No dia 27 de Outubro de 2005 dois jovens da comunidade dos trabalhadores imigrantes de países árabes morreram eletrocutados numa subestação elétrica da periferia de Paris. Aparentemente, estavam sendo perseguidos pela “gendarmerie”, a polícia francesa. Nos dias que correm, ser perseguido pela polícia, especialmente quando se tem pele morena, pode muito bem ser considerado uma causa de morte certa. Que o diga Jean Charles de Menezes. Os dois infelizes jean charles parisienses escaparam da frigideira para cair no fogo.
Sabendo o que é a polícia do Estado burguês quando age contra grupos populacionais tradicionalmente marginalizados, não é difícil deduzir que o incidente forneceu a gota d’água que faltava para que transbordasse o copo de cólera que vinha sendo represado até o limite do insuportável. O incidente provocou a imediata reação dos jovens da comunidade de trabalhadores imigrantes, que do protesto passaram para a violência generalizada e desorganizada. Noite após noite, grupos de amotinados da periferia, árabes, negros e orientais, saíram às ruas praticando atos de vandalismo, depredações, incêndios, confronto com a polícia. A escalada de violência suscitou comparações com o célebre maio de 1968, última vez em que o regime político foi abertamente desafiado.
Pior que isso, o Ministério do Interior foi obrigado a decretar estado de emergência em vários departamentos do território francês, invocando uma lei de 1955 que não era posta em prática desde a guerra da Argélia. Naquela ocasião o exército imperialista francês reprimia violentamente a população insurgente do país magrebino, que acabou sendo vitoriosa e obtendo a independência. Para essa porção da população em especial, os imigrantes de origem argelina, o recurso a tal lei hoje deve aparecer como duplamente insultuoso. Mais de quarenta anos depois, “a batalha de Argel” (título de um filme clássico de Gillo Pontecorvo que retratou aqueles acontecimentos históricos) se repete nos subúrbios de Paris, chegando ao próprio coração da ex-metrópole colonial.
Nesse intervalo de mais de quatro décadas, grandes transformações se verificaram no interior da sociedade francesa e européia. As conquistas do Estado de bem-estar social, que alcançaram seu apogeu precisamente naquela década de 1960, entraram a seguir numa fase de paralisia, culminando em estagnação e decadência. A regressão consumou-se nas décadas de 1980 e 90, com o advento da hegemonia neoliberal, ainda hoje reinante.
O Estado de bem-estar social entrou em crise por diversas razões, entre as quais aquelas de ordem demográfica e também econômica. Costuma-se apresentar como razão demográfica para a reversão das conquistas sociais o simples crescimento da expectativa de vida da população, que aumenta o volume dos desembolsos do Estado com o sistema de previdência pública. Esse aumento teria que ser compensado por um aumento da contribuição da população economicamente ativa (PEA). Essa justificativa constitui evidentemente uma verdade parcial. Entretanto, houve também uma significativa mudança no perfil dessa PEA.
Os novos contingentes integrados à classe trabalhadora européia vieram de países de 3o. Mundo que no passado foram vítimas históricas da espoliação colonial e imperialista européia (no caso da França, vieram do Magreb, África ocidental, Indochina e ilhas do Caribe e Oceania). Esses novos contingentes integraram-se à força de trabalho metropolitana sob as condições substantivamente alteradas da reestruturação produtiva então em curso. Nesse novo contexto, os empregos são temporários, sub-remunerados, desprotegidos, terceirizados, informais, precários em todos os sentidos.
Essa reestruturação produtiva está na base das profundas alterações verificadas na divisão mundial do trabalho a partir dos anos 1980 em diante, expressando uma forte ofensiva do grande capital contra os trabalhadores. As grandes corporações redesenharam o cenário das operações econômicas de modo a dispor de um estoque global de mão de obra e açambarcar um mercado consumidor também global, obtendo um salto de qualidade na mobilidade, flexibilidade e fluência operacional de suas atividades. O capital compra e vende mercadorias (entre elas a força de trabalho) numa praça global. Dessa estratégia do grande capital nasce o impulso político para as chamadas “reformas” neoliberais que advogam a desregulamentação dos mercados, materializada em destruição dos direitos trabalhistas, liberalização dos fluxos de capital, diluição das fronteiras, corridas especulativas, etc.
Tudo isso foi completado por uma ofensiva político-ideológica que macaqueava o fim do socialismo, fim das utopias, fim da história, fim do sujeito, fim do homem, etc., resultando na apoteose dos “mercados livres”. Coincidiu com esses movimentos econômicos e políticos uma significativa onda de renovação da base tecnológica dos meios de produção, com a miniaturização da eletrônica, a informatização, a automação, as telecomunicações, a internet, a “sociedade da informação”, etc. Evidentemente, essas violentas transformações na processualidade material da reprodução social trouxeram dramáticos impactos culturais, expressos na idéia de “globalização”, na desterritorialização das culturas, na hegemonia da indústria cultural estadunidense, etc.
Na Europa as transformações provocadas pela reestruturação produtiva vieram embaladas no projeto da União Européia. Os ataques neoliberais à previdência pública e aos direitos da classe trabalhadora foram desencadeados sob o pretexto da necessidade de se atingir em cada país os rígidos critérios de gestão macroeconômica ortodoxa requeridos para admissão na chamada “zona do euro”. Sob o pretexto de resolver o problema da previdência pública, cortam-se benefícios, aumenta-se a idade para aposentadoria, diminui-se a assistência aos pobres e desempregados, etc. Na outra ponta, cortam-se os direitos e a renda dos trabalhadores que ingressam no sistema sob as condições rebaixadas da reestruturação.
Temos assim com as “soluções” neoliberais o pior de dois mundos: o corte dos gastos sociais e a precarização do trabalho. Nessa lógica perversa as conseqüências de uma determinada medida tornam-se a causa da outra, e ambas se alimentam mutuamente, perpetuando um círculo vicioso de desagregação social. A população “nativa” é colocada em luta contra os estrangeiros que se incorporam à economia, ambos em disputa pelos fundos públicos, que seriam suficientes para todos num regime que não tivesse como prioridade os lucros das megacorporações.
Esse cenário de desagregação e atomização social explica o ressurgimento patológico de ideologias de extrema-direita nazi-fascistas, xenófobas, racistas, preconceituosas e intolerantes. Produz-se a estigmatização dos estrangeiros, particularmente dos muçulmanos, vítimas preferenciais em tempos de “guerra ao terrorismo”. A estigmatização e a marginalização material alimentam-se também mutuamente, no caso da população imigrante. Cada grande cidade européia transforma-se num microcosmo do 3o. Mundo. Desempregados, favelas, mendigos, cortiços, criminosos tisnam o brilho da Cidade Luz. Vive-se uma “brasilianização” generalizada. Passam a conviver em cada sociedade um núcleo burguês e pequeno-burguês circundado por uma massa proletária, sub-proletária e lúmpens.
Na Europa o sub-proletariado e o lúmpen não mais suportaram a opressão. A faísca da indignação ateou fogo a um barril de pólvora contestatório. O sistema inviabilizou-se pelo próprio aprofundamento das contradições que o fazem girar freneticamente. Os empregos que surgem são de péssima qualidade, insuficientes para sustentar o sistema de benefícios sociais. Isso força o Estado a puxar o cobertor, descobrindo ora os pés, ora a cabeça (a ausência de um projeto claro explica a dificuldade para a constituição de um novo governo na Alemanha). Mas a indefinição não se prolonga eternamente, pois apenas serve para expor a inviabilidade das políticas dos partidos da esquerda de tipo social-democrata e reformista. Com maior ou menor constrangimento, todos voltam bem comportados ao redil da administração do capitalismo.
Ao invés de enfrentar as mega-corporações que implantam autoritariamente essa política de desvalorização sistemática do trabalho, o Estado neoliberal prefere por fim enfrentar os trabalhadores, cortando seus direitos e reprimindo seus protestos. A globalização tornou os Estados nacionais ideologicamente reféns das empresas. Os laços materiais entre as corporações e os políticos os tornam incapazes de romper com essa vassalagem. De onde decorre a necessidade de romper com esse sistema em que o pretexto da representatividade do Estado desapareceu completamente.
Os tumultos não surgem pois como “raios em céu azul”, mas têm uma explicação material que repousa na incapacidade do Estado burguês neoliberal tardio para administrar a contento a viabilidade da reprodução social, devendo recorrer cada vez mais à força bruta para reprimir os seus espasmos terminais. Essa incapacidade é historicamente construída e materialmente irreversível. Nessas condições, anuncia-se a necessidade premente de uma articulação dos movimentos que trabalham na perspectiva da superação da ordem vigente em direção a um processo de ruptura, positivamente mediado pela construção de alternativas.
A ruptura do sistema é tradicionalmente teorizada com o recurso ao conceito de revolução. Mas que revolução é essa que emerge dos subúrbios? Uma revolução sem ideologia, sem partido, sem programa, sem método, sem começo, meio e fim... É ainda isso uma revolução? Os distúrbios de Paris do século XXI com seus jovens incendiando os automóveis (símbolos por excelência de uma determinada forma de “civilização”) fecham um círculo com os luditas do século XVIII inglês destruindo os teares, nos primórdios da Revolução Industrial. Estamos de volta às lutas contra a afirmação do capitalismo ou diante do anúncio de seu esperado sepultamento?
O sistema experimenta um dos seus muitos momentos históricos de curto circuito. Os distúrbios entram em sua 16a. noite no momento em que este texto é escrito (11/11/05), espalhando-se para outras cidades francesas e outras capitais européias, como Bruxelas e Berlim. Em que pode resultar esse curto circuito? Seja o seu resultado uma revolução, seja o recrudescimento da repressão, seja a promessa de concessões parciais da parte dos bombeiros do Estado encarregados de apagar o incêndio social; o certo é que não se encontrará a explicação para a crise nos veículos oficiais e oficiosos de informação.
Quando se afirma no título do artigo que a revolução dos subúrbios “não será televisionada”, a referência que se faz não diz respeito a problemas técnicos que impedem a transmissão, nem a uma situação de natureza política conjuntural, como por exemplo a greve dos jornalistas italianos, mas a uma incapacidade estrutural da parte dos meios de comunicação de tratar um fenômeno dessa natureza. Os meios de comunicação comunicam qualquer coisa, menos o entendimento da realidade.
Estejam os distúrbios se encaminhando para a revolução ou não, o discurso da rejeição do sistema, em qualquer de suas muitas formulações teóricas e práticas, não é jamais assimilado. Aparece como uma língua bárbara, alienígena, intraduzível, mero ruído, que não diz nada, porque aquilo que diz é incompatível com a manutenção da ordem, e vice-versa. O caos e a desordem não podem jamais resultar na admissão da inviabilidade do sistema. Nessa linha não pode haver explicação real para a “revolução dos subúrbios”. Trata-se de um fenômeno da ordem do absurdo, “sui generis”, uma invasão de gafanhotos, um novo vírus da gripe do frango ou da vaca louca, que surge de tempos em tempos dos abismos insondáveis do caos para perturbar o “sono dos justos” da burguesia rentista. Um fenômeno obscuro da natureza, aleatório, irracional e imprevisível.
Não há espaço no discurso dos meios de comunicação para termos como contradição, descontinuidade (em continuidade dialética), ruptura e superação, que são precisamente as categorias que articulam a inteligibilidade da História. O sistema é auto-centrado e auto-referente. Sua lógica é circular e auto-contida. Tudo o que é deve continuar sendo; o que não é nunca aconteceu nem pode jamais vir a ser. O presente contínuo está eternizado.
O presente eternizado é evidentemente o mundo da hegemonia burguesa. Os meios de comunicação vêem os acontecimentos do “novembro quente” parisiense de uma perspectiva de exterioridade. Os acontecimentos estão transcorrendo “lá fora”, em outro lugar, com outra gente (outra “raça”?), em outro mundo. São exteriores e misteriosos quando se assume o ponto de vista do núcleo integrado da sociedade. Para esse núcleo, demarcado pelo diferencial da propriedade, pelo acesso ao consumo, pela cor da pele, pela religião, pela proteção do Estado, etc., a sociedade transformou-se num safári. Para se manter seguro, é preciso ficar em casa, com a TV ligada.
A TV propicia a dose de sedativo ideológico requerida para mitigar a elevação febril da temperatura revolucionária. Ao mesmo tempo em que não explica, a mídia perpetua o autismo social dos setores para os quais trabalha. Se no passado era possível distinguir a alegada função das mídias (transmitir informação) de seu procedimento comercial (veicular publicidade), a era da globalização neoliberal uniu forma e conteúdo. A programação, que antes era um pretexto para unir a disponibilidade dos espectadores às ofertas de consumo, agora é ela própria publicidade, e a publicidade é ideologia. Do noticiário às telenovelas, do futebol aos musicais, dos programas de auditório aos especiais, tudo se mescla num mesmo discurso: competição, individualismo, aparências, sensações, imediatismo, fluidez, rapidez, repetição, compulsão, quantificação, precificação e outras patologias.
A ideologia veiculada enquanto forma e conteúdo não admite contestação. O discurso hegemônico está pautado numa estrutura de pensamento único. Nessa via de mão única só há uma direção possível, um modelo econômico, um sistema político, um estilo de cultura e de vida. Não há alternativa. O mercado é o único meio de se obter prosperidade, felicidade, vitória, qualquer coisa. Fora do mercado não há salvação. No seu reino encantado pontificam as bolsas de valores, os números da bilheteria, a cotação da moeda, a parada de sucessos, o ranking dos melhores, os graus na escala Richter, a balança comercial, as personalidades do ano, o campeão da temporada, o alfa e o ômega, a contagem de mortos, a porcentagem de lucro, assim na terra como no céu.
Só o dólar é deus e a TV é o seu profeta. O show deve continuar.
Interrompemos nossa programação.
Daniel M. Delfino
11/11/2005
Filme mencionado:
Nome original: Chavez: inside the coup ou The revolution will not be televised
Produção: Irlanda, Nova Zelândia, Estados Unidos, Alemanha, Finlândia, Inglaterra (UK)
Ano: 2003
Idiomas: Inglês, Espanhol
Diretor: Kim Bartley, Donnacha O'Briain
Roteiro:
Elenco: Hugo Chavez, Pedro Carmona, Jesse Helms, Colin Powell, George Tenet
Gênero: documentário
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
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