29.5.07

"A Batalha de Argel": manual da revolução em 23 lições


(Comentário sobre o filme “A batalha de Argel”)



Nome original: Battaglia di Algeri
Produção: Argélia, Itália
Ano: 1966
Idiomas: Francês, Inglês, Árabe
Diretor: Gilo Pontecorvo
Roteiro: Gilo Pontecorvo, Franco Solinas
Elenco: Brahim Hadjadj, Jean Martin, Yacef Saadi, Samia Kerbash, Ugo Paletti, Fusia El Kader, Omar, Mohamed Ben Kassen
Gênero: drama, história, guerra
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

1. A guerra não é bonita, nem heróica, nem gloriosa, pois serve como uma evidência cabal da barbárie. A guerra é um fenômeno pertencente ao período de pré-História da Humanidade em que estamos vivendo. Num estágio em que a Humanidade não alcançou a plena posse de si mesma, vigora a divisão social do trabalho, que divide a espécie em classes sociais. Tal divisão separa verticalmente os indivíduos e impõe uma estrutura social de comando de tipo hierárquico. Essa estrutura somente pode se sustentar por meio da força, o que obriga as classes dirigentes a um estado de guerra permanente. A guerra é exercida por meio dos aparelhos do Estado, instrumento por excelência da dominação, contra as classes subalternas e contra os demais Estados nacionais.

As guerras somente deixarão de existir numa sociedade sem classes, estruturada de modo horizontal, não-hierárquico. Mas para impedir que essa sociedade venha a existir, as classes dominantes se empenham em uma guerra de contra-revolução permanente, para a qual cabe encontrar a resposta adequada. Os argelinos empreenderam sua tentativa, com a qual nos cabe aprender.

2. Vencer a guerra de libertação nacional era apenas o primeiro passo. O desafio mais difícil estaria adiante, depois da independência, na construção de uma sociedade melhor. O acerto dessa afirmação de um dos dirigentes da FLN (Frente de Libertação Nacional, a organização que conduziu a luta de independência) foi tragicamente demonstrado pela história posterior da Argélia independente. Hoje, o país está entregue à vala comum dos Estados neocoloniais falidos com uma população vitimada pela miséria e um regime dilacerado por guerras civis intermináveis. Nessa guerra pontificam interesses tribais e preconceitos bem diferentes dos ideais generosos que dirigiram as lutas do passado.

3. A batalha de Argel, é bom lembrar, foi perdida. O filme em questão retrata um episódio de derrota dos insurgentes, não a vitória de sua causa, que só viria anos depois. Os organizadores da guerrilha urbana e dos atentados a partir da Casbah (bairro muçulmano encravado em Argel) são alcançados um a um pela repressão. “A batalha de Argel” mostra não só a organização exemplar da FLN e o entusiasmo da população, mas também o poder do aparato e a determinação férrea da contra-revolução. Mostrar uma batalha que foi perdida é importante para lembrar que uma guerra se faz de várias batalhas. E cada batalha pode terminar em vitória ou em derrota. A luta é longa, ora avançando, ora recuando.

4. Uma batalha não se vence apenas com armas, mas com inteligência e organização. A FLN estava organizada numa estrutura que potencializava seus resultados com um mínimo de efetivo numérico e de risco de segurança. Cada militante somente tinha contato com um superior hierárquico e com seus respectivos subordinados. Não havia contatos laterais. Em caso de morte ou captura, a estrutura sofria o mínimo de dano, pois o conhecimento limitado de cada um sobre o conjunto da organização não podia ser obtido pelo inimigo. Para desmontar essa estrutura em pirâmide, seria preciso percorrê-la por inteiro, com extrema dificuldade.

5. Os militantes da FLN ganharam o respeito, a confiança e a adesão do povo argelino com sua organização e determinação. As idéias e princípios organizativos que norteiam a luta somente se tornam uma força material quando de apoderam das massas. Até que as massas tomassem a luta em suas mãos, foi necessário o sacrifício de um grupo de militantes para acender o rastilho de pólvora. A batalha de Argel retratada no filme, é bom lembrar, foi vencida pelos franceses. Mas os argelinos venceram a guerra, poucos anos depois, quando grandes massas saíram às ruas. Foram as massas que obtiveram a independência da Argélia.

6. A luta de libertação passa não apenas pelo confronto armado, mas pela mudança na condução da vida cotidiana. O casal que se recusa a se casar num cartório francês exercita a desobediência civil, desconhecendo e deslegitimando a autoridade colonial. Ao mesmo tempo, reconhece-se o oficial da FLN como autoridade legal de fato e de direito.

7. A FLN conquistou o respeito da população combatendo o crime. Reprimindo o uso de drogas, bebidas, jogatina, prostituição, a FLN se impôs como poder de fato sobre a Casbah. Nem o Estado nem o crime se colocariam no caminho da luta pela libertação.

8. A greve geral faz com que o povo tome consciência da força que possui quando atua de maneira coletiva e organizada. Nada pode ser mais perigoso para o regime do que um povo que descobre que pode, de maneira coletiva e organizada, desobedecer ordens e recusar-se a colaborar com o funcionamento do sistema.

9. É preciso fazer a sua voz ser ouvida. A pregação da ideologia dominante é contínua e massacrante. Mas basta uma faísca de contestação furar o cerco dessa pregação para tirar a “platéia” do torpor e iniciar um incêndio. É o que acontece quando o garoto rebelde se insinua sem ser notado e usa o microfone dos próprios franceses para exortar o povo da Casbah a continuar resistindo.

10. A revolução não se faz sem alguns mártires. São as massas que realizam as grandes transformações históricas. Entretanto, as massas precisam do exemplo, do impulso e do ensinamento de uma vanguarda que a represente. Os elementos dessa vanguarda, por se colocarem na linha de frente da luta de classes, inevitavelmente sofrem baixas. A queda de alguns poucos pode se transformar porém em estímulo para que muitos outros prossigam.

11. A colaboração das mulheres teve uma importância fundamental na luta. Com ou sem a burqa, as mulheres de Argel colaboraram com a FLN, correndo o mesmo risco pessoal dos demais militantes. Hoje, elas obtiveram como recompensa a repressão por parte do fundamentalismo islâmico. E todas têm que usar burqas.

12. Em última instância, um povo rebelado é incontrolável. A ocupação da Casbah é impossível, assim como a ocupação das favelas do Rio de Janeiro. O exército francês subia e descia os morros, impunha toque de recolher, cerco, barreiras em todas as entradas e saídas, revistas sobre a população. Sem resultado.

13. Para a repressão, os fins também justificaram os meios. Os militantes da FLN usaram de todos os meios em sua luta, inclusive os mais questionáveis, como o terrorismo. O Estado francês fez a mesma coisa. Matou, torturou, mentiu. A repressão não tem escrúpulos.

14. A ONU não serve para nada. Não foram poucas as vezes em que a ONU deixou “na mão” os povos coloniais e dominados que se atreveram a levantar a cabeça contra a opressão imperialista. Nada pode ser mais ilustrativo da sua inoperância e da falência do modelo democrático-burguês em que está baseada a Carta das Nações Unidas do que a incapacidade de impor resoluções contra as potências que tem a força a seu favor, como Estados Unidos e Israel. A França também teria poder de veto a qualquer resolução da ONU, o que de saída frustrava as esperanças contidas no pleito argelino.

15. O discurso do patriotismo forja uma falsa unidade do interesse nacional. O coronel encarregado da repressão passa um sermão nos jornalistas que se atrevem a questioná-lo. A França quer ou não quer manter seu domínio sobre a Argélia? Se quer fazê-lo, precisa aceitar os métodos necessários para tal. Tortura? Interrogatórios, responde o coronel. Sem mais perguntas. Estão todos no mesmo barco. São todos franceses. Não há divisões, há a França como um todo unitário e há seu interesse nacional, que é a manutenção do colonialismo. O coronel menciona até a existência de setores da esquerda que concordam com a ocupação colonial (do lado de cá, cabe perguntar como a esquerda pode ser contra a luta de independência nacional de um povo colonizado?).

16. Numa guerra de libertação contra um país imperialista, é fundamental contar com o apoio político de algum setor da população da metrópole colonial. O coronel encarregado da repressão à rebelião expressa seu desagrado com a dificuldade que representa ter um nome do peso de um Sartre contra sua estratégia. Um artigo num jornal da metrópole cria dificuldades políticas para a autoridade do Estado, dificultando e atrasando a tarefa da repressão.

17. Um intelectual que se reivindica de esquerda estará nas barricadas ao lado do povo, disparando com as armas de que dispõe para fazer avançar a luta. O coronel pergunta com ironia: por que os Sartres nascem sempre do outro lado? Sartre lutou na Resistência francesa contra os nazistas, assim como o militar. O mesmo exército francês que lutou contra os nazistas na Resistência luta no momento contra a resistência argelina. Agora, Sartre e o coronel estão em lados opostos. Mas foi o filósofo quem permaneceu com a causa certa.

18. Assim como o filósofo, o artista também assume um papel político. O autor do filme em questão toma partido a favor de uma causa. Os intelectuais e artistas da década de 1960 (do século XX em geral) não tinham medo de se engajar nos movimentos de luta, ao contrário do que ocorre hoje. O movimento dos intelectuais e artistas contra a guerra no Iraque tem muito menos peso objetivo do que tinha por exemplo, naquela década, o movimento dos músicos contra a guerra do Vietnã. A arte era parte da luta libertária da humanidade contra uma sociedade opressiva. Hoje, não só o nível de engajamento dos intelectuais e artistas diminui dramaticamente, como também diminui o grau de influência material que a sua manifestação no debate pode exercer.

19. A realização do filme é um prodígio da produção italiana, pela dificuldade de reproduzir com grande fidelidade acontecimentos de tal complexidade, num contexto político em que tudo ainda era muito recente (a guerra terminou em 1962, o filme é de 1966). O filme retrata um acontecimento da luta entre a França e a então colônia da Argélia, mas não é falado em francês e sim em italiano, com toques de árabe (se fosse feito hoje, seria falado em puro inglês). “A batalha de Argel” é uma obra italiana de cinema universal.

20. O papel do artista não é idealizar, nem romantizar, mas mostrar os argelinos com o seu rosto, sua língua, seus costumes, suas crenças, sua bandeira, sem ceder a preconceitos e estereótipos. Tomar partido da causa não significa ocultar os erros dos argelinos, transformando-os em heróis do tipo hollywoodiano. Os argelinos cometeram atentados terroristas. Mataram civis, homens, mulheres e crianças, em locais públicos, que não tinham relação com o aparato de poder colonial francês, atacados sem aviso.

21. Numa guerra comentem-se erros e acertos. Uma coisa é atacar a polícia francesa em território argelino: quem é policial num país conflagrado sob ocupação está se oferecendo como alvo. Coisa muito diferente é atacar a população civil. Os atentados contra a população civil da parte francesa da cidade são justificados pelo dirigente da FLN em nome da desigualdade de forças. Os franceses têm aviões para bombardear as aldeias argelinas. Os guerrilheiros não os têm, por isso usam bombas em lugares públicos. Verdade seja dita, os primeiros a usar terrorismo contra civis foram os civis franceses que plantaram uma bomba na Casbah, num alvo residencial. Até então, os militantes argelinos combatiam apenas a polícia.

22. A arte politicamente engajada precisa manter seu compromisso com a verdade acima de tudo. Do contrário, não estará servindo à causa com a qual pretende colaborar. O cinema de Gillo Pontecorvo se coloca a favor da causa argelina e para isso mostra a verdade dessa luta. O horror da guerra é retratado em toda sua crueza. Repressão de um lado, terrorismo do outro. Guerra é guerra, não há anjos nem demônios nesse terreno. Cada um luta com as armas de que dispõe e deixa a moral para depois.

23. O sabor de vitória da causa da independência só aparece no final do filme, com as imagens das massivas manifestações, do povo marchando contra a polícia, dos gritos de desafio ecoando 24 horas nas favelas, da bandeira argelina sendo carregada pela multidão, em meio a cassetetes da polícia e bombas de gás, tremulando nas mãos das mulheres, que dançam e sorriem nas ruas. Um final que não poderia ser mais belo.
Salam aleikum!

Daniel M. Delfino
10/09/2005

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