31.5.07

Adeus ano novo




2005 foi um ano desconcertante. No Brasil, a esperança se transformou em vergonha. Foi preciso esperar por um governo com origem de esquerda para que se expusessem de forma nunca antes vista os vícios da democracia burguesa. Isso só foi possível porque esse governo com origem de esquerda governou ao modo da direita. Com essa opção, o PT decretou a própria sentença de morte.

Governar ao modo da direita não significa apenas manter a “opção de política econômica” ultra-recessiva, ultra-especulativa, ultra-predatória e ultra-imperialista. Trata-se de algo muito mais grave, pois envolve antes de tudo a própria opção prévia de “política política”. A política econômica, qualquer que seja ela, é apenas, secundariamente, um método de administração empregado para atender às demandas da classe ou setor de classe ao qual determinado governo serve. No caso do governo Lulla, trata-se das demandas da alta finança nacional e globalizada. É a esse setor de classe que o Partido dos Trabalhadores hoje representa.

Para desempenhar de maneira conseqüente esse papel de representante da alta finança, o PT teve antes que desmobilizar, deseducar, substituir e usurpar a voz da imensa maioria dos setores proletarizados, explorados e oprimidos da população. Nesse aspecto, o de imobilizar e silenciar as massas, o ParTido igualou-se não só ao PSDB (esbirro preferencial da alta finança, com trânsito livre entre o coronelato putrefato) como à própria ditadura militar em cuja luta contra a qual surgiu. No fritar dos ovos, o que os economistas do PT dizem é que se deve esperar o bolo crescer para depois distribuir, como Delfim Neto dizia nos anos 70. Aliás, não é surpreendente que Delfim Neto esteja se aproximando do PT, embora alguns ainda se escandalizem (e outros finjam se escandalizar) com o fato de o PT estar se aproximando de Delfim. PT + Delfim = duplipensar.

Aqui é irrelevante o fato de que não haja sequer bolo para distribuir (o que em alguma medida ainda havia no tempo do “milagre econômico” de Delfim). Os economistas do governo prometem que depois do sacrifício de apertar os cintos, no atual ciclo de vacas magras, supostamente temporário, uma nova era de ouro de prosperidade surgirá. Quem viver verá, asseveram com a convicção fanática dos farsantes. O que os estelionatários profissionais prometem ao povo, com esmagador respaldo da mídia, são ovos ainda no interior da galinha.

A galinha dos ovos de ouro foi enforcada há muito tempo, quando a década de 90 trouxe, com a abjeta complacência do PT, a desnacionalização, a desindustrialização, a desarticulação das cadeias produtivas, o desmonte do projeto nacional, e por fim a transformação terminal do país em mais uma senzala amorfa a aprisionar mais uma porção anônima do exército industrial de reserva mundial à disposição dos caprichos intempestivos e apetites insaciáveis do grande capital global.

Enquanto FHC e sua cáfila perpetravam esse crime de lesa-pátria, o PT se limitava a posicionar-se “contra tudo isso que está aí”, fazendo bem-comportada oposição parlamentar dentro dos moldes da política burguesa institucional tradicional. Enquanto o PT esperava pacientemente por chances de vitória eleitoral e Lulla experimentava os ternos que usaria nos rega-bofes palacianos, na vida concreta o povo levava ferro. Enquanto o país era ignominiosamente destruído, nada de greve geral, de mobilizações de massa, de povo nas ruas, de luta direta. A única honrosa exceção no período foi o MST, com suas ocupações de terra (embora só recentemente o próprio MST tenha abandonado as ilusões no projeto do PT).

Só para lembrar àqueles que ainda teimam em manter as ilusões no governo Lulla, o próximo projeto a ser posto em prática, engatilhado às vésperas da explosão do escândalo do mensalão e sustado na última hora pela crise que se seguiu, era a (contra)reforma sindical e trabalhista. Ou seja, o projeto de aplainar definitivamente as conquistas históricas dos trabalhadores brasileiros, sacrificando o direito de greve, férias, 13º., licença-maternidade, jornada de 8 horas, negociações coletivas, etc. no altar da “competitividade” econômica (leia-se interesses do grande capital).

Trata-se de mais um dos capítulos pendentes da lição de casa prescrita na cartilha dos chamados “acordos internacionais”. Acordos que o candidato do PT, que se dizia de “oposição” não denunciou em 2002 (pelo contrário, assinou embaixo como os demais candidatos burgueses), de modo que a disputa eleitoral daquele ano, polarizada entre os slogans da esperança e do medo, não oferecia de fato nenhuma alternativa verdadeira materialmente relevante.

Essa opção de obediência canina aos acordos feagaceanos expõe de forma cabal o resultado da degeneração do projeto do PT. O maior crime do governo Lulla não é a obtusa opção de política econômica, mas a opção anterior de se recusar a cumprir o papel precípuo de um partido de esquerda. O PT abriu mão da oportunidade histórica de desempenhar um papel diferenciado na história política do país, ao recusar-se a organizar os trabalhadores, a juventude e os setores explorados em geral. Ao invés de organização por local de trabalho, grupos de estudo, ocupações de terra, associações de moradores, etc.; fomentando núcleos e coletivos, multiplicando fóruns e debates, dando consistência e coesão prática a uma vasta gama de demandas populares difusas, dando voz e articulação às grandes massas, tornando-as sujeitos políticos de fato por meios radicalmente democráticos; ao invés disso tudo, ofereceu-se a imbecilizante promessa de que tudo seria melhor quando Lulla fosse eleito.

Para cumprir esse papel ridículo de mercadejar um salvador da pátria reciclado embalado em rótulo reluzente, ninguém necessita de um partido de esquerda. Qualquer legenda eleitoral mercenária como os venais partidos burgueses tradicionais se presta a esse teatro. Ao se omitir de agir como partido de esquerda, o ParTido torna-se a tábua de salvação do regime. O governo lhe cai nas mãos de presente, no momento em que Lulla abre mão de todo o conteúdo orgânico que a história do PT trazia consigo. Na falta de conteúdo próprio original, a agremiação reduziu-se a uma simples forma, simples casca vazia, rótulo e retórica. A maior traição do PT não está na ação, mas na omissão. Ao deixar de agir, foi arrastado pela correnteza. A dinâmica das coisas impôs ao ParTido, por inércia, a continuidade do neoliberalismo e da corrupção. A casca vazia foi preenchida pelo conteúdo desejado pelos mesmos setores que historicamente se escondem por trás das siglas daquelas tradicionais legendas partidárias mercenárias.

O absurdo de tudo isso veio à tona em 2005. Descobriu-se que o PT recorreu a meios heterodoxos para financiar suas campanhas eleitorais. Em novilíngua, “recursos não contabilizados”. Descobriu-se ainda que parte desses recursos poderia estar sendo usada para comprar votações no Congresso, no chamado mensalão, que ainda não se tem por definitivamente provado. Cassaram-se alguns deputados a torto e à direita, e festejou-se desenfreadamente na grande imprensa ultra-reacionária e anti-popular a destruição do mito do PT como partido da “ética na política”, bem como a perda das ilusões nas “utopias de esquerda”.

Ao longo de todo esse episódio, permeado por muita manipulação, dissimulação, má fé, histeria, perplexidade, choro e ranger de dentes, em meio a muita confusão, várias lições puderam ser aprendidas. Os diversos setores da sociedade, conforme seus interesses de classe e seu grau de adesão ao projeto do governo Lulla, tiraram conclusões diversas do episódio.

- Conclusões pragmáticas: os setores burgueses e pequeno-burgueses que acreditam na viabilidade do sistema e dentro dele tentam buscar “o melhor para o país” fazem o possível para resgatar estrategicamente algo do naufrágio do PT, já que a corrupção é mesmo inevitável (decorre da “natureza humana”), preservando programaticamente as balelas do “consenso” neoliberal (o importante é a “estabilidade” econômica, a “responsabilidade fiscal”, o respeito aos contratos, a continuidade das [contra]reformas, a abertura do mercado, a “flexibilização” de direitos, etc.) da contaminação pela crise do governo.

- Conclusões cínicas: o grande capital e a grande imprensa aproveitam o malogro e o descrédito do PT para dar vazão ao seu preconceito e ódio contra o povo, disfarçando-os de crítica à incompetência do governo Lulla e de quebra “esquecendo” que essa incompetência decorre do programa dos governos passados, os quais praticavam a mesma corrupção, etc.; catando votos aqui e ali, para com isso vencer a qualquer custo as próximas eleições e se vingar do povo pelo imperdoável insulto de ter ousado votar na esperança de mudança em 2002.

- Conclusões resignadas: os setores mais miseráveis, pauperizados e atrasados do povo sentem na carne que tudo continua como sempre foi, percebem que é muito difícil mudar as coisas, mas a maioria ainda acredita que Lulla é o único que tentará “ajudar os pobres” com algum Fome Zero, Bolsa família, etc., e votará nele novamente.

- Conclusões esperançosas: parte importante dos setores pequeno-burgueses mais informados, dos trabalhadores das categorias profissionais mais organizadas, dos estudantes e intelectuais, base histórica do PT, não rompeu com o ParTido, tenta acreditar que todas as dificuldades decorrem da “herança maldita”, que o governo está “em disputa”, que a crise não passou de uma tentativa de “golpe das elites”, que o “radicalismo” da extrema-esquerda só atrapalha, que no segundo mandato tudo será diferente, que os erros não vão se repetir, que a economia vai voltar a crescer (se o BC não atrapalhar), que o Brasil vai ganhar a Copa do Mundo, o Oscar, etc.; e em resumo, que tudo que é preciso fazer para a vida melhorar é sentar na poltrona, ligar a TV na Globo e torcer.

- Conclusões pessimistas: setores mais atrasados da pequena-burguesia, do proletariado das categorias menos organizadas, dos desempregados, aposentados, donas de casa, etc.; percebem que os políticos são “todos iguais”, que “nenhum presta”, que nada nunca vai mudar, que é cada um por si, que essa tal de “esquerda” é a maior mentira da História; e em nome disso estão prontos a oferecer seu voto a qualquer aventureiro tecnocrata, fascista ou coronel que a direita engendrar.

- Conclusões revolucionárias: setores de vanguarda do movimento social, nos sindicatos, no movimento estudantil, sem terra, sem teto, nas diversas lutas, etc., perceberam que as eleições não mudam nada. Se o partido eleito não estiver sustentado por um forte movimento organizado democraticamente desde a base da sociedade, a sua vitória eleitoral resultará em nada. Diante disso, a tarefa mais importante é construir esse movimento transformador de base.

Aqui mais uma vez prova-se a validade do princípio marxista de que a posição que cada setor ocupa na produção e na distribuição da riqueza social determina a visão que esse setor tem dos acontecimentos. Feito esse balanço, os diversos grupos afiam as armas para a luta no ano que se inicia.

2006 vai ser agitado por uma ferrenha disputa política na qual não haverá nada em jogo. O PT tentará convencer seus eleitores de que ainda pode fazer um governo popular. O PSDB/PFL tentará fazer de conta de que nunca ouviu falar em corrupção nos seus próprios governos e apostará na incompetência administrativa do PT, que se tem por demonstrada. Ambos gozam de grande rejeição, mas o eleitor tentará ainda assim votar no menos pior, mesmo sem grandes esperanças. Entre a volta de um FHC e a continuidade de Lulla, o que escolher? A grande massa do eleitorado atravessará o ano prisioneira desse falso dilema. Acostumado a pensar a política apenas em termos eleitorais, o brasileiro não vislumbra alternativa.

Os partidos de esquerda remanescentes, como PSTU e PSOL, e os demais agrupamentos que sempre foram minoritários em relação ao PT no conjunto da esquerda brasileira adentrarão 2006 com uma gigantesca responsabilidade histórica. Afinal, aquela tarefa de organizar as massas abandonada pelo PT lhe cai nas mãos num momento de enorme gravidade. O simples fato do PT ter trocado de lado na luta de classes não significa por si só que a sua hegemonia nos movimentos sociais reverterá automaticamente em poder e influência para os grupos antes minoritários. Pelo contrário, o PT continua com o comando burocrático dos aparelhos (sindicatos, grêmios estudantis, etc., stalinisticamente dirigidos) e as massas vivenciam um grande descrédito para com o movimento (conforme a nomenclatura esboçada acima, há o forte risco de que os discursos cínicos, pragmáticos e pessimistas prevaleçam sobre as conclusões revolucionárias na disputa pela consciência das massas, e nisso a mediação dos esperançosos e resignados só atrapalha).

O fato dos vários partidos e agrupamentos de esquerda terem permanecido minoritários à sombra da hegemonia do PT no longo período de lenta e monumental decadência do ParTido deve indicar que há algo de muito errado também com esses agrupamentos. Senão com sua política, pelo menos certamente com sua estratégia de comunicação, que não soube atingir setores mais amplos. O fato de que o PT tenha permanecido hegemônico por décadas dentro dos movimentos sociais deve indicar ainda a possibilidade de que seus pecados mortais, como o eleitoralismo, o burocratismo e o autoritarismo tenham contaminado seus concorrentes à esquerda. Isso somado ao tradicional sectarismo, divisionismo e imediatismo da esquerda revolucionária só contribui para afastar o povo dessa opção política.

A superação do ciclo histórico do PT em direção a um novo salto organizativo dependerá da capacidade desses agrupamentos de abandonar seus vícios e atrair para a luta organizada uma nova vanguarda de ativistas que deve despontar das lutas sociais, “virgem” desses vícios e descomprometida com os erros e omissões do PT. Algumas iniciativas importantes nesse sentido estão sendo impulsionadas, como a preparação do Congresso de fundação da CONLUTAS (Coordenação Nacional de Lutas) em abril, a preparação da Assembléia Nacional Popular e da Esquerda, a campanha contra o pagamento da dívida externa que culminará na Semana da Pátria em setembro.

Independentemente dos ritmos e prazos da política burguesa e seu calendário eleitoral, as lutas sociais continuarão em 2006, com as greves, ocupações de terra, lutas por moradia, manifestações estudantis pelo passe livre, etc. Infelizmente, dado o papel subserviente e atrelado da grande mídia, mercenária do capital, o foco das atenções dificilmente estará voltado para as lutas. A não ser que adquiram um caráter de massa, o que não pode ser descartado, mas não é o mais provável. A maior probabilidade é de que os holofotes estejam voltados para a imbecilizante disputa eleitoral.

E se essa probabilidade se confirmar, 2006 será mais um ano perdido. Será preciso esperar por 2007 para que as lições sejam definitivamente aprendidas e as grande mudanças históricas se ponham finalmente em movimento.

Até lá, cumpre resgatar das mãos dos usurpadores uma velha e desgastada palavra de ordem:
A luta continua, companheiros!

Daniel M. Delfino
30/12/2005

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