Toda vez que é perguntado sobre “O Código da Vinci”, este escriba oferece uma única resposta: “O pêndulo de Foucault”. O livro do italiano Umberto Eco é o verdadeiro compêndio das teorias de conspiração envolvendo cabala, alquimia, magia, Igreja, sociedades secretas, druidas, templários, rosa-cruzes, maçons, Santo Graal, linhagem merovíngia, etc., urdido com inesgotável erudição, não apenas sustentado em rigorosa pesquisa, mas inspirado em décadas de dedicado convívio com livros, manuscritos, pergaminhos, papiros e toda sorte de documentos autênticos que os séculos depositaram nas venerandas bibliotecas medievais ainda hoje preservadas na Europa.
O livro de Dan Brown é uma simples brincadeira superficial, que se aproveita de maneira oportunista de alguns daqueles temas. Evidentemente, “O Código da Vinci” está destinado a se tornar “best seller” mundial e assunto da moda, enquanto “O pêndulo de Foucault” permanece uma curiosidade restrita ao mundo dos aficcionados. As qualidades literárias que distinguem um livro do outro dão esmagadora vantagem ao autor italiano, mas isso não importa. A fortuna crítica da produção literária e artística em geral está sujeita ao jugo da indústria cultural. Não importa a qualidade intrínseca da obra, importa o quanto ela rende aos intermediários que mercadejam a cultura.
Os livros, filmes, músicas, etc., se tornam notórios não por serem bons, mas pelo número de cópias que vendem. Pode acontecer de algumas obras de qualidade serem também sucessos comerciais, mas tais casos excepcionais constituem felizes exceções. A tendência prevalecente é de que aconteça o oposto. Numa época em que o valor cultural está submetido ao valor de troca, a indústria cultural direciona a produção e o consumo de produtos culturais tendo em vista um gosto e uma sensibilidade médios capazes de lhe proporcionar um mercado o mais amplo possível.
São editadas/produzidas apenas as obras que terão retorno comercial garantido, ou pelo menos preferencialmente tais obras. Tudo o que destoa desse padrão constitui um restrito e minoritário ato de resistência. Inversamente, o gosto e a sensibilidade do leitor/espectador/ouvinte/consumidor tendem a permanecer limitados ao nível padrão da indústria. Nem autores, nem comerciantes, nem público querem correr riscos e fazer experiências.
A produção rebaixa o consumo e o consumo rebaixa a produção. Nesse círculo vicioso, a cultura deixa de cumprir a função de elevar os espíritos, alargar os horizontes, despertar as consciências e enriquecer a Humanidade. A cultura passa a ser simples diversão. Nada contra a diversão. Umberto Eco também escreveu um thriller medieval em que a causa dos crimes era o “perigo” representado pelo riso. Acontece que divertir é apenas uma das funções das obras de arte. Sua função completa é definir, retratar e moldar o ser humano. Ser “a memória e a auto-consciência da humanidade”, na definição de Lukács.
A crítica de um produto cultural dessa natureza não se esgota no procedimento de denunciar a sua vulgaridade e superficialidade. É preciso qualificar historicamente essa vulgarização. A segmentação entre a cultura erudita e a cultura da massa não é uma novidade da sociedade capitalista. A indústria cultural é apenas a forma atualizada dessa segmentação. Sempre existiu uma cultura popular, local, espontânea, tradicional, folclórica e artesanal (que hoje cede lugar ao filme-música-programa de TV industrializados); que embora formalmente contraposta, desenvolvia uma relação de mão dupla muitas vezes fecunda com a aristocrática arte erudita (que por sua vez se tornou um nicho de mercado segmentado e minoritário), sendo que ambas retinham de formas diferentes o potencial de retratar o universal humano.
O paradoxo da forma especificamente capitalista de segmentação é que ela deixa de cumprir o papel emancipador embutido na capacidade multiplicadora dos meios técnicos de difusão de massa. Ao invés de multiplicar os conteúdos e torná-los acessíveis a todos os públicos a tecnologia aplicada à indústria cultural os reduz em sua variedade e rebaixa em sua qualidade. A tecnologia não é politicamente neutra. A produção em massa de livros, a imprensa industrial, o cinema, o rádio, a televisão, a internet, etc.; serviram apenas para enquadrar a produção cultural nas exigências da forma-mercadoria.
Esse discurso parece bastante deslocado para falar do “Código da Vinci”. Trata-se de um livro, mas não de uma obra de literatura (rigorosamente, nem mesmo “O pêndulo de Foucault” é literatura, é uma boa obra de mistério). Livros desse tipo são concebidos expressamente para serem “best sellers”. O destino final de todo “best seller” realmente bem-sucedido, por sua vez, é servir como roteiro de cinema. A sub-literaura atualmente produzida é a ante-sala do cinema. Na produção cultural contemporânea, inverteu-se a relação de dependência e determinação. Não é a literatura que precede o cinema, o cinema é prioridade em relação à literatura. Não é a literatura que está alimentando o cinema de idéias consistentes e relevantes, é o cinema que está demandando idéias filmáveis dos escritores.
O leitor do “Código da Vinci” está lendo um roteiro de cinema, ao invés de um livro. Não apenas o imaginário do autor está determinado por uma visão cinematográfica e imagética da realidade (coisa que toda arte que verdadeiramente retrata o mundo atual também está), mas o livro é escrito de saída como uma seqüência de imagens filmáveis. O leitor imaginativo é capaz de visualizar imediatamente as cenas, os cortes de edição e até ouvir a trilha sonora padrão com seus coros e violinos. O livro não se serve plenamente dos recursos da comunicação escrita, não explora o potencial das palavras para criar conceitos, mundos e sentimentos, capazes de desafiar o leitor, de fazê-lo mergulhar nos seus abismos interiores e sair transformado da experiência. Apesar de se servir de palavras escritas, a linguagem do livro é visual e não literária.
Curiosamente, trata-se de um livro que fala da alta cultura, do mundo dos museus e das grandes obras de artes, da história e dos segredos profundos da religião. Tais temas sugerem uma alta densidade de pensamento, uma ampla riqueza de significados, uma grande profundidade de reflexão. Deparamo-nos porém com o mundo de heróis e vilões bidimensionais, conflitos e atitudes tradicionais, forças do bem e do mal rigidamente demarcadas. Os personagens do “Código da Vinci” vivem uma aventura física e exterior, não uma jornada de transformação interior. Tampouco as crenças e valores do leitor são confrontados.
É curioso o conceito que o autor faz da alta cultura, da arte e da religião. São objetos de curiosidade, de conversa de salão, de almanaque de luxo, de “cultura inútil”. Não têm nada de especial a dizer aos personagens e ao leitor, nenhuma mensagem de significado complexo e profundo. São tão somente nomes, constituindo um repertório quantitativo de informações indiferentes. A estrutura da trama é a de um jogo de enigmas que devem ser decifrados para conduzir ao enigma seguinte, e os enigmas são jogos de palavras encadeados de maneira exterior, não mensagens que exigem reflexão e amadurecimento. O conceito de atividade intelectual desenvolvido no livro é de uma mera acumulação quantitativa de dados. Um jogo competitivo a ser resolvido pela força bruta da capacidade de memorização. O intelectual não é um sábio, é um sabichão. O intelectual é um colecionador de figurinhas de luxo, um nerd das antiguidades e das letras.
Ninguém precisa ser um estudioso acadêmico da simbologia religiosa para distinguir pares de conceitos básicos e evidentes como o masculino e o feminino, a luz e as sombras, o dia e a noite, a esquerda e a direita, etc. Tais pares de contraposições estão imediatamente dados e são discerníveis à observação mais superficial. Não é preciso ser um professor universitário para descobrí-las por toda parte. Mas e quanto aos códigos escondidos? As pistas para decifrar os enigmas? Os códigos são o verdadeiro protagonista da trama e justamente por isso a relação com os objetos de arte é utilitária e superficial. A função da arte é servir de suporte para os códigos. Isso está longe de expressar “a mensagem de significado complexo e profundo” que constitui o escopo da arte. “O Código da Vinci” destaca a inteligência de seus personagens, mas não faz justiça ao significado e ao conteúdo da arte que pretende talvez homenagear.
O que temos em mãos é um cenário de luxo e um rico contexto histórico como pano de fundo para uma aventura comum. Mas se trata-se de uma aventura comum, o que explica o extraordinário sucesso comercial? O fascínio do livro decorre da ignorância geral com relação à história da religião em especial e também da arte. O livro é considerado polêmico, escandaloso ou até mesmo ofensivo. Na tese que estrutura a trama, artistas como Leonardo da Vinci e cientistas como Isaac Newton faziam parte de uma organização secreta, que detinha conhecimentos capazes de destruir as certezas da religião estabelecida, e tentaram transmitir parte desses conhecimentos em suas obras de arte e de arquitetura em locais que se tornaram históricos.
Está em curso uma guerra dos supérstites contemporâneos dessa organização secreta contra um grupo também secreto da Igreja Católica que sabe da existência desses conhecimentos e quer destruí-los. Os protagonistas do livro são apanhados no fogo cruzado dessa guerra, sendo obrigados a decifrar pistas que se espalham por obras de arte e locais históricos. Terão como prêmio, além de salvar a pele e a reputação, o acesso ao tesouro secreto dos antagonistas do Vaticano.
Com essa trama, havia a possibilidade de tratar de algumas questões fundamentais da história e da cultura ocidental. Pelo menos três núcleos de questões se destacam.
O primeiro deles está relacionado à humanidade de Jesus. Quando se considera a Bíblia como objeto histórico, é forçoso destacar o fato de que o livro dos livros foi editado através de um processo milenar de seleção desenvolvido com base em escolhas políticas contingentes. As escolhas que determinaram quais escritos seriam considerados canônicos e quais seriam apócrifos foram feitas de acordo com os interesses sociais e políticos prevalecentes. A doutrina e as fórmulas da religião cristã foram definidas autoritariamente pela cúpula do clero católico, tendo em vista conveniências políticas do império romano. Com isso, a imagem de Jesus desapareceu sob os véus obscurantistas do dogma. O homem foi suprimido e transformado em objeto sobrenatural de culto. A filosofia do amor, da paz e da tolerância se transformou no fanatismo homicida das seitas, cruzadas e inquisições. Quem quer que se disponha a seguir Jesus e viver como ele viveu se coloca automaticamente na fila para ser queimado como herege. O próprio Jesus, se voltasse hoje para expulsar os vendilhões do templo, seria prontamente crucificado por aqueles que em seu nome construíram aparatos de poder material, repressão social e retrocesso ideológico. Tal é o destino de mártires que se dedicam a desenvolver as melhores qualidades humanas, como Jesus, como Sócrates, como Gandhi, etc.
Um segundo aspecto importante a ser destacado é a opressão imposta sobre as mulheres. Ao contrário do ensinamento de Jesus, o cristianismo que historicamente se desenvolveu nas seitas organizadas relegou as mulheres a um papel secundário, inferior, subordinado, servil, desvalorizado, esvaziado e até mesmo maligno. A mulher é a pecadora, a impura, a bruxa, a prostituta, a escrava, a ignorante. O patriarcado oriental contaminou o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Houve momentos da história em que alguns povos adeptos das três religiões bíblicas observaram um certo respeito pelas mulheres, mas na maior parte do tempo prevaleceu e ainda prevalecem o obscurantismo bárbaro e o autoritarismo machista, materializado na mais selvagem e odiosa opressão. Em algumas religiões não-bíblicas, como a grega e a romana, e nas religiões dos povos originários da América e da Oceania, o papel feminino não é tão desvalorizado e em alguns casos é tão destacado quanto o masculino. Não há hierarquia entre eles, há diferença. Ou no mínimo, não há o mesmo grau de inferiorização da figura da mulher.
Cada religião reflete as características da sociedade em que floresce. A sociedade de classe, baseada na desigualdade e na força, necessariamente exclui e oprime partes inteiras de sua população. A primeira dessas partes a ser subjugada corresponde ao inteiro gênero feminino. Isso se reflete na demonização da mulher pela religião cristã institucionalizada.
A demonização da mulher tem como contrapeso, evidentemente, a valorização da mulher submissa, obediente e assexuada. O melhor exemplo desse modelo é a figura da virgem Maria, o exato oposto do sagrado feminino das religiões pagãs. Isso leva ao terceiro complexo de problemas fundamentais da cultura ocidental minimamente arranhados pelo livro, que diz respeito à interdição do sexo. A imposição autoritária de uma moral abstrata pelo cristianismo organizado exige a negação do mundo terreno, da vida material, das relações autenticamente humanas, do corpo humano e do sexo. O cristianismo histórico organizado definiu o homem pelo pecado, não pelo amor, estimulando a segregação e não o perdão, a auto-repressão e não a auto-realização. O pecado a ser combatido é tudo aquilo que causa prazer. O prazer a ser reprimido é basicamente o prazer sexual.
Dan Brown estaria se colocando contra essas três tendências obscurantistas por meio de uma única idéia, a do casamento de Jesus com Maria de Magdala, que teria originado toda uma linhagem de descendentes. Com isso estaria restituída a humanidade de Jesus, a importância das mulheres e a naturalidade do sexo. Um autor com disposição e munição para levar adiante essas três causas teria o apoio entusiástico deste escriba. “O Código da Vinci” tem pelo menos o mérito de tocar nessas questões. Mas seu esforço iluminista é prontamente inutilizado e esterilizado por todo o aparato que cerca os produtos culturais: juntamente com a campanha promocional, vem a campanha difamatória, dizendo que é tudo mentira, em seguida vem os desmentidos, e logo depois a turma do “deixa disso” entra em campo, dizendo que o problema não tem importância, “é tudo ficção mesmo”, ninguém precisa levar nada a sério e tudo pode continuar como antes. Não vai mudar a vida de ninguém.
O CÓDIGO DA VINCI - O FILME
Nome original: The Da Vinci code
Produção: Estados Unidos
Ano: 2006
Idiomas: Inglês, Francês, Latim
Diretor: Ron Howard
Roteiro: Akiva Goldsman, Dan Brown (romance)
Elenco: Tom Hanks, Audrey Tautou, Ian McKellen, Jean Reno, Paul Bettany, Alfred Molina
Gênero: drama, mistério, thriller
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
A tendência normal dos filmes feitos a partir da adaptação de obras literárias é diluir o conteúdo da obra e rebaixar a complexidade de sua mensagem. O cinema é o videoclip da literatura. O videoclip acabou com a possibilidade do ouvinte imaginar e fantasiar a música; o cinema fez algo parecido em relação à literatura. O cinema se tornou a forma mais imediata de representar a realidade, fornecendo a linguagem e as metáforas da cultura popular globalizada. Isso se deve ao fato de que os artefatos da sétima arte são muito mais acessíveis à percepção, embora o seu modo de produção seja caríssimo e o torne uma forma de expressão cuja prática está limitada a uma restritíssima minoria. A palavra escrita, cujo poder de expressão é substancialmente maior e cuja forma prática a torna infinitamente mais acessível, foi paradoxalmente relegada a um papel secundário na cultura.
Um livro é capaz de dizer mais que um filme. Mas há livros e livros. No caso do “Código da Vinci”, expressamente concebido para virar filme, o resultado parece invertido. O filme parece realizar mais plenamente a “intenção artística” contida no livro. O filme completa o livro, dá-lhe acabamento e forma final. O livro é o rascunho e o filme é a versão definitiva. Nesse caso, a imagem vale mais que mil palavras. Em um pouco mais de duas horas, os cenários, a música, o elenco, dão vida e conteúdo a uma história que vegetava nas páginas de leitura ligeira e compleição raquítica do livro. Em outras palavras, o filme é melhor que o livro. Ron Howard e equipe são melhores fazendo fimes do que Dan Brown como escritor.
Isso não significa porém que o filme seja mais profundo que o livro. Significa apenas que, no cinema, o charlatanismo, o escapismo, as emoções descartáveis, são muito mais disseminados e “aceitáveis” do que na literatura. Na verdade, o filme consegue tornar ainda mais superficial e diluído o conteúdo do livro. Também não significa que o filme seja bom e se sustente com as próprias pernas. O elenco é muito bem escalado, especialmente os coadjuvantes, mas falta química entre os protagonistas. O papel de Sophie Neveu foi drasticamene reduzido na película; todos os passos decisivos da trama cabem a Robert Langdon. Aqui evidentemente falou mais alto o poder do dinheiro hollywodiano em prol do astro estadunidense.
Se no livro havia uma disposição mínima para apontar alguns problemas político-ideológicos implicados nos dados históricos levantados a pretexto da trama, o filme passou uma plaina por cima de tudo. Não há disputa entre a concepção divina e a humana de Jesus, entre a divinização e a satanização da mulher, entre o banimento e o louvor ao sexo, entre a busca pela verdade e o obscurantismo da Opus Dei. No final das contas, todas as crenças são válidas, o que importa é ter fé, somos todos bonzinhos e até mesmo a Opus Dei e os setores mais reacionários do Vaticano não passam de peões no jogo de um velho ensandecido.
Se no livro estava colocada em discussão a causa iluminista e libertária da restauração da humanidade de Jesus, da reabilitação do sagrado feminino, da absolvição da sexualidade, através do combate ao autoritarismo clerical e à usurpação da filosofia de Jesus pelas seitas organizadas; no filme essa discussão está em último plano. Não há causa em jogo, o Santo Graal é só uma curiosidade arqueológica a satisfazer a vaidade de intelectuais-nerds-aristocratas.
Num filme feito para o mercado mundial, nada de tomar partido, de definir posições, de ferir suscetibilidades político-ideológicas e crenças religiosas. Ficar em cima do muro é a melhor política que os produtores de cinema conseguem conceber. Transformar toda a disputa de significados em torno dos símbolos mencionados no “Código da Vinci” em um simples jogo de gato e rato. Um jogo a princípio envolvente, esteticamente elaborado, realizado com elegância, mas afinal esquecível e descartável. É o que melhor sabem fazer os alquimistas da cultura industrial contemporânea.
Daniel M. Delfino
02/08/2006
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