Eis que seguia eu para uma das minhas atividades a serviço da Fraternidade. Seguia eu de metrô pela zona norte de São Paulo. Subitamente, o metrô está tomado por uma invasão. Aos cânticos de “Jesus é fiel”, uma massa uniformizada toma conta dos vagões, das plataformas, das escadas.
Por dentro e por fora das estações, nas calçadas, nos ônibus, o mesmo coro: “Jesus é fiel”. “Fiel?”, pensava eu com meus botões. Que fidelidade será essa? Será uma concentração da Gaviões da Fiel? Improvável. Mas não, não se tratava disso. Não era uma concentração da torcida do Corinthians. Era algo ainda mais assustador.
Era a “Marcha para Jesus”, que reuniu 700 mil pessoas naquela manhã de sábado. 700 mil pessoas se reuniram para um evento no qual o personagem principal estaria ausente. Jesus, o convidado principal, evidentemente não pode comparecer à “Marcha para Jesus”, pelo fato de haver desencarnado na cruz há quase 2000 anos.
Mas isso não desencorajou seus fiéis adeptos. Jesus não esteve presente em carne e osso, mas com certeza estiveram muito$ de seu$ auto-proclamados$ representante$ autorizado$. Esteve presente inclusive um representante talvez não autorizado, mas certamente autoconvidado, a prefeita de São Paulo. Marta Suplicy é fiel. Fiel ao oportunismo que se constitui em característica peculiar à categoria dos políticos. Um político, especialmente quando em campanha, precisa estar em toda parte. Mesmo nos espaços contraditórios entre si.
Dissemos contraditórios pelo fato de que, num fim de semana anterior, Marta Suplicy bateu cartão mais uma vez na concentração de uma outra torcida (o torcedor paulistano certamente saberá qual), a Marcha do Orgulho Gay, na avenida paulista. Não consta que Marta Suplicy seja homossexual, e sim simpatizante. Simpatizante de qualquer causa que lhe render votos.
Num fim de semana, a Marcha do Orgulho Gay. No outro, a Marcha para Jesus. O político em campanha acende uma vela para Deus e outra para o diabo. Marta é fiel ao imperativo da ubiqüidade ideológica e da flexibilidade moral, quintessência do fazer político degradado à brasileira.
Dissemos que esse equilibrismo comportamental é um gesto típico de político em campanha, embora não me conste que o Tribunal Eleitoral tenha autorizado numa época assim prematura a colocação de faixas e bandeiras de partidos em postes, pontes, viadutos e logradouros públicos. Não obstante, as faixas que anunciavam a convenção do PT pululavam pela cidade. Não apenas na zona norte, mas em vários outros bairros de São Paulo, pelos quais perambulei naquele dia. São Paulo amanheceu vermelha. Talvez com exceção de lugares como a Avenida Paulista, reduto de eleitores de J. Motosserra, o vampiro do PSDB, que em sua campanha também não autorizada, tem sido visto rondando os bancos de sangue.
As faixas que convidavam à convenção do PT insistiam, imperativas: “Você não pode faltar.” Por um instante, num lapso de loucura alucinatória, ou quem sabe, de lucidez analítica, eu li: “Você não pode falar.” A faixa então ficaria assim: “Convenção do PT: você não pode falar.”
O lapso alucinatório durou pouco tempo, talvez apenas o suficiente para que uma ondulação do vento na faixa restituísse à frase a letra “t” que faltou. Mas isso foi tarde demais. O estrago já estava feito. Embora curto, o lapso analítico-alucinatório deixou uma impressão duradoura. “Você não pode falar” talvez seja o “slogan” mais adequado para uma convenção do PT, nos dias que correm.
No PT, não se pode falar, sob o risco de censura, crítica, vaia orquestrada, suspensão, quiçá até expulsão. O PT de hoje acende uma vela para Deus e outra para o diabo. E o fato de cortejar o eleitorado evangélico paralelamente ao GLS é o aspecto mais superficial e puramente jocoso dessa trágica contradição. Não havia o menor risco de uma outra candidatura que não a de Marta Suplicy, devidamente afinada com os desígnios de Deus, digo da Articulação, fosse homologada pelo partido. Qualquer candidatura divergente seria defenestrada pelos batalhões vermelhos de Deus, digo, de Marta.
Uma vez que me é proibido falar, preferi rejeitar o convite da convenção. Preferi marchar para Jesus. Terminei meu sábado embalado pelas arrebatadoras canções “gospel” da irresistível comédia “Matadores de velhinhas”, filme dos irmãos Cohen. “Let’s go back to god”. Gargalhadas insanas. Daniel é fiel. Da Gaviões da fiel
Daniel M. Delfino
03/07/2004
Por dentro e por fora das estações, nas calçadas, nos ônibus, o mesmo coro: “Jesus é fiel”. “Fiel?”, pensava eu com meus botões. Que fidelidade será essa? Será uma concentração da Gaviões da Fiel? Improvável. Mas não, não se tratava disso. Não era uma concentração da torcida do Corinthians. Era algo ainda mais assustador.
Era a “Marcha para Jesus”, que reuniu 700 mil pessoas naquela manhã de sábado. 700 mil pessoas se reuniram para um evento no qual o personagem principal estaria ausente. Jesus, o convidado principal, evidentemente não pode comparecer à “Marcha para Jesus”, pelo fato de haver desencarnado na cruz há quase 2000 anos.
Mas isso não desencorajou seus fiéis adeptos. Jesus não esteve presente em carne e osso, mas com certeza estiveram muito$ de seu$ auto-proclamados$ representante$ autorizado$. Esteve presente inclusive um representante talvez não autorizado, mas certamente autoconvidado, a prefeita de São Paulo. Marta Suplicy é fiel. Fiel ao oportunismo que se constitui em característica peculiar à categoria dos políticos. Um político, especialmente quando em campanha, precisa estar em toda parte. Mesmo nos espaços contraditórios entre si.
Dissemos contraditórios pelo fato de que, num fim de semana anterior, Marta Suplicy bateu cartão mais uma vez na concentração de uma outra torcida (o torcedor paulistano certamente saberá qual), a Marcha do Orgulho Gay, na avenida paulista. Não consta que Marta Suplicy seja homossexual, e sim simpatizante. Simpatizante de qualquer causa que lhe render votos.
Num fim de semana, a Marcha do Orgulho Gay. No outro, a Marcha para Jesus. O político em campanha acende uma vela para Deus e outra para o diabo. Marta é fiel ao imperativo da ubiqüidade ideológica e da flexibilidade moral, quintessência do fazer político degradado à brasileira.
Dissemos que esse equilibrismo comportamental é um gesto típico de político em campanha, embora não me conste que o Tribunal Eleitoral tenha autorizado numa época assim prematura a colocação de faixas e bandeiras de partidos em postes, pontes, viadutos e logradouros públicos. Não obstante, as faixas que anunciavam a convenção do PT pululavam pela cidade. Não apenas na zona norte, mas em vários outros bairros de São Paulo, pelos quais perambulei naquele dia. São Paulo amanheceu vermelha. Talvez com exceção de lugares como a Avenida Paulista, reduto de eleitores de J. Motosserra, o vampiro do PSDB, que em sua campanha também não autorizada, tem sido visto rondando os bancos de sangue.
As faixas que convidavam à convenção do PT insistiam, imperativas: “Você não pode faltar.” Por um instante, num lapso de loucura alucinatória, ou quem sabe, de lucidez analítica, eu li: “Você não pode falar.” A faixa então ficaria assim: “Convenção do PT: você não pode falar.”
O lapso alucinatório durou pouco tempo, talvez apenas o suficiente para que uma ondulação do vento na faixa restituísse à frase a letra “t” que faltou. Mas isso foi tarde demais. O estrago já estava feito. Embora curto, o lapso analítico-alucinatório deixou uma impressão duradoura. “Você não pode falar” talvez seja o “slogan” mais adequado para uma convenção do PT, nos dias que correm.
No PT, não se pode falar, sob o risco de censura, crítica, vaia orquestrada, suspensão, quiçá até expulsão. O PT de hoje acende uma vela para Deus e outra para o diabo. E o fato de cortejar o eleitorado evangélico paralelamente ao GLS é o aspecto mais superficial e puramente jocoso dessa trágica contradição. Não havia o menor risco de uma outra candidatura que não a de Marta Suplicy, devidamente afinada com os desígnios de Deus, digo da Articulação, fosse homologada pelo partido. Qualquer candidatura divergente seria defenestrada pelos batalhões vermelhos de Deus, digo, de Marta.
Uma vez que me é proibido falar, preferi rejeitar o convite da convenção. Preferi marchar para Jesus. Terminei meu sábado embalado pelas arrebatadoras canções “gospel” da irresistível comédia “Matadores de velhinhas”, filme dos irmãos Cohen. “Let’s go back to god”. Gargalhadas insanas. Daniel é fiel. Da Gaviões da fiel
Daniel M. Delfino
03/07/2004
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