31.5.07

Todo voto é nulo




Existem três tipos de campanha pelo voto nulo. A primeira e mais disseminada nas eleições de 2006 é a dos setores que estão “decepcionados” com o governo Lula, acham que “os políticos são todos iguais”, pensam que “nada nunca muda mesmo” e que “a política não vale à pena”. A segunda e mais tradicional é a dos anarquistas e ultra-esquerdistas que consideram que em nenhuma hipótese os inimigos do sistema podem cogitar em qualquer tipo de participação nas instituições. A terceira e mais difícil é a que defende o voto nulo programático, ou seja, mantendo o foco num programa socialista, considera que o mesmo não se encontra presente nas atuais eleições e portanto não endossa nenhuma das candidaturas em disputa. É neste terceiro tipo de campanha que nos engajamos.

Se dissemos que o programa socialista não está presente nas eleições, isso significa que nos colocamos em uma polêmica direta com os agrupamentos que compõem a frente de esquerda PSOL/PSTU/PCB. Esta frente teria o propósito e a missão de colocar o socialismo em discussão nas eleições. Mas a coligação encabeçada por Heloísa Helena (HH) não aponta nenhuma proposta de ruptura com o capitalismo, nem mesmo de tipo mediatizado e transicional. Além disso, um programa não é apenas um conjunto de princípios, ideais e palavras de ordem, mas também se materializa em atitudes práticas. A frente se construiu de cima para baixo, por acordo entre as cúpulas, sem diálogo com as bases do movimento social, sem debate sobre o programa, etc. A prática política da frente de esquerda não é socialista, é eleitoralista, aparatista e burocrática.

Antes mesmo de ter chances de chegar ao poder como Lula, HH atenua o discurso, se omite quanto a qualquer medida de ruptura, esconde o socialismo e se transforma em “Heleninha paz e amor”. Sua política não tem referência de classe e sim apelo abstrato à “ética” no estilo do moralismo mais oportunista. Além disso, a frente de esquerda está se desfazendo antes mesmo de encerradas as eleições. A Intersindical, claramente impulsionada por setores do PSOL, surge com o projeto de impedir a ruptura dos sindicatos com a CUT e a sua adesão à CONLUTAS, por sua vez um projeto caro ao PSTU. Se a justificativa para a constituição da frente era a necessidade de unidade para as lutas, que é uma necessidade real da classe trabalhadora, as forças políticas que a compõem demonstram assim que não estão de fato comprometidos com ela.

É por isso que a luta por um programa socialista não passa pela candidatura de HH e sim pelo fortalecimento das lutas imediatas em curso: contra as demissões na Volks, nas campanhas salariais das diversas categorias, na luta pelo passe livre, na luta por terra e moradia; em todos os pontos em que os interesses vitais dos trabalhadores estão confrontados com os da burguesia. É para esse cenário que voltamos as atenções, é aí que concentramos nossas forças.

Nesse sentido, a campanha pelo voto nulo programático não é exatamente uma campanha contra a frente de esquerda, pois sabe que a frente é um arranjo temporário que logo será desfeito. E que a unidade que interessa de fato é aquela que será construída pelos próprios trabalhadores em suas lutas, estejam aquelas organizações presentes ou não. A campanha pelo voto nulo programático é também, e principalmente, uma campanha contra a burguesia.

A burguesia está muito bem servida nessas eleições. De um lado, ela tem Alckmin, o candidato Daslu/Opus Dei, com um programa neoliberal agressivo. Do outro, ela tem Lula, o operário padrão do imperialismo, que implanta o neoliberalismo com mediações. Sem Lula, a rejeição popular à FHC poderia ter resultado em mobilizações de massa, ameaçando a “estabilidade” e o regime. Com Lula no controle das organizações do movimento social (CUT, UNE, MST, Igreja, etc.), a insatisfação se transformou em esperança vaga de melhoria, inoperância prática e ausência de resistência material.

Entretanto, uma vez utilizado Lula para desarmar o movimento social, a burguesia calculou que poderia descartá-lo. Passou então a expor o “modus operandi” da política burguesa: “mensalão”, mala preta, dólares nas cuecas, etc.; práticas que a cúpula do PT adotou com risível amadorismo. Com a exposição da corrupção, as gangues partidárias preferenciais da direita, que tradicionalmente monopolizavam o butim da corrupção, esperavam poder inviabilizar Lula para as eleições de 2006. Queriam se livrar da incômoda concorrência da camarilha sindical petista, a qual havia se aboletado no aparelho do Estado como uma corriola de arrivistas deslumbrados, e sempre foi vista pelo velho mandarinato como estranha no ninho.

Essa estratégia arriscada da velha direita comportava uma série de variáveis imprevisíveis, que estão se desdobrando nesse momento. De um lado, a burguesia foi bem-sucedida ao desmoralizar o PT. Com isso, não foi apenas o projeto eleitoral da camarilha de Dirceu e Cia. que saiu avariado. A própria idéia original do partido, a idéia da mobilização popular como alternativa de mudança, sofreu um duro golpe. Muitos passaram a pensar que “a esquerda também não presta”, “a esquerda também se corrompe”, etc. O maior crime de Lula e do PT está na desmoralização da esquerda inteira.

Por outro lado, o próprio regime em si também sofreu um importante abalo, pois aumentou a percepção de que as eleições não mudam nada e não servem para nada. Essa perda de confiança no regime também é em alguma medida perigosa para a burguesia (e conseqüentemente poderia ser potencialmente útil aos inimigos do sistema através de uma campanha pelo voto nulo politicamente qualificada), pois mostra que se esgotaram as alternativas. Não se pode subestimar que Lula foi, para uma boa parte da população, durante duas décadas, o último cartucho, a “última esperança” de um “salvador da pátria”. Se nem mesmo Lula e o PT agiram diferentemente dos demais, o que fazer? Vem daí, do desencanto dos que apostavam no PT como alternativa de mudança, boa parte do voto nulo “decepcionado”.

A grande questão é que, decepções à parte, ao contrário do que a velha direita putrefata e seus lacaios na mídia planejavam, a campanha de denúncias não foi suficiente para fazer a massa do eleitorado rejeitar Lula. A campanha de Alckmin, vulgo “picolé de chuchu”, o candidato menos carismático que se poderia inventar, claramente não decolou. Ninguém vê no PSDB, PFL e adjacências os porta-vozes autorizados da ética. A reeleição de Lula expressa, do ponto de vista do sistema, um monumental fiasco da burguesia, pois a classe dominante brasileira provou-se incapaz de administrar a massa falida do capitalismo nativo através de seus próprios quadros políticos, devidamente desmoralizados, tendo que repassar o serviço sujo para os profissionais do neopeleguismo.

Nem a campanha da direita decolou, nem a de HH, e nem ainda a do voto nulo em suas diversas matizes. A eleição se transformou num ritual burocrático que não vai interferir com a realidade material. Todos têm pressa de que acabe logo, para se verem livres do horário político na televisão. Não está havendo espaço para o debate político vivo, qualificado e substantivo. As eleições de 2006 estão especialmente apáticas, devido à percepção generalizada de que não há alternativas reais em disputa. Na ausência de conteúdo político e divergência, o que temos é uma espécie de programa de auditório puramente personalista. Um patético referendo sobre a caricata e rotunda figura pessoal de Lula.

Uma figura que despontou para a política nacional liderando as greves do ABC e que agora encerra um ciclo com demissões, rebaixamento de direitos e ameaça de fechamento da Volks, no mesmo ABC. Diante dessa eloqüente coincidência, Lula põe as mãos no bolso, olha de lado e assobia, como se não fosse com ele. O que se passa no ABC é só uma amostra do que aguarda a classe trabalhadora como um todo, logo ali na próxima esquina. Enquanto a ficha não cair na cabeça dos trabalhadores, Lula segue fingindo que não é com ele e celebrará a reeleição com Dom Perignon.

Mas é preciso explicar porque a ficha ainda não caiu, e não só a percepção do caráter real de Lula não penetrou na massa, como nem mesmo a maciça campanha de denúncias não foi suficiente para fazer o eleitorado rejeitar Lula. O enfrentamento que a burguesia travou com Lula em 2005 foi prematuro. De fato provocou a ruptura de um setor mais esclarecido da população com o PT, por revolta com a corrupção. Mas o fator numérico decisivo nessas eleições será o apoio de Lula entre os mais pobres. Uma revista semanal antes respeitável (Carta Capital nº. 406) estampou orgulhosamente uma capa com a imagem triunfal de “Lula pai dos pobres”. E convenientemente esqueceu de acrescentar: “mãe dos ricos”. Bastaria perguntar aos banqueiros e especuladores que ganharam fortunas obscenas com a gestão de Lula para saber para quem ele governa.

Por que os mais pobres votam maciçamente em Lula? Por um lado, trata-se do efeito material dos diversos tipos de bolsa-esmola distribuídos nas regiões mais pobres, no pior estilo demagógico dos velhos coronéis e caciques. Antes que digam que alguém que é contra os programas assistenciais certamente não passa de “um pequeno-burguês que faz suas três refeições por dia e não sabe o que é a fome”, é preciso lembrar que, se Lula estivesse realmente interessado em governar para os pobres, o grosso do gasto público não estaria sendo desviado para os especuladores da dívida. E os pobres estariam sim sendo alimentados, mas estariam também, principalmente, sendo estimulados e organizados para arrancar com suas próprias mãos, coletivamente, em massa, a terra, a moradia, o emprego, a cultura e tudo de que necessitam. Pelo contrário, estão contentes com suas esmolas, como quer a burguesia.

A luta de classes não se faz contrapondo o “candidato dos pobres” contra os dos “ricos”, como marcas de sabonete num outdoor, num contexto de disputa grotescamente manipulado. Se faz com a defesa do conteúdo programático peculiar ao caráter ontológico de cada classe. O programa da burguesia é o capitalismo e suas crises. O programa da classe trabalhadora é o socialismo. Fora disso, não há alternativas reais. Administrar o capitalismo, “democratizá-lo” ou “humanizá-lo” resulta no desastre que foi o governo Lula, a continuidade agravada do descalabro neoliberal de FHC. E que seguirá pelo próximo mandato adentro: destruição das conquistas trabalhistas, da previdência pública, do que restou do patrimônio público, das universidades públicas, etc. São essas as prioridades do grande capital para o próximo período. É para resistir a esses ataques que é preciso organizar as massas.

Mas mesmo fora dos setores diretamente beneficiados pelo bolsa-esmola, o apoio popular a Lula é maciço. O povo reconhece que houve corrupção, mas não reconhece à direita a prerrogativa de acusar Lula por isso. Trata-se de uma versão brasileira do “esse governo é uma m@#$%, mas é o meu governo”, que os trabalhadores chilenos diziam de Allende. O povo se conforma e se resigna com a idéia de que “todos roubam”, e de que, se é para roubar, que seja “um dos nossos”.

Portanto, salvo algum acidente de percurso de proporções muito grandes e também muito improvável, Lula estará reeleito no 1º. turno. O que fazer com a indignação dos que não aceitam a corrupção, nem de Lula nem de ninguém, muito menos da turma de Alckmin, e não vêem em HH uma alternativa viável? Essa indignação primária e despolitizada, porque desprovida de conteúdo de classe, resultou na campanha pelo voto nulo dos “decepcionados”. A principal materialização dessa campanha é a corrente que circulou na internet pregando que a eleição estaria anulada se mais de 50% votassem nulo.

Prontamente, a burguesia tratou de acabar com a festa e mobilizou um de seus esbirros, o Presidente do TSE Marco Aurélio de Mello, para dar sua doutoral interpretação de que não existe a possibilidade de cancelar as eleições por meio do voto nulo. Essa interpretação está evidentemente errada à luz do espírito da lei. Se o 2º. turno existe porque um candidato não pode tomar posse sem o respaldo de pelo menos 50% dos eleitores, é óbvio que uma maioria de 50%+1 de votos nulos cancelaria a eleição. Mas o aspecto mais importante a ser lembrado aos defensores do voto nulo “indignado” é que não é o voto em si, ou seja, a atitude de ir até as urnas e apertar um botão qualquer, e sim a atitude de ir para as ruas, que pode fazer alguma diferença.

Se as eleições tivessem realmente o poder de mudar alguma coisa, a burguesia não seria estúpida de permitir que se colocasse uma urna em cada esquina (se é que alguém acredita que o resultado que sai das urnas eletrônicas, a cujo programa ninguém tem acesso, realmente reflete o conteúdo das votações, que é impossível de ser verificado). Mesmo que fosse através de um voto nulo maciço, seria fácil demais para ser verdade.

O propósito da campanha do voto nulo programático não é cancelar a eleição com uma batelada de 50% de votos nulos (infelizmente, tal hipótese é muito improvável); ainda que seja divertidíssimo imaginar o que a burguesia faria para lidar com esse imbróglio jurídico. A questão é que a burguesia sairia do imbróglio, pois os fundamentos estruturais de seu poder material (a propriedade privada, o respeito supersticioso dos explorados pelo opressor, a inércia das formas dadas de organização alienada da produção, a lealdade do aparato repressivo militar e policial, etc.) não teriam sido abalados. O propósito do voto nulo programático é organizar as forças de oposição para destruir materialmente o poder da burguesia de uma forma que jamais possa ser recuperado. Essa é a tarefa, ainda que o horizonte de tempo pareça muito distante, e a campanha pelo voto nulo no período eleitoral é só um instrumento de discussão para avançar no processo de organização. Nesse sentido, o resultado da votação em si é secundário.

É por isso que todo voto é nulo, inclusive o voto nulo. A atual eleição é nula, porque é politicamente morta como alternativa real de mudança. Todo voto é nulo, seja aquele entregue a algum candidato, seja o voto em um número que não existe.

Mas os defensores da ordem não se limitam a tentar barrar preventivamente a avalanche de votos nulos indignados naturalmente esperada. Tentam ainda convencer o eleitor de que o seu voto é o responsável pela realidade do país. Inventam uma série de slogans para estimular a participação, fazendo do voto o limite máximo da cidadania, quando na verdade trata-se de um ato de renúncia à política. Dizem que “o Brasil é tão bom quanto seu voto”, exortam o eleitor a ser “responsável” e ainda por cima passam sermão no povo, dizendo que a culpa da eleição de políticos corruptos é do eleitor.

Como se a farsa da democracia representativa funcionasse. Como se existisse algum canal pelo qual os eleitores pudessem realmente controlar seus “representantes”. Como se a causa de termos um Congresso de mensaleiros e sanguessugas fosse da amnésia do eleitor, que não se lembra em quem votou. Como se o povo não fosse, no intervalo das eleições, alienado por telenovelas, futebol, programas de auditório e telejornais imbecilizantes que o impedem de pensar sobre sua realidade. Na realidade, o voto do eleitor brasileiro não conta para nada. A opinião de Wall Street sobre qual candidato é “confiável” é o que decide. De nada adianta dizer “vota Brasil!” nas eleições a cada dois anos se o mercado vota todos os dias.

Essa pérfida campanha quer que o eleitor se recolha num ato de contrição, arrependa-se do pecado de sua “despolitização” e volte a sonhar com um novo salvador da pátria. Quer trazer o povo de volta ao redil das ilusões na “democracia”. É por isso que o voto nulo incomoda tanto a essas vestais da ordem. Por que mostra que, na realidade, o Brasil não vota!

Na realidade, não há voto útil. Só a luta muda a vida! Lutar é preciso, votar não é preciso! Nossos sonhos não cabem nas urnas!

Daniel M. Delfino
09/09/2006

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