sequer que o brasileiro, de modo geral, não entenda nada de esportes olímpicos. Quem sabe a diferença entre um ipon e um wazari? Quem sabe o que é um duplo twist estendido? Quem sabe o nome dos quatro estilos de nado? Etc., etc., etc...
Ninguém sabe. Nem sequer os jornalistas convocados para cobrir as Olimpíadas. Não deixa de ser um atestado de pobreza e de ignorância o fato de que o único esporte compreendido por aqui seja aquele em que a bola cruza a linha para se aninhar na rede. Ninguém sabe nada sobre outros esportes, porque não os acompanha. A não ser na época de Olimpíada, ninguém ouve falar nessas coisas. Esses esportes são luxo por aqui. Mas não importa. Há um brasileiro em campo. Um herói anônimo que se aventurou até Atenas para nos representar. Não importa que ninguém o conheça. Estamos todos convocados a torcer, a agitar, a vibrar, a comemorar, a nos emocionar, a... perder.
Nas Olimpíadas, os brasileiros não ganham nada. Usualmente, o Brasil ocupa alguma posição entre o 20º. e o 50º. lugar no quadro geral de medalhas. Na prática, um fiasco. A todo momento, somos convocados para saber que um brasileiro chegou em 10º., em 20º., em 30º. lugar em alguma disputa. Passamos da euforia para o sorriso amarelo do “o importante é competir”. Mas como assim? Foi para isso que ligamos a TV? Cadê a festa que nos prometeram? Não vai haver medalha coisa nenhuma? Então, pra quê todo esse circo? Pra quê esse carnaval? Muito barulho por nada?
Não, não por nada. Certamente, vale muita coisa o esforço dos abnegados atletas que conseguem, à custa de hercúleos sacrifícios, inscrever o nome do Brasil entre os participantes de uma competição que reúne a elite do esporte mundial. Ser esportista no Brasil não é fácil. Como não é fácil ser artista, e não é fácil ser muitas outras coisas. Num país de imensas carências, onde a luta pela sobrevivência transforma qualquer conquista humanizadora, como o esporte ou as artes, em “luxo”, em “privilégio”, em raridade, num país onde tudo joga contra; num país como esse, quem quer que consiga algum destaque numa atividade de nível mundial é certamente um herói.
Mas é preciso guardar as devidas proporções. A vitória nesse caso é pessoal, individual, exclusiva. No máximo, familiar. O “Brasil” não tem o direito de pegar carona nas poucas vitórias desses heróis olímpicos. O “Brasil” maltrata essas pessoas, despreza, ignora, abandona à míngua. Agora, na época das Olimpíadas, querem resultados de uma Alemanha, uma China, uma Cuba. Querem que o Brasil “vença as Olimpíadas”.
Confunde-se alhos com bugalhos. Olimpíadas não são Copas do Mundo. Se lá o Brasil é sempre favorito, aqui devemos recolher nossas bandeiras e nos resignar ao humilde e merecido enésimo lugar. Se a Copa do Mundo é o cenário em que o Brasil deixa de ser vira-lata e adquire dimensões de gigante, as Olimpíadas são o teste verdadeiro da civilidade. Jogo para gente grande. Tanto assim que, como que para espezinhar nosso estúpido orgulho de “país do futebol”, o Brasil nunca ganhou a medalha de ouro do futebol nas Olimpíadas. Este ano, nem sequer se classificou para o torneio olímpico de futebol.
O que torna essa farsa olímpica esquizofrenicamente cruel e irônica é o fato de que o Brasil tem potencial humano para realmente vencer uma Olimpíada. Superar até os Estados Unidos no quadro de medalhas. O Brasil é um caldeirão étnico de migrações dos mais variados tipos. A diversidade humana do país é certamente uma das maiores do mundo, assim como a miscigenação. Isso faz com que no Brasil se encontre o biótipo adequado para a prática de qualquer tipo de esporte. Do levantamento de peso à ginástica olímpica, do basquete ao salto em distância. Quem se dar ao trabalho de garimpar, no Brasil, achará ouro de todos os brilhos e quilates.
Mas de quem é a responsabilidade por essa garimpagem? Quem são os dirigentes do nosso esporte? Se o futebol, o “primo rico” dos esporte brasileiros, está nas mãos de uma classe dirigente que conseguiu o improvável prodígio de levá-lo à falência, o futebol que é o mais bem jogado no mundo; que dizer dos demais esportes? Com dirigentes como os que nós temos, como esperar que o Brasil chegue em algum lugar? Tanto no esporte como na vida?
O “Brasil” maltrata seu povo. Não dá educação, não dá saúde, não dá segurança, não dá moradia, não dá sequer alimentação. Agora, em troca, quer medalhas. Como se cada atleta olímpico tivesse que honrar a tradição do “manto canarinho”. Como se o “Brasil” tivesse que vencer sempre. O “Brasil” entre aspas é o Brasil da mídia. O Brasil da carnavalização, da corrente pra frente, das euforias instantâneas e vazias como bolhas de sabão.
Esse “Brasil” que vai “ganhar as Olimpíadas” não existe, é uma farsa, uma mentira escandalosa. Esse “Brasil” do ufanismo-bolha-de-sabão é só mais uma atração criada pela mídia para desviar o foco dos problemas reais. Mais um conveniente canto de sereia para embalar a empulhação marketeira do tal “espetáculo de crescimento”.
A mídia aqui joga o jogo da classe dominante brasileira. A mesma classe dominante predadora, arqui-reacionária, preguiçosa, corrupta e covarde, que se encastela nos seus privilégios de mando feudal e se exime da sua parcela de responsabilidade histórica na tarefa de construir o país. A mesma que canibaliza até representantes da classe trabalhadora e os transforma, uma vez no governo, em defensores exemplares do modelo de exclusão. O modelo que sacramenta os privilégios feudais como uma espécie de cláusula pétrea da nossa sociabilidade, nem que para isso tenha que continuar condenando dezenas de milhões a não ter educação, saúde, habitação, segurança, etc...
A mídia é parte indissociável desse poder reacionário e corrupto. As grandes empresas de comunicação de massas no Brasil obedecem a seus patrões, mais do que ao interesse do público. Os donos de TVs e jornais são eles próprios políticos coronelistas e clientelistas, ou no mínimo são estritamente fiéis aos interesses dessa classe. Dos mais afastados rincões aos caóticos grandes centros, os barões da mídia praticam, a serviço de seus pares da elite, a consagrada e milenar técnica do pão e circo. Futebol e telenovelas. Big Brother e Olimpíadas. Os conteúdos do circo são indiferentes. O que importa é que tenhamos carnaval, tenhamos corrente pra frente, tenhamos Criança Esperança...
As Olimpíadas, no circo da nossa mídia, são somente mais um pretexto incidental. Mais uma ilusão a ser vendida para um povo sempre crédulo, sempre pronto para se pendurar na fé, (só não se sabe fé em quê...). A fé em que uma medalha da Daiane possa nos redimir de nossa eterna insignificância. Pobre Daiane...
Daniel M. Delfino
20/08/2004
Ainda mais, sendo brasileiro, com os genes propícios para o carnaval inseridos de maneira indelével no DNA. Todo brasileiro gosta de uma farra, tudo aqui é pretexto para comemoração. Tudo que a mídia faz é soprar um pouco de entusiasmo, de chauvinismo, de patriotada, e pronto. A corrente pra frente está formada. Não importa sequer que o brasileiro, de modo geral, não entenda nada de esportes olímpicos. Quem sabe a diferença entre um ipon e um wazari? Quem sabe o que é um duplo twist estendido? Quem sabe o nome dos quatro estilos de nado? Etc., etc., etc...
Ninguém sabe. Nem sequer os jornalistas convocados para cobrir as Olimpíadas. Não deixa de ser um atestado de pobreza e de ignorância o fato de que o único esporte compreendido por aqui seja aquele em que a bola cruza a linha para se aninhar na rede. Ninguém sabe nada sobre outros esportes, porque não os acompanha. A não ser na época de Olimpíada, ninguém ouve falar nessas coisas. Esses esportes são luxo por aqui. Mas não importa. Há um brasileiro em campo. Um herói anônimo que se aventurou até Atenas para nos representar. Não importa que ninguém o conheça. Estamos todos convocados a torcer, a agitar, a vibrar, a comemorar, a nos emocionar, a... perder.
Nas Olimpíadas, os brasileiros não ganham nada. Usualmente, o Brasil ocupa alguma posição entre o 20º. e o 50º. lugar no quadro geral de medalhas. Na prática, um fiasco. A todo momento, somos convocados para saber que um brasileiro chegou em 10º., em 20º., em 30º. lugar em alguma disputa. Passamos da euforia para o sorriso amarelo do “o importante é competir”. Mas como assim? Foi para isso que ligamos a TV? Cadê a festa que nos prometeram? Não vai haver medalha coisa nenhuma? Então, pra quê todo esse circo? Pra quê esse carnaval? Muito barulho por nada?
Não, não por nada. Certamente, vale muita coisa o esforço dos abnegados atletas que conseguem, à custa de hercúleos sacrifícios, inscrever o nome do Brasil entre os participantes de uma competição que reúne a elite do esporte mundial. Ser esportista no Brasil não é fácil. Como não é fácil ser artista, e não é fácil ser muitas outras coisas. Num país de imensas carências, onde a luta pela sobrevivência transforma qualquer conquista humanizadora, como o esporte ou as artes, em “luxo”, em “privilégio”, em raridade, num país onde tudo joga contra; num país como esse, quem quer que consiga algum destaque numa atividade de nível mundial é certamente um herói.
Mas é preciso guardar as devidas proporções. A vitória nesse caso é pessoal, individual, exclusiva. No máximo, familiar. O “Brasil” não tem o direito de pegar carona nas poucas vitórias desses heróis olímpicos. O “Brasil” maltrata essas pessoas, despreza, ignora, abandona à míngua. Agora, na época das Olimpíadas, querem resultados de uma Alemanha, uma China, uma Cuba. Querem que o Brasil “vença as Olimpíadas”.
Confunde-se alhos com bugalhos. Olimpíadas não são Copas do Mundo. Se lá o Brasil é sempre favorito, aqui devemos recolher nossas bandeiras e nos resignar ao humilde e merecido enésimo lugar. Se a Copa do Mundo é o cenário em que o Brasil deixa de ser vira-lata e adquire dimensões de gigante, as Olimpíadas são o teste verdadeiro da civilidade. Jogo para gente grande. Tanto assim que, como que para espezinhar nosso estúpido orgulho de “país do futebol”, o Brasil nunca ganhou a medalha de ouro do futebol nas Olimpíadas. Este ano, nem sequer se classificou para o torneio olímpico de futebol.
O que torna essa farsa olímpica esquizofrenicamente cruel e irônica é o fato de que o Brasil tem potencial humano para realmente vencer uma Olimpíada. Superar até os Estados Unidos no quadro de medalhas. O Brasil é um caldeirão étnico de migrações dos mais variados tipos. A diversidade humana do país é certamente uma das maiores do mundo, assim como a miscigenação. Isso faz com que no Brasil se encontre o biótipo adequado para a prática de qualquer tipo de esporte. Do levantamento de peso à ginástica olímpica, do basquete ao salto em distância. Quem se dar ao trabalho de garimpar, no Brasil, achará ouro de todos os brilhos e quilates.
Mas de quem é a responsabilidade por essa garimpagem? Quem são os dirigentes do nosso esporte? Se o futebol, o “primo rico” dos esporte brasileiros, está nas mãos de uma classe dirigente que conseguiu o improvável prodígio de levá-lo à falência, o futebol que é o mais bem jogado no mundo; que dizer dos demais esportes? Com dirigentes como os que nós temos, como esperar que o Brasil chegue em algum lugar? Tanto no esporte como na vida?
O “Brasil” maltrata seu povo. Não dá educação, não dá saúde, não dá segurança, não dá moradia, não dá sequer alimentação. Agora, em troca, quer medalhas. Como se cada atleta olímpico tivesse que honrar a tradição do “manto canarinho”. Como se o “Brasil” tivesse que vencer sempre. O “Brasil” entre aspas é o Brasil da mídia. O Brasil da carnavalização, da corrente pra frente, das euforias instantâneas e vazias como bolhas de sabão.
Esse “Brasil” que vai “ganhar as Olimpíadas” não existe, é uma farsa, uma mentira escandalosa. Esse “Brasil” do ufanismo-bolha-de-sabão é só mais uma atração criada pela mídia para desviar o foco dos problemas reais. Mais um conveniente canto de sereia para embalar a empulhação marketeira do tal “espetáculo de crescimento”.
A mídia aqui joga o jogo da classe dominante brasileira. A mesma classe dominante predadora, arqui-reacionária, preguiçosa, corrupta e covarde, que se encastela nos seus privilégios de mando feudal e se exime da sua parcela de responsabilidade histórica na tarefa de construir o país. A mesma que canibaliza até representantes da classe trabalhadora e os transforma, uma vez no governo, em defensores exemplares do modelo de exclusão. O modelo que sacramenta os privilégios feudais como uma espécie de cláusula pétrea da nossa sociabilidade, nem que para isso tenha que continuar condenando dezenas de milhões a não ter educação, saúde, habitação, segurança, etc...
A mídia é parte indissociável desse poder reacionário e corrupto. As grandes empresas de comunicação de massas no Brasil obedecem a seus patrões, mais do que ao interesse do público. Os donos de TVs e jornais são eles próprios políticos coronelistas e clientelistas, ou no mínimo são estritamente fiéis aos interesses dessa classe. Dos mais afastados rincões aos caóticos grandes centros, os barões da mídia praticam, a serviço de seus pares da elite, a consagrada e milenar técnica do pão e circo. Futebol e telenovelas. Big Brother e Olimpíadas. Os conteúdos do circo são indiferentes. O que importa é que tenhamos carnaval, tenhamos corrente pra frente, tenhamos Criança Esperança...
As Olimpíadas, no circo da nossa mídia, são somente mais um pretexto incidental. Mais uma ilusão a ser vendida para um povo sempre crédulo, sempre pronto para se pendurar na fé, (só não se sabe fé em quê...). A fé em que uma medalha da Daiane possa nos redimir de nossa eterna insignificância. Pobre Daiane...
Daniel M. Delfino
20/08/2004
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