31.5.07

As crises do capital e a vida dos trabalhadores




No dia 27 de fevereiro de 2007 a bolsa de valores de Xangai, na China, teve uma queda de 9%, a pior em 10 anos. Essa queda provocou abalos em todos os mercados financeiros do mundo, com as bolsas fechando em baixa por toda parte, inclusive no Brasil (a Bovespa caiu 6,6% no dia 28/2). Seguiu-se a esse abalo o anúncio de problemas sérios também na economia mais importante do sistema, a dos Estados Unidos. Aumentaram os temores de que a bolha especulativa no mercado imobiliário estadunidense esteja prestes a estourar. O estouro da bolha teria efeitos importantes no conjunto da economia mundial. Analistas começam a falar na possibilidade de um novo ciclo de recessão, interrompendo o atual ciclo de crescimento global que se iniciou em 2003.

Em outras palavras, podemos estar diante de mais uma crise econômica do sistema capitalista. Apenas para que se possa ter uma noção do que isso significa, o último ciclo de recessão, que se estendeu entre 2000 e 2002, teve como efeitos, entre outros, a quebra da economia da Argentina, em Dezembro de 2001, resultando nos famosos panelaços que derrubaram 5 presidentes em um mês. As revoltas que sacudiram o continente latino-americano naquele período, como as da Bolívia em 2000, 2003 e 2005, e do Equador em 2003; assim como as eleições de candidatos que posavam como alternativos ao neoliberalismo (mais tarde, provariam que não eram, seguindo o mesmo modelo, como Lula no Brasil); estão ligadas a problemas econômicos gerados pela recessão mundial daquele período.

Estamos vivendo portanto numa época em que as crises econômicas adquiriram um caráter de fenômeno universal, com propagação instantânea de um país para o outro e conseqüências globais, afetando o conjunto da humanidade. Além de ameaçar o mundo com guerras constantes e o perigo do apocalipse ambiental (dramaticamente exemplificado pelo problema tardiamente reconhecido do aquecimento global), sem falar na miséria em que vive a imensa maioria da humanidade; o sistema capitalista também nos ameaça com o simples desenvolvimento do seu funcionamento “normal”, que periodicamente ocasiona crises econômicas com graves efeitos destrutivos sobre a vida das massas. Torna-se fundamental, portanto, do ponto de vista dos trabalhadores, entender a dinâmica dessas crises, para desenvolver as respostas políticas adequadas.

As crises periódicas do capital

Desde que Marx estabeleceu cientificamente os princípios da economia política dos trabalhadores, o fenômeno das crises econômicas já é até certo ponto bem conhecido. O modelo básico de uma crise econômica capitalista é o das crises de superprodução de mercadorias. Esse tipo de crise se origina num defeito fundamental e insuperável do capitalismo, que só pode ser vencido por meio da destruição desse modo de produção irracional. A superprodução acontece quando a economia produz mais mercadorias do que é possível consumir. E a economia capitalista é forçada por sua própria lógica a funcionar dessa maneira, pois: (1) de um lado, existe a pressão para que se produza cada vez mais em menos tempo, com o uso de novas tecnologias, e com a conseqüente diminuição da quantidade de força de trabalho humana empregada, para diminuir os custos; e (2) de outro lado, a diminuição do número de trabalhadores empregados faz com que diminua o número de pessoas que poderá consumir as mercadorias.

Aquilo que as empresas de um determinado ramo da economia conseguem ganhar com o aumento da produtividade, reduzindo seus custos e diminuindo a quantidade de trabalhadores empregados, resulta em perdas para o conjunto da economia, pois esses trabalhadores demitidos não poderão consumir o que os outros ramos da economia produzem. Logo, as empresas desses outros ramos serão forçadas também a demitir. E os trabalhadores, uma vez demitidos, não poderão consumir o que aquele primeiro setor que aumentou a produtividade foi capaz de produzir. A sincronização desse movimento entre vários setores da economia simultaneamente é o que produz a recessão numa determinada economia nacional.

Grosseiramente, esse é o esquema básico de uma crise econômica capitalista. Marx dizia que “não existe crise permanente do capital, existem crises periódicas em permanência”. Com isso ele queria dizer que enquanto existir o capitalismo existirão crises desse tipo, mas essas crises estarão intercaladas com momentos de crescimento, num movimento de ondulação sem fim, como uma montanha russa.

A crise estrutural do capital

Naturalmente, os economistas e políticos burgueses tentam tomar medidas para evitar que as crises se tornem graves o suficiente para abalar o sistema e permitir que seja derrubado, o que poria um fim na sua dominação de classe. A burguesia foi obrigada a reconhecer a necessidade de tais medidas pela irrupção da crise de 1929, a mais grave do sistema capitalista mundial, que provocou uma depressão mundial, desemprego massivo nas economias centrais (Estados Unidos e Europa), a ascensão do nazismo na Alemanha e indiretamente a própria eclosão da 2a. Guerra Mundial. No pós-guerra, para impedir uma revolução socialista na Europa que desse aos trabalhadores a condição de organizar a economia segundo as necessidades sociais, a burguesia passou a fazer concessões, criando políticas de Estado para chegar ao pleno emprego. Elevaram-se os salários e concederam-se benefícios aos trabalhadores, que ingressaram na chamada “sociedade de consumo” e deram fôlego para que o capitalismo sobrevivesse em plena superprodução de mercadorias.

O resultado dessas políticas de bem-estar social foi uma relativa atenuação das crises nos países centrais nos anos de 1945-1970, conhecidos como os “anos dourados” do capitalismo. A economia cresceu vertiginosamente nesse período e houve espaço até mesmo para que países periféricos como o Brasil vivessem o seu “milagre econômico”. Entretanto, isso não significa que as contradições tivessem sido eliminadas. Os próprios mecanismos criados para administrar as crises, como os sistemas de crédito, endividamento, financeirização, etc., acabam se tornando fatores de novas crises, por meio da especulação, etc.

Os “anos dourados” do capitalismo também apresentaram outras formas de contradição. Além do consumo de massa, a economia estadunidense em particular também se tornou dependente das encomendas do Estado junto ao complexo-industrial militar para equipar o monstruoso arsenal de destruição de massa montado no contexto da Guerra Fria. Sem os gastos do Estado em ciência, tecnologia e produção empregada para a guerra, a economia dos Estados Unidos não poderia crescer tanto. Daí a necessidade permanente de intervenções imperialistas, como a do Vietnã nos anos 60 e a do Iraque nos dias de hoje. Trocou-se a Guerra Fria pela “guerra ao terror”, mas o fundamento econômico do militarismo estadunidense permaneceu o mesmo.

A grande diferença entre um período e outro é que desde o início da década de 1970 os mecanismos do chamado “estado de bem-estar social” que propiciaram a aparição da “sociedade de consumo” e dos “milagres econômicos” já não funcionam mais. A revolução tecnológica (alguns autores falam em 3a. Revolução Industrial, depois daquelas da máquina a vapor e dos motores de combustão) da informática, da robótica, das telecomunicações, da internet; bem como as crises do petróleo desde 1973/79, a volta do liberalismo desenfreado (neoliberalismo), o unilateralismo dos Estados Unidos, o protecionismo nas disputas comerciais entre as potências, a globalização dos mercados de trabalho; tudo isso pôs fim aos canais artificiais que permitiam aos gestores do capitalismo deslocar as crises econômicas. Voltamos a um cenário em que novas crises como a de 1929 se tornam uma ameaça palpável no horizonte.

As crises periódicas do capital explicadas por Marx passam a acontecer num momento em que não existem mais mecanismos de deslocamento das contradições capazes de atenuar seus efeitos destrutivos. Isso nos autoriza a falar, segundo Mészáros (“Para além do capital”, 2003, Ed. Boitempo), em uma “crise estrutural do capital”. Vivemos num período em que o capitalismo não pode escapar das crises sem um agravamento mortal das suas características destrutivas: guerra, degradação ambiental, desemprego e miséria generalizada.

A próxima crise econômica

Uma característica recente do capitalismo, típica do nosso período histórico, e portanto impossível de ser prevista por Marx, é o entrelaçamento entre os ciclos da economia dos Estados Unidos, a mais poderosa do sistema, e o restante da economia mundial. A história econômica estadunidense revela uma seqüência de 31 ciclos econômicos entre 1854 e 1991, com uma média de 35 meses de expansão e dezoito meses de declínio (Fonte: “Império do Terror – Estados Unidos, ciclos econômicos e guerras no início do século XXI”, José Martins, 2005, Ed. Instituto José Luís e Rosa Sunderman). Entre 1991 e 1999/2000, os Estados Unidos cresceram, levando o resto do mundo consigo. Quando a bolsa NASDAQ estourou em 2000 e o WTC caiu em 11/09/2001, os Estados Unidos entraram num ciclo de declínio, trazendo também o restante do mundo consigo. Ou seja, estabeleceu-se um padrão pelo qual quando os Estados Unidos crescem, o mundo cresce; quando os Estados Unidos param, o mundo pára.

Isso significa que a crise que está se gestando no mercado imobiliário estadunidense pode ser o estopim da próxima crise econômica global. O mercado da especulação imobiliária foi um dos principais sustentáculos do ciclo de crescimento da década de 1990, e foi o único que sobreviveu depois do estouro da bolha especulativa da “nova economia” da internet em 2000. Trata-se de uma forma de crescimento artificial e degenerado em relação ao mecanismo clássico da superprodução, pois se caracteriza pela financeirização e pelo “efeito riqueza” que ela gera. Convém portanto observar mais de perto esse fenômeno.

A especulação imobiliária consiste num movimento circular em que os preços dos imóveis residenciais se tornam cada vez mais altos. Com os seus imóveis valorizados, os consumidores estadunidenses fazem hipotecas e tomam empréstimos nos bancos. Com esses empréstimos, entregam-se ao consumo desenfreado de mercadorias, principalmente os importados da China. O consumismo estadunidense sustenta a economia mundial em crescimento e também a economia interna. Os aplicadores investem em títulos acionários das imobiliárias, com base na promessa de valorização contínua dos imóveis. As imobiliárias, por sua vez, com o ingresso massivo de recursos, oferecem mais e mais empréstimos (há famílias que fazem 2 ou 3 hipotecas do mesmo imóvel), que permitem às famílias consumir mais e também construir mais imóveis, aquecendo o mercado da construção civil. A maioria das famílias estadunidenses possui dívidas mais altas do que a sua renda.

O problema acontece quando as hipotecas começam a não ser pagas. As imobiliárias que atuam no mercado secundário (2as. hipotecas) começam a ter prejuízos, que ameaçam desvalorizar suas ações, que por sua vez ameaçam desvalorizar as ações do setor em geral, e do conjunto do mercado acionário, que por sua vez repercute no conjunto da economia estadunidense e mundial. O estouro da especulação imobiliária já entrou na pauta dos analistas como um fato consumado, que fatalmente vai acontecer em breve, só não se sabe exatamente em que momento, em questão de semanas ou de meses. Essa é a razão do nervosismo desses analistas e do conjunto da mídia burguesa em relação à economia mundial.

As conseqüências para os trabalhadores

As conseqüências desse fenômeno típico do atual capitalismo mundial para a vida dos trabalhadores no Brasil serão seríssimas, pois, como vimos, uma recessão nos Estados Unidos afetaria sincronizadamente o restante da economia mundial. O consumo das famílias estadunidenses é o que sustenta o alto crescimento da industrialização da China. E a China, por sua vez, tendo em vista a sua condição de oficina que abastece o consumismo estadunidense, é um dos maiores importadores mundiais de “commodities”, nome dado aos produtos primários como petróleo, minério de ferro, cobre, soja, açúcar, álcool, aço, etc., fornecidos pelos países periféricos. Uma eventual diminuição da importação de commodities pela China teria conseqüências catastróficas para as economias da América Latina, como a do Brasil, que nas últimas décadas experimentaram um processo de desindustrialização e especialização regressiva e se transformaram, como na época colonial, em meros fornecedores de commodities.

O último relatório semestral do FMI sobre economia mundial (disponível em: “FMI - World Economic Outlook – Spillovers and Cycles in the Global Economy”, www.imf.org, Abril 2007) não poderia ser mais claro quanto às conseqüências da recessão que se avizinha para os países periféricos: “Um grande número de países emergentes e em desenvolvimento devem manter firmemente a estabilidade macroeconômica e financeira face aos ingressos massivos de moedas estrangeiras. Em geral, as reformas estruturais progrediram de maneira desigual no período recente e resta muita coisa a ser feita. Uma aceleração das reformas do mercado de trabalho na América Latina dinamizaria a fraca produtividade da região. A implantação de sistemas estáveis, transparentes e equilibrados para fornecer infraestrutura e para a exploração de recursos naturais poderia ajudar a reduzir os riscos de gargalos, corrupção e carência de investimentos, o que pode representar sérios obstáculos ao crescimento de longo prazo” (tradução do “Boletim Crítica Semanal da Economia”, n. 15, Abril de 2007, criticasemanal@uol.com.br).

Traduzido do “economês”, o FMI quer dizer o seguinte: é preciso acabar o quanto antes com os direitos trabalhistas, rebaixar os salários, precarizar as condições de trabalho e também privatizar tudo o que restou de controle estatal sobre os portos, ferrovias, rodovias, mineração e o fornecimento de energia e água; para que as frações do capital aqui investidas possam continuar lucrando. Aí está contido o programa do PAC e das reformas neoliberais contra a Previdência, a CLT, a estrutura sindical e a universidade pública que estão sendo realizadas aos poucos pelo governo Lula.

Quando os noticiários começam a falar em “crise econômica”, os trabalhadores precisam ficar atentos. Isso significa que os lucros da burguesia estão em perigo, e que a classe dominante precisará aumentar a exploração e a miséria. A crise pode demorar muito ou pouco, e pode ser mais ou menos intensa. A única coisa certa é que, para superar de vez as crises, a miséria e a barbárie impostos pelo capitalismo sobre nós todos os dias, somente a luta organizada dos trabalhadores na perspectiva da construção do socialismo pode oferecer uma solução eficaz e permanente.

Daniel M. Delfino
15/04/2007

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