Nome original: Million Dollar Baby
Produção:
Ano: 2004
Idiomas: Inglês, Gaélico
Diretor: Clint Eastwood
Roteiro: F. X. Toole, Paul Haagis
Elenco: Clint Eastwood, Hilary Swank, Morgan Freeman, Mike Colter, Jay Baruchel
Gênero: drama, esporte
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
Aparentemente, trata-se aqui de um filme sobre boxe. Os filmes sobre esporte geralmente seguem a fórmula convencional e mais do que gasta do competidor improvável que surpreendentemente aparece como vencedor no final. No caso dos filmes de boxe, a história invariavelmente se resolve numa luta final na qual o herói apanha até o limite do humanamente suportável e de repente vence a luta com um nocaute salvador. Basta lembrar da série “Rocky”.
“Menina de ouro” não segue essa fórmula, pelo menos não até o seu final. Durante grande parte do tempo, o filme se desenrola sim como um típico filme de esportes. O treinador veterano Dunn (Clint Eastwood), dono de uma academia, se recusa a se envolver com a garçonete caipira Magie (Hilary Swank), que quer de qualquer maneira ser uma pugilista profissional, e é discretamente estimulada pelo zelador da academia Scraps (Morgan Freeman), ex-lutador e amigo de Dunn, que narra a história. Entretanto, essa recusa previsivelmente se desvanece com o desenrolar dos acontecimentos, que deixam Dunn sem seu lutador principal e o fazem perceber que Magie tem algum futuro, mas somente se ele a treinar.
O que se desenrola até aqui é um envolvente filme sobre esportes, em que até mesmo quem não acompanha o boxe pode se empolgar com o sucesso da lutadora teimosa e seu treinador relutante. É certo que, para apreciar este sucesso, é preciso fazer abstração do pensamento de que o boxe não é na verdade um esporte, mas um exercício de crueldade, brutalidade e estupidez que leva os lutadores ao limite da destruição física. Esse pensamento não é pouco disseminado, e isso é até certo ponto justificado; basta lembrar o exemplo do maior lutador de todos os tempos, Mohamed Ali e seu mal de Parkinson, para reforçá-lo. Como diz o próprio Scraps, o boxe é um ato antinatural.
Por mais que essa interpretação possa conter alguma dose de verdade, é preciso lembrar que não estamos falando do único esporte no qual os praticantes se destroem fisicamente. Na verdade, todo atleta profissional de alto nível deforma seu corpo para alcançar seus limites naturais (ou antinaturais). O esporte profissional mata, deforma, mutila, aleija, porque força os limites do corpo além de qualquer medida aceitável para uma atividade física saudável e equilibrada.
O caso de “Menina de ouro” não é o de uma dessas atletas de ponta que se destrói de maneira irresponsável. A carreira de Magie acabará sendo interrompida, mas de qualquer maneira esse não é o foco do filme. O seu eixo está na malha de relações pessoais que une os protagonistas, para os quais o mundo do esporte funciona como uma espécie de pano de fundo.
Mas antes disso, veremos como o esporte pode dar sentido à vida de uma pessoa. Se os Estados Unidos tivessem uma arte marcial típica, como a China tem o kung fu e o Japão tem o karatê, esta arte seria o boxe (que é de origem britânica). As artes marciais tradicionais acrescentam à atividade física toda uma carga de valores espirituais e de cultivo de qualidades morais, como o respeito pelo oponente. O boxe não chega a tanto, mas se chega a ter algo parecido, um cheiro sequer de dignidade humana, isso aparece em “Menina de ouro”.
Como foi dito acima, não se trata de um típico filme de esporte. O boxe é um pretexto para a união de pessoas que querem encontrar um sentido para suas vidas arruinadas. O esporte é o meio de comunicação que lhes permite superar a barreira de sua solidão e enfrentar cada um os seus traumas e fantasmas. Magie vem de uma típica família de “white trash”, que é como são chamados os brancos pobres nos Estados Unidos (já que por definição o “lixo” de lá é negro ou latino). É dessas camadas populacionais que emergem os lutadores de boxe, como Scraps, que ficou cego de um dos olhos em sua 109a. e última luta (ele enfrentará uma 110a. e redentora peleja). Naquela ocasião, Dunn era seu treinador substituto. E esse treinador ainda carrega a culpa de não ter jogado a toalha naquela luta, o que faz com que até hoje tenha receio de arriscar seus lutadores até o fim.
Com o desenvolvimento desses perfis, nos afastamos da fórmula dos filmes de esporte para entrar na dos dramas. Em todo drama há fantasmas do passado assombrando os personagens e obrigando-os a se esconder da vida e dos conflitos. Os eventos da história fazem com que o fantasma venha à tona e seja enfrentado, para que se encaminhe o final feliz (ou não). No caso de Dunn, o drama maior, mais do que a dificuldade de levar seus lutadores ao limite técnico, é o afastamento da filha, com quem não fala há anos. Todas as suas cartas são devolvidas sem serem lidas. Ao “adotar” Magie como sua pupila e filha-postiça, o treinador parece encontrar uma maneira de enfrentar psicologicamente os dois fantasmas de uma vez. A freqüência à igreja não vinha funcionando, bem como a leitura de poesia. Pelo menos, não tanto quanto deveriam funcionar. Dunn lia Yeats em gaélico, idioma de onde vem o apelido “Mo Cuishle” da lutadora Magie, inadvertidamente convertida em heroína irlandesa.
O drama assim desenhado se transforma subitamente em um drama pesado. O clima ascendente de uma competição esportiva muda para o de um dilema sobre eutanásia. A eutanásia é uma questão das mais sérias, especialmente para alguém como Dunn, que é apresentado como um católico praticante que freqüenta a missa diariamente e atormenta o padre com questões teológicas inoportunas. Do ponto de vista católico, a eutanásia é um pecado, pois equivale ao suicídio. O suicídio por sua vez é visto como uma fuga moral, e o catolicismo não dá a ninguém o direito de abreviar sua própria vida. Mesmo que essa vida tenha se tornado uma tortura insuportável e sem esperança de redenção. O Deus católico quer que sua criatura sofra, porque em Seus critérios, que para os crentes (e para os descrentes mais ainda), devem permanecer inviolavelmente misteriosos, somente assim é que essa alma encontrará sua salvação.
Do ponto de vista puramente materialista, o problema da eutanásia consiste em determinar até que ponto a pessoa optante por essa solução está exercendo seu livre arbítrio com plena consciência; e conseqüentemente, até que ponto se pode ter certeza de que o executante dessa solução está livre do peso da acusação de assassinato.
A guinada um tanto brusca de um roteiro esportivo para um drama é narrativamente desconcertante. Na mudança de ritmo, o filme quase afunda. O espectador é deixado na expectativa de que uma reviravolta dramática venha consertar as coisas e colocá-las nos seis eixos convencionais. Mas isso não se verifica, porque a reviravolta não acontece. Pelo contrário, a situação piora cada vez mais. E o truque de nos deixar na expectativa acaba funcionando ao contrário, atrapalhando a compreensão do que está efetivamente acontecendo.
Não é fácil remendar dois gêneros de filme numa só narrativa. A tentativa só funciona por conta do talento excepcional do elenco envolvido, que mantém a credibilidade dos personagens ao longo de todas as reviravoltas. A expressão nua e crua de Clint Eastwood, com sua face endurecida, bem como a serenidade de Morgan Freeman e a sinceridade de Hilary Swank, amarram qualquer roteiro, até o mais improvável.
Daniel M. Delfino
25/02/2005
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