8.5.07

Divagação sobre o trânsito




O automóvel seria a invenção mais genial do mundo, se somente eu tivesse um. Se somente eu pudesse andar por todas as ruas e avenidas da cidade, sem me preocupar com o tráfego, com semáforos, com pedestres. Se eu pudesse ir para onde quisesse, sem qualquer restrição de horário, de velocidade e de estacionamento. O automóvel de uso pessoal e exclusivo seria o verdadeiro paraíso da praticidade e da funcionalidade, o agente da mais perfeita liberdade pessoal. Sem falar no “status” que essa genial invenção exclusiva proporcionaria ao seu feliz proprietário.

Infelizmente, outros 5,5 milhões de paulistanos também possuem automóveis. Todos pensaram a mesma coisa: liberdade, status, praticidade. E estão todos nas ruas, ao mesmo tempo. O que seria o paraíso se converte no inferno. O inferno do trânsito. A palavra “trânsito” é uma das expressões mais duplipensadas da linguagem coloquial. Quando se diz “trânsito” no uso coloquial, está se falando de algo que significa o exato contrário do sentido do verbo transitar. Transitar significa ir de um lugar para o outro. Já o “trânsito” é o que acontece quando não se pode ir para lugar nenhum.

A frase: “hoje tinha muito trânsito” significa que não se pôde transitar. Ou seja, que na verdade, não havia trânsito, no sentido próprio. Havia um congestionamento. “O trânsito estava ruim” é uma expressão melhor, porque indica que a palavra trânsito tem algo a ver com circulação. E indica que não havia circulação. Porque geralmente, de fato, não há circulação. Não há circulação possível quando estão nas ruas 5,5 milhões de automóveis, em vias onde no máximo caberiam meio milhão.

O trânsito é o maior problema de toda grande cidade. As reclamações contra o trânsito são a primeira queixa de todo urbanóide quando se fala na vida das grandes aglomerações, ao lado da violência. Isso porque perde-se sempre algo como três horas ou mais por dia preso no “trânsito”. A vida nas cidades grandes é um inferno porque o trânsito não funciona e condena seus habitantes a uma tortura diária infindável. Se não bastasse a jornada normal de trabalho, a dupla jornada em casa, a tripla para quem estuda, temos a quarta jornada, a ida e a volta entre casa, trabalho, local de estudo. Uma quarta jornada tão desgastante e massacrante quanto as outras três, mas pela qual não há qualquer compensação, qualquer sentido de realização.

Em função do trânsito de automóveis as grandes metrópoles do século XX foram construídas e formatadas. Verdadeiras aberrações arquitetônicas e urbanísticas foram erguidas para tentar dar vazão ao trânsito. Viadutos, pontes, túneis, passagens, estacionamentos, transformaram os espaços urbanos em hábitat para carros, ao invés de pessoas. Carros e ônibus transformaram o centro das cidades num caos de barulho e fumaça. Saem as praças, entram os túneis. Saem os cinemas, entram os viadutos. Saem as calçadas, entram os estacionamentos. Saem os jardins, entram as passarelas. Saem as árvores, entram os semáforos. A cidade pertence aos carros. Andar a pé se transformou numa aventura incerta. O que não significa que o automóvel em si seja algo muito mais seguro.

O que importa é que tudo está estruturado de uma tal maneira que o automóvel se tornou o único meio de transporte concebível, o único para o qual efetivamente são propostos medidas públicas e privadas, urbanísticas e comerciais. Não se atenta para o fato de que o automóvel individual de passeio é a pior solução possível para o transporte de massas, em termos humanos, ecológicos, urbanísticos e funcionais. Se há milhões de pessoas que precisam ir para uma mesma direção, uma linha de metrôs bem servida e confortável resolveria o problema de maneira muito mais rápida e prática.

O investimento privado na aquisição de carros e o investimento público na construção de vias, despendido ao longo de décadas, teria sido muito melhor aproveitado na construção de uma abrangente rede de metrôs. Um investimento sem dúvida muito custoso, mas ao mesmo tempo de enorme utilidade e retorno garantido. Sem contar o fato de que a ausência de milhões de carros nas ruas preservaria essas mesmas ruas como espaços de convivência civilizada. Todo percurso precisaria ser completado por trechos de caminhada. Mas isso não seria problema, já que não haveria a fumaça dos escapamentos para asfixiar e intoxicar, como hoje acontece, os eventuais e temerários pedestres.

Não se trata de defender aqui a postura utópica de substituir unilateralmente e por escolha pessoal o automóvel pelo transporte coletivo. Não será uma escolha pessoal de um ou outro motorista que optar pelo transporte público que vai mudar o sistema. Mesmo porque, não existe propriamente transporte coletivo. Existem ônibus, em número sempre insuficiente, sempre atrasados, sempre lotados, desconfortáveis, desumanos, igualmente presos no “trânsito”. E alguns dizem que existe metrô, embora suas linhas não alcancem senão uma ínfima porcentagem do número total de usuários potenciais que dele realmente necessitam e ficam “na mão”, caso deste escriba.

A possibilidade de substituir carros por metrôs pode ser atestada por uma experiência muito simples. Quem pega um caminho errado na hora do “rush” fica preso no “trânsito” por horas, porque não consegue sair. Não consegue sair porque o “trânsito” está encarrilhado, como um trem composto de vagões individuais. Em cada grande avenida, uma ou duas faixas de carros e uma de caminhões, todas paradas. Uma fila interminável de carros indo todos numa mesma direção e impedindo que alguém mude de faixa. Um pneu furado, numa via estratégica, é capaz de parar a cidade inteira, já que não há alternativa viável capaz de escoar o tráfego. Porque não substituir essa estúpida fila de “vagões individuais” por vagões coletivos que iriam todos também na mesma direção? Ou seja, substituir carros por metrôs?

Uma cidade sem carros, mesmo uma grande cidade, seria algo bastante diferente daquilo que conhecemos hoje. Entretanto, foram inventados os carros, e milhões os compraram. Estamos condenados a viver numa cidade de máquinas. Se a constituição do lar burguês foi a grande ficção capitalista do século XIX (“minha casa é meu castelo”), o automóvel o foi no século XX. A idéia de que o automóvel representa um patamar de realização pessoal e status foi a grande ficção descoberta pela publicidade para criar um culto, uma “civilização do automóvel”. A ilusão mencionada no primeiro parágrafo, de que um carro é o máximo instrumento de liberdade, de status e de praticidade é uma crença que vigora na prática como guia das decisões pessoais de adquirir automóveis, e das decisões públicas de adaptar as cidades para os automóveis.

As pessoas compram carros imaginando que com eles serão livres, poderão ir para onde quiserem, ficarão independentes do transporte coletivo, serão donos do próprio horário. Evidentemente, isso é uma mentira. O motorista se transforma num escravo de seu carro e do “trânsito”. A “civilização do automóvel” é a maior fraude jamais forjada pela publicidade. Independentemente disso, a indústria automobilística se transformou no carro chefe de toda economia capitalista. É a indústria que mais “gera empregos”, diretos e indiretos. Essa virtualidade origina as disputas entre países e regiões, que se digladiam em guerras fiscais pelo duvidoso privilégio de sediar fábricas de carro. O “desenvolvimento econômico” passou a ser sinônimo da implantação de indústrias automobilísticas.

Não se percebe que com isso está sendo fabricado, além do trânsito caótico, o desastre ambiental global. O famigerado crescimento da economia chinesa, festejado por capitalistas e “comunistas” se baseia no abandono das bicicletas pelos carros. Viadutos, pontes, estacionamentos, estão transformando as grandes cidades chinesas em cópias dos desastres urbanísticos ocidentais, com previsíveis conseqüências apocalípticas para o meio ambiente global. Se todos os povos do mundo, inclusive chineses e indianos, por exemplo, eventualmente ascendessem ao mesmo padrão de consumo vigente nos Estados Unidos, com sua população composta de cabeça, tronco e rodas, teríamos algo como o que acontece no filme “O Dia Depois de Amanhã” no prazo de algumas décadas.

É típico porém da economia capitalista não pensar no futuro. É essencial a esse modo de reprodução sócio-metabólico esquecer que está inserido num contexto sócio-histórico e natural maior. A economia é um subsistema menor da ecologia, e não o contrário. Os recursos naturais são finitos e precisam ser racionalmente administrados, o que não é possível num sistema que tem a contínua expansão espiral como dimensão essencial e inescapável de seu funcionamento. O capitalismo está condenado a expandir-se, produzindo excesso, abundância, desperdício e miséria. E poluição.

A indústria automobilística continua fazendo a sua parte nessa férrea “lógica” da irracionalidade expansionista, produzindo automóveis cada vez mais modernos, poderosos, confortáveis, “estilosos”. É preciso continuamente agregar valor ao produto. A publicidade sabe disso e não vende os produtos em si, vende as fantasias a ele associadas. E para despertar fantasias, nada mais poderoso que um automóvel. O dono de um automóvel deve sentir-se o próprio dono do mundo.

O imaginário da “civilização do automóvel” é todo ele sexual. Há uma subcultura de pessoas carentes ou inseguras que substitui o relacionamento efetivamente humano por um contato superficial mediado por latarias reluzentes e escapamentos barulhentos. Há o comportamento de exibir a potência do acelerador como se isso pudesse compensar a potência que provavelmente falta no pênis. Há o habito de exibir carros potentes e vistosos para atrair fêmeas, como os pavões que exibem a cauda, já que não se consegue atraí-las por algum atributo efetivamente humano.

Essa fantasia de poder se mostra especialmente perniciosa num país como o Brasil, em que há um consenso de que as regras foram feitas para serem quebradas. Aqui, ser livre é desobedecer as regras. Ignora-se assim a lição básica de Kant, na “Crítica da Razão Prática”, de que ser livre é obedecer apenas a regras racionalmente elaboradas. No Brasil, a sinalização de trânsito é vista como um empecilho ao tráfego e não como um auxílio. Um exemplo disso é o que acontece nos semáforos.

Desinventaram o semáforo. O sinal é um instrumento que serve para que o motorista não tenha que se preocupar com os carros que vêm do sentido perpendicular. Basta esperar o sinal verde para sair. Mas os motoristas desprezam o semáforo, sobem devagar na faixa para pedestres, olham para ver se vem vindo alguém e saem antes do sinal abrir. Ora, se é preciso olhar para ver se vem carro, para que serve o semáforo? Não serve para nada, foi desinventado. Assim como as setas, as faixas, os limites de velocidade. Obedece quem quer, e desobedecem quase todos, quando “não há ninguém olhando”.

Isso provavelmente explica o elevado número de mortes no trânsito. As pessoas se sentem presas pelas regras nos dias de semana. Nos fins de semana e feriados prolongados, querem “descontar” o tempo perdido. Querem vivenciar a ilusão de liberdade que lhe foi vendida e dirigem de maneira alucinada, majoritariamente movidos a substâncias etílicas. Daí o elevado número de acidentes e mortes. O trânsito mata em torno de 50 mil pessoas por ano no Brasil, em acidentes estúpidos provocados por direção irresponsável. Um número equivalente ao de soldados estadunidenses mortos na guerra do Vietnã, lembra uma antiga campanha das autoridades que pediam responsabilidade no trânsito.

Por falar em guerra, não há metáfora para melhor para descrever o que acontece no trânsito todos os dias. Quem atravessa uma cidade inteira como São Paulo, como faz este escriba, tem a sensação de estar de fato atravessando um cenário de guerra. Não há um dia em que não se vejam ambulâncias, carros de polícia, guinchos de resgate, sirenes ligadas, veículos “no prego”, faixas interditadas. Um cenário de guerra em que se vê destroços pelo caminho, e se reza para não ser atingido pelo azar de uma batida ou um motoboy irresponsável.

A situação descrita três parágrafos acima, a pressa de cruzar o sinal ainda vermelho, não acontece apenas nos horário ermos da madrugada, quando não é mesmo seguro respeitar os semáforos. Acontece a qualquer hora do dia, em qualquer cruzamento. Esse comportamento de pressa patológica indica que as pessoas estão sobrecarregadas por uma pressão sobre-humana em sua rotina e não conseguem administrar o tempo a ser despendido no “trânsito”. Querem chegar mais rápido, passar na frente de quem for preciso, disputar cada centímetro, cada minuto, transformando o trajeto numa guerra, como se com isso conseguissem “ganhar tempo”. Quem se dispor a calcular percebe imediatamente que não se ganha tempo com esse tipo de direção. Ganha-se quando muito uma úlcera.

A impaciência de cada um multiplicada pela irritação de todos produz o inferno do trânsito. Por falar em inferno, lembremos Sartre, que disse: “O inferno são os outros”. Agora sabemos o que essa frase quer dizer. O inferno são os outros carros. Jean Paul Sartre deve ter sacado essa pensata existencialista enquanto circulava pela legendária e inextricável rotatória da Place de La Concorde, em Paris, perdido em algum lugar entre o ser e o nada.

Daniel M. Delfino

14/09/2004

Nenhum comentário: