29.5.07

O político e o filósofo: debate sobre os rumos da esquerda




A Marcha a Brasília realizada no dia 17/08 sob a bandeira do “Fora Todos!”, representa o exemplo de uma iniciativa de ruptura não mediada com a experiência histórica do PT. A ruptura mediada está sendo realizada pelos Núcleos de Ação e Reflexão Socialistas (NARS), que se propõem, antes de avançar em qualquer movimento drástico no sentido da reorganização material/institucional da esquerda brasileira, realizar um balanço histórico do PT, com vistas a identificar as causas do seu naufrágio e prevenir essas falhas para que não se repitam na nova etapa que ora se inicia.

O Núcleo que está se estruturando na USP promoveu no dia 24/08 um encontro entre o filósofo Paulo Arantes (professor aposentado da própria FFLCH) e o economista Plínio de Arruda Sampaio Jr. (professor da Unicamp), com vistas a alavancar o debate, no auditório superlotado do prédio da História e Geografia.

Paulo Arantes foi o primeiro a falar, invertendo a ordem originalmente prevista, porque Plínio somente chegou em cima da hora. Ainda assim, o filósofo tentou humoradamente esquivar-se do encargo, sob a alegação de que o economista, falando depois, não iria concordar com ele e iria desmenti-lo. Não podendo escapar, Paulo Arantes apresentou-se humildemente como desorganizado e pediu paciência da parte do público. O humor fino e a mistura de ironia e sinceridade com que se portou são corolários da sabedoria que identifica o verdadeiro filósofo.

Com o estilo oblíquo que lhe é peculiar, Paulo Arantes começa contando uma história, à qual acrescenta comentários, sob o pretexto de estar fazendo apenas uma introdução, e desenvolve o tema com o recurso a digressões e desvios, ora tirando risadas do público, ora emanando gravidade, numa tensão nervosa que revela profundidade e agudeza de pensamento. Quando menos se espera, sem que sequer a introdução tenha sido formalmente terminada, a palestra está encerrada, porque todos os temas já foram devidamente expostos, deixando no ar sugestões e fios de raciocínio capazes de estimular vivamente a reflexão e a dúvida dos presentes, como convém mais uma vez ao verdadeiro filósofo.

Diz Paulo Arantes que esteve presente recentemente a uma reunião de um determinado agrupamento político de militantes de esquerda (do qual ele não revela o nome nem sob tortura) em que um veterano dirigente conduzia, num curso de formação, um procedimento de “análise de conjuntura”. O filósofo adianta, para riso geral, que discordou de todas as conclusões do grupo, mas reconheceu prontamente o método empregado na reunião. Tratava-se da cartilha “Análise de conjuntura”, escrita na década de 1960 por Herbert de Souza, que posteriormente se tornaria conhecido como Betinho. Na época, militante da Ação Popular, agrupamento católico de esquerda, Betinho escreveu seu manual para militantes com base em uma genial simplificação didática das categoriais teóricas lançadas num grande clássico do marxismo, “O 18 Brumário de Luís Napoleão”.

Neste livro, Marx analisa a evolução dos acontecimentos na França de 1948 a 1851, quando o então Presidente da República, Luís Napoleão, sobrinho do grande Bonaparte, aplicou um autogolpe e proclamou-se Imperador. O 18 Brumário foi a data, no calendário de peculiar nomenclatura revolucionária, em que o primeiro Napoleão proclamou-se Imperador, ato no qual foi canhestramente imitado por seu sobrinho, o que justifica o título do livro. Nesta análise, Marx resgata uma idéia de Hegel, de que a História somente se repete uma vez, mas como farsa. O golpe de Luís Napoleão, o pequeno, era uma farsa que tentava repetir o drama autêntico, no qual o grande Bonaparte tomou o poder.

A partir dessa chave interpretativa, Marx habilitou-se a descrever o papel de cada uma das classes e frações de classe em luta e a atuação dos respectivos partidos, líderes e teóricos no processo que vai da Revolução de 48 ao golpe do II Império. Segundo o filósofo, não importa que Marx tenha errado em suas previsões sobre os acontecimentos imediatamente subseqüentes; sua análise afirmou-se através dos séculos como um modelo insuperável de penetração e agudeza. A obra está articulada segundo uma concepção que reflete uma influência de estilo literário do grande romance europeu do século XIX, do qual o exemplo mais bem acabado era a Comédia Humana de Balzac. No “18 Brumário” temos uma construção de tipo teatral, um roteiro no qual os elementos estão dispostos como numa narrativa dramática. Temos os atores, o cenário, os fatos, os acontecimentos e o desfecho.

Essa obra tornou-se o exemplo mais clássico de “análise de conjuntura” no horizonte teórico da esquerda. Nos anos 1960, período em que o filósofo se iniciou nessa difícil arte, o Brasil viveu a sua farsa do 18 Brumário. A história da consolidação da sociedade burguesa repetiu-se como farsa no cenário tropical. As posições trocavam a todo momento, os enganos dramáticos se sucediam. Para riso da platéia, Paulo Arantes diz que quem adivinhasse o que iria acontecer, não estava entendendo nada. O Partido Comunista esperava por uma revolução burguesa, a intelectualidade engajada temia que Jango desse o golpe e se preparava para essa contingência. FHC foi o único a dizer que o golpe viria do outro lado (talvez porque estivesse muito bem afinado com esse lado). Hoje se sabe, o golpe da direita pró-imperialista estava devidamente respaldado por uma poderosa esquadra estadunidense em nosso litoral.

De volta ao momento presente, estamos vivendo a farsa da farsa. O partido de esquerda, ora no poder, governa para a classe dominante. E no entanto, essa classe dominante não o quer no poder. Normalmente, a burguesia coopta os partidos de esquerda corrompendo e comprando seus quadros. No Brasil atual o partido de esquerda compra os quadros da burguesia para realizar o programa da própria burguesia, pagando com recursos provenientes de lavagem de dinheiro sujo da mesma burguesia. Ao invés do grande romance clássico do século XIX, temos o teatro de revista, o vaudeville ou quiçá a comédia del’arte: cafetinas, doleiros, apartamentos onde se compra um vice-Presidente na calada da noite, etc. Paulo Arantes chama esse processo farsesco de crapulização.

A crapulização da política começa com a era Collor. A elite tradicional brasileira saiu queimada do processo e entregou o poder a uma tecnocracia capitaneada pela intelectualidade uspiana, cosmopolita e neoliberal, com FHC e Serra (ex-Ação Popular) à frente. Os oito anos de desgaste do neoliberalismo credenciam a nova esquerda egressa das lutas pela redemocratização para a tarefa de assumir o poder e costurar uma nova coesão social. No entanto, essa nova esquerda fracassa miseravelmente e torna-se senil antes mesmo de sequer iniciar aquilo a que historicamente havia se proposto.

A falência do governo Lulla é a falência da sociedade brasileira como um todo. O Estado nacional, suas instituições, sua função histórica como pilar de estruturação da sociedade, foram entregues ao primeiro bucaneiro das finanças mundiais que apareceu, o ex-presidente do BankBoston, e o resto desmilingüiu-se. O projeto nacional está morto. O Brasil foi abortado. As classes sociais se decompõem, seus restos amorfos se revolvem num cenário confuso, suas frações se descolam e flutuam a esmo, suas lideranças assumem posições invertidas. O big business namora o bas-fonds. A cúpula do PT se associa ao crime organizado.

Na decomposição da sociedade, deixam de funcionar as categorias tradicionais da análise de conjuntura. O filósofo recorre ao jornalista do “Estado de São Paulo”, Sérgio Augusto, para quem o Brasil vive um Apartheid social, marcado pela simbiose entre suas duas esferas segregadas. Na promiscuidade entre os dois lados do Apartheid, jogadores de futebol e pagodeiros se associam ao tráfico de drogas, bicheiros se associam a lobistas internacionais, prefeitos assassinados assombram ex-ministros de Estado, etc.

Para Paulo Arantes, quem melhor havia entendido a situação que se desenhava no processo eleitoral de 2002 tinha sido seu colega de USP, Chico de Oliveira, que falava em uma era da indeterminação política. As classes se descolam de seus aparatos de representação, como partidos, sindicatos, ONGs, etc. Daí a ânsia nunca satisfeita por ética e mais ética, reforma política, etc., entre outras panacéias, que sequer arranham a superfície do problema. Chico de Oliveira sabia dos problemas que viriam, como os intelectuais em conjunto sabiam o que seria o governo Lulla, mas todos esperaram até a última hora.

Sabia-se que o voto em Lulla era um voto de exaustão, que não representava opções políticas concretas e diferenciadas, mas tão somente uma vaga esperança de mudança. Paulo Arantes é bastante duro e autocrítico com essa intelectualidade que ele mesmo representa. Segundo o filósofo, quem já havia tirado todas as conclusões e rompido desde antes, estava no mundo da Lua. Agora a crise nos unifica a todos.

O filósofo encerra sua contribuição debaixo de aplausos. Passa-se o microfone para o economista, que liderou em janeiro de 2005 um processo de ruptura de importantes quadros e militantes com o PT.

Plínio dispensa os rodeios dialéticos e entra de sola na questão, com frases duras e contundente franqueza. Para cada milhão do mensalão, saía um bilhão do superávit primário. O governo Lulla é neoliberal na ação e na omissão. Não há nada mais neoliberal do que o discurso de Palocci para acalmar o mercado. A adesão do PT ao neoliberalismo tem como conseqüência a adesão aos métodos burgueses de fazer política, ou seja, a corrupção. Na política que exclui o povo, a disputa se dá entre facções de parlamentares de aluguel. Se não se opta por descartá-los todos, é preciso pagar seu preço. A crise do PT arrasta consigo a CUT, a UNE e o MST, que também se desligam de suas bases.

No seu epicentro, a crise é fulminante e espetacular. O PT fracassou em mudar o Brasil e o Brasil mudou o PT. A crise do PT decorre de sua incapacidade de responder às mudanças que o Brasil precisa. O PT vendeu o socialismo pelo projeto de poder. Não há glória alguma em prever a decadência do PT. A glória será a de conseguir juntar os cacos do projeto de esquerda. É necessário acertar as contas com o PT para não girar em círculos.

O PT errou porque trabalhava com uma leitura equivocada da Revolução Brasileira. O PT trabalhava com a idéia de que o capitalismo brasileiro comportava políticas reformistas de tipo social-democrata, bem como algum espaço para a convivência pacífica entre as classes, dentro de uma mítica institucionalidade civilizada. O Brasil não é a Suécia. Esse engano é monumental. O capitalismo brasileiro é impermeável à mudança e a democracia brasileira é extremamente restrita.

Segundo Florestan Fernandes, a atuação da burguesia no Brasil é determinada por uma estratégia de “contra-revolução permanente”. Nossa burguesia nunca cede nada, nenhum centímetro sequer, nem em seus privilégios e nem em sua subordinação ao imperialismo. A porta da mudança pela linha de menor resistência permanece frustrada. Toda a luta pela redemocratização (da qual o PT foi um importante componente) esquece que, precisamente, a ditadura deu-se como uma resposta contra a tentativa de reformas de base em aliança com a nossa versão de “burguesia progressista” então ainda supostamente existente.

A classe trabalhadora tinha historicamente que experimentar a linha de menor resistência representada pelo PT, mas é preciso urgentemente tirar as conclusões dessa experiência. Está em curso um processo de aborto da sociedade brasileira, como parte da recolonização neoliberal dos países da periferia do sistema. A terceira década de estagnação econômica reflete uma violenta ofensiva de desnacionalização do Brasil. A crise chega ao PT depois de já haver inviabilizado todos os partidos. Nesse tsunami global em que estamos imersos, se desmoronam todas as alternativas de gestão. A própria burguesia não consegue produzir a pizza que deveria sustar a crise.

Na fase superior do imperialismo o capitalismo vem acompanhado de barbárie. O capitalismo global é incompatível com a democracia. Nessa conjuntura a esquerda institucional tradicional também não consegue encontrar respostas. O PT está decapitado e a direita está desarticulada. Falta entrar em cena o ator social decisivo que vai mudar o Brasil. Lembrando que faz análise de conjuntura desde 1982, Plínio diz que desde aquela época batia na mesma tecla: se o Brasil não mudar sua política econômica, a desigualdade social vai piorar. Florestan Fernandes advertia para o fato de que nas sociedades determinadas pela segregação a luta de classes se resolvia pela guerra étnica. Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil. Os pobres são o único setor social disposto a morrer pelo Brasil. Mas como organizar sua luta?

A realidade é sempre mais rápida e complexa do que as respostas com que se procura contê-la. Está em curso uma conspiração para manter Lulla no poder. Paralelamente, desenrola-se o movimento para destruir o PT. O movimento para resgatar o PT existe com sinceridade dentro e fora do partido; a destruição do partido vem de dentro do próprio PT. Tarso Genro insiste ridiculamente na idéia de refundar o PT, participando de uma chapa para a direção do partido que será manipulada por Zé Dirceu, da mesma maneira que Fernandinho Beira-mar comanda o crime organizado de dentro do presídio. Zé Dirceu vendeu a alma ao diabo e quis destronar o próprio diabo. Acreditar que esse núcleo de direção pode refundar o partido é como entregar a Sérgio Naya a reconstrução do Palace II.

O PT morreu e a burguesia quer que continue morto. Só assim tudo continuará como antes. A burguesia não tem projeto para o país. Seu projeto é o fim da história. A retomada da história consiste na ascensão de seu verdadeiro protagonista, o povo, o conjunto das classes subalternas. É preciso ensinar o povo a ter uma nova radicalidade. Não se deixar enganar e não se deixar cooptar. Esse é o papel histórico que o PT não cumpriu.

A questão fundamental é a revolução nacional. Conquistas democráticas inacabadas, como a distribuição da terra e a proteção ao trabalho, terão que ser conquistadas ao preço de muita luta. É preciso lutar para romper com a lógica do capitalismo brasileiro. A direita reagirá com a contra-revolução. Será preciso responder a ela com a defesa das conquistas populares.

Não há solução de curto prazo. Pedir por uma resposta agora seria como perguntar porque Senna não saiu do carro quando a barra de direção quebrou. O que importa agora é fazer a convergência de todos os que querem mudar o Brasil. Em política não se pode cometer erros fatais. É preciso ter mais paciência e mais tolerância.

Encerrada a segunda fala, sob mais aplausos, vieram as rodadas de perguntas. E a promessa de que os debates vão continuar.

Daniel M. Delfino
03/08/2005

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