29.5.07

A falência do governo Lulla e o fim do "ciclo PT" na esquerda brasileira




O governo Lulla acabou. A oposição de direita já se prepara para retomar o poder em 2006. Estamos em plena campanha. A eleição, logo no início do ano, de um resíduo coronelista, o inominável Severino Cavalcanti, para a Presidência da Câmara, foi uma amostra de que os tucanos estão apostando forte no “quanto pior melhor”. Feito esse primeiro estrago, basta apimentar o molho de vez em quando, tirando das gavetas uma ou outra CPI, como a dos Correios. Nesse mesmo front, mas atacando num outro flanco, a revista “Veja”, torpe veículo dos mais abjetos preconceitos da arqui-reacionária pequena-burguesia paulistana, ilustrou uma capa recente (16/03) com a “denúncia” da atuação das FARC no Brasil, decerto em alguma sorte de trevoso conluio com os “radicais” do PT (!?). Tal comportamento repugnante demonstra o quão baixo pode chegar a ânsia de mistificação dos neovassalos vejistas, a ponto de, sem a menor criatividade, reciclar as mais estúpidas peças de desinformação da Guerra Fria, dignas de um vulgar panfleto da CIA.

Independentemente das baixas manobras da direita, o governo Lulla de fato acabou. Quando tudo que o supremo mandatário do país pode fazer para enfrentar a ditadura dos estreitos interesses financeiros que subjugam a nação é sugerir, no varejo, que os usuários de banco “levantem o traseiro” para procurar juros mais baixos, juros que sua política econômica, servil àqueles interesses, mantém estratosféricos; estamos diante de um fracasso estrepitoso. Para dar declarações desse tipo, não precisamos de um Presidente da República, bastariam os humoristas do “Pânico na TV” ou outros de nível ainda mais baixo.

É curioso e bastante revelador que o Presidente considere admissível referir-se a seu povo com um linguajar tão chulo, mas seja incapaz de usar da mesma grosseria para referir-se a quem realmente merece ouvir palavras desse calibre, ou seja, para dizer aos especuladores que saqueiam o país que vão para o raio que os parta, ou para a p... ou... (aceitamos sugestões). Para o povo, Lulla oferece arrocho, miséria e grosseria verbal; para os especuladores e Condoleezas da vida, “superávit primário” e salamaleques diplomáticos.

Não tratamos aqui apenas de deslizes verbais fortuitos, mas de opções concretas de amplo alcance histórico no que se refere ao conteúdo político-programático. Dentre essas novas opções do partido governista (aquele da “ética na política”) está a de admitir no seu cada vez mais amplo leque de aliados os “companheiros” de hábitos fisiológicos da velha fauna política brasileira, que já nascem com a marca de um alvo tatuada nas costas, à espera do tiro oportunista de uma CPI, na briga de foices em que se constitui o secular loteamento do Estado brasileiro pelas elites.

Essas opções político-programáticas, bem como a gestão ultra-liberal da economia, enterram de vez as possibilidades do PT emitir coerentemente um discurso com pretensões de apelo à esquerda. O PT vendeu uma ilusão, praticou estelionato eleitoral e agora está encalacrado entre não poder voltar a ser o que era e não poder assumir o que de fato é. O PT deixou de ser esquerda há muito tempo, é o que buscaremos determinar aqui. O processo de descaracterização antecede em muito a chegada de Lulla ao Planalto, mas apenas nesse momento alcança seu clímax, sua hora da verdade. Esse momento, a eleição de 2002, encerra aquilo que denominamos de “ciclo PT” na esquerda brasileira.

Os ciclos históricos da esquerda brasileira se dividem conforme as formas de luta que foram adotadas em cada conjuntura e os tipos de organização que a aglutinaram. Nos anos entre o suicídio de Vargas (1954) e o pré-64 tivemos a hegemonia organizativa do PC do B (Partido Comunista do Brasil), de Prestes, de matriz stalinista, o qual disputava a consciência das massas com trabalhismo reformista de João Goulart.

O reformismo de “Jango” era herdeiro do populismo de Vargas. O populismo histórico era o movimento pelo qual os caudilhos latino-americanos se apoiavam em setores de massa da população, como o proletariado urbano, para impulsionar mudanças que deslocavam a tradicional dominação das oligarquias rurais associadas ao imperialismo, propondo um novo arranjo de poder. Nesse arranjo as massas conseguiriam concessões sociais e econômicas limitadas, em troca da colaboração na construção de um projeto de autonomia nacional a ser liderado pela burguesia nacionalista.

O populismo histórico não era uma manifestação política propriamente esquerdista, uma vez que não apontava para a necessária ruptura do capitalismo. Mas em face das conquistas materiais com que acenava, especialmente para as massas trabalhadoras, havia uma óbvia identidade programática parcial entre os seus objetivos e os da esquerda. Essa identidade, ainda que problemática e parcial, abria, ao menos temporariamente, a possibilidade da construção de uma unidade de ação política, que poderia se dar em termos de uma defesa da soberania nacional e das tarefas inacabadas da revolução burguesa.

Na falta daquela necessária unidade de ação entre a esquerda e o populismo nacionalista histórico, a reação da oligarquia aliada ao imperialismo prevaleceu, em 1964, como não havia conseguido em 1954. Jango, o herdeiro político de Vargas, não era de esquerda, mas era nacionalista e estava objetivamente encaminhando seu governo na direção das “Reformas de Base” clamadas pela população. O governo de Jango sinalizava na direção de medidas importantes como a Reforma Agrária e o controle do capital estrangeiro, subtraindo o país da órbita do imperialismo.

O ciclo do pré-64 foi encerrado com o golpe militar. A esquerda deixou de ter pretensões de influência de massas. Entramos no ciclo da luta armada, encetada por pequenos grupos guerrilheiros, organizados em seitas políticas extremamente minoritárias. Ao mesmo tempo, na década de 1960, experimentamos um período de renovação da cultura e dos costumes: feminismo, bossa nova, cinema novo, revolução sexual, tropicália, cultura de massas, jovem guarda, tricampeonato de futebol, contracultura, etc. O Brasil estava em efervescência social, mas politicamente atado por uma ditadura feroz.

A efervescência social e a esquerda que optou pela luta armada seguiram divorciados pela década de 70 adentro, até que ambas se esvaziassem, com o próprio degelo da ditadura e seu “milagre econômico”. As estruturas do regime não foram abaladas por esses movimentos. Ao contrário, a ditadura trouxe um choque de capitalismo ao país, embalada pelo sonho do “Brasil potência”. Esse sonho perdeu qualquer possibilidade de sustentação material com os choques do petróleo e a crise generalizada do capitalismo a partir do início da década de 70.

Na ressaca das crises da dívida externa, na década seguinte, o regime prepara a abertura “lenta, segura e gradual”, o que significava entregar formalmente o poder aos mesmos setores civis da burguesia que apoiaram o golpe, e que agora teriam que administrar o descontentamento e as demandas populares dentro das formalidades da democracia representativa, para que os generais pudessem voltar para os seus pijamas.

Enquanto isso, na esquerda, iniciava-se um novo ciclo. O novo proletariado industrial forjado no ciclo de acumulação do “milagre econômico” adentrou na arena política com as greves lideradas por Lula no ABC no fim dos anos 70. No bojo desse ascenso das lutas sociais, formou-se o PT como partido classista, aglutinando o novo movimento operário, bem como alguns nomes históricos da esquerda, intelectuais, estudantes, religiosos, etc. Viveu-se uma nova fase de efervescência, especialmente política, com o movimento das Diretas já, o fim da ditadura, o crescimento do PT, a fundação da CUT, a multiplicação das greves. Parecia que tudo era possível e que ninguém tinha “medo de ser feliz”, tema da primeira campanha presidencial de Lula.

Até que, em 1989-91, o fim da União Soviética pegou o PT no contrapé. A queda dos regimes da URSS e do leste europeu foi interpretada como o fim do socialismo. Nessa interpretação pegou carona a idéia de um triunfo do capitalismo e do fim da história. Objetivamente, isso significava um avanço do neoliberalismo sobre os países periféricos, prometendo o paraíso a ser atingindo por meio da abertura aos “mercados livres”. Acossado por sua crise estrutural, o capitalismo procedeu a uma ofensiva ideológica e econômica de recolonização da periferia, para recompor suas margens de acumulação tendencialmente decrescentes.

Essa ofensiva foi facilitada pela rendição de partidos de esquerda, como o PT brasileiro, que interpretou a queda do stalinismo como fim do socialismo e desestruturou-se como possível foco de resistência à agressão neoliberal. A postura invertebrada do PT em face do seu desafio histórico de se repensar como esquerda favoreceu ao tipo de política que submete todas as formas de atuação à luta eleitoral, à espera de um escorregão da burguesia. Quando esse escorregão aconteceu, veremos, não havia mais nada a governar.

O que é mais grave é que, enquanto isso, toda uma geração perdeu a noção do que realmente deveria ser uma política de esquerda. Por isso, mede a esquerda pelo estreito metro petista. Quem cresceu nos anos 90 e era “contra o sistema” cresceu com a idéia de que bastava votar no PT, porque quando eles chegassem ao poder mudariam tudo. Todas as esperanças estavam depositadas no Partido e na luta eleitoral. A estrela vermelha era o sinal confiável de honestidade, disposição de luta e amor pelo povo. Para toda e qualquer questão, de Reforma Agrária à falta de verbas para educação, da devastação da Amazônia à violência urbana, da corrupção endêmica à miséria cultural; tudo isso se resolveria se votássemos nos candidatos certos. Evidentemente, não foi isso o que aconteceu. Onde está o erro então? Na expectativa das pessoas ou nas escolhas do PT? Em ambas, mas isso precisa ser contextualizado.

Enquanto a esquerda se desarticulava, a mesma velha burguesia carcomida, golpista e entreguista, anti-popular e anti-nacional, desincumbiu-se da tarefa de administrar a democracia representativa com Sarney, Collor e FHC, abrindo mão de qualquer idéia de projeto nacional, como o do populismo ou mesmo o do “Brasil potência” da ditadura. Esses governantes, aos poucos, mais ou menos deliberadamente, abdicaram de qualquer pretensão de soberania e deixaram que um escritório de Wall Street passasse a administrar o país, batizado com o nome de “Banco Central”. Feita essa blindagem protetora aos interesses do imperialismo financeiro globalizado, quem quer que se eleja Presidente torna-se irrelevante. O fracasso do modelo, com FHC, é seu maior sucesso, pois leva ao poder Lula, transformado em Lulla.

E Lulla é o gestor mais habilitado desse modelo, pois, com sua ascendência sobre as massas e a penetração de seus aparelhos partidário-sindicais do PT e da CUT nos movimentos sociais, torna-se capaz de frear o ascenso das massas, impedir qualquer coisa que se assemelhe a um panelaço verde-amarelo e administrar a transição do modelo, para que, em seu ciclo pendular de embates eleitorais, um novo gestor tecnocrata “made in Chicago” assuma (até a próxima crise), e assim sucessivamente, etc.

O sucesso de Lulla será seu fracasso. O aprofundamento da política neoliberal e da barbárie que a acompanha como corolário inevitável lhe trará, além da decepção e do ódio de seus eleitores, a mais violenta ingratidão e indiferença da burguesia nacional e internacional. Quem era esquerda hoje governa com um programa de direita, mas quem é direita critica impiedosamente o governo “de esquerda” à revelia de que o programa em vigor seja o da própria direita. Não importa com que afinco se coloquem em prática as políticas de agrado das finanças globalizadas (e bota afinco nisso!), os ratos sujos da política brasileira saltarão da apodrecida nau petista como de um barco à deriva, ao primeiro sinal de débâcle eleitoral, como sempre fazem.

Dissemos que Lulla é o gestor mais habilitado do modelo neoliberal, por ser um político com ascendência sobre as massas. Nessa contradição está o segredo da descaracterização do PT. A ascendência está garantida pela ampla penetração do partido nas chamadas organizações da sociedade civil. Sindicatos, ONGs, MST, movimento estudantil, todos são PT até a raiz dos cabelos, herança material do período de ascenso. Mas nos novos tempos, são “aparelhos” do PT, como se costuma dizer no ambiente da militância. O PT não tem mais militantes, tem soldados no controle dos aparelhos.

Os quadros do partido hoje são profissionais que vivem da burocracia das organizações. Com o sucesso eleitoral, tornaram-se assessores de deputados e vereadores, passaram a ocupar os “cargos de confiança”, os cargos de 2o e 3o escalão da inchada máquina administrativa do Estado brasileiro. Quando não estão no governo ou parasitando em torno dele, estão nos sindicatos, confortavelmente encastelados, distantes de suas bases. Ou no movimento estudantil, ou no MST. Em quaisquer dessas situações, o PT de hoje é uma força objetivamente reacionária, impedindo que as bases sindicais, estudantis, sem-terra, sem-teto, etc.; se manifestem com toda a força de suas demandas e pressionem o governo. Quem quer que observe hoje os processos concretos encontrará, em cada sindicato, cada grêmio estudantil, cada organização, um Estado-maior petista atuando com os métodos mais stalinistas possíveis, para defender este governo do ataque do povo, uma vez que da burguesia o governo se defende com cargos e verbas.

O PT de Lulla não reconhece o povo como seu interlocutor, senão como sua massa de manobra ou curral eleitoral, arrebanhado por meio de políticas assistencialistas (Fome Zero) paliativas. Mexer nas estruturas fundamentais, isso é impensável. Reforma Agrária de fato, controle de capitais, não-pagamento da dívida eterna, repressão à corrupção, investimento em educação, saúde, segurança, infra-estrutura, etc.; nada disso é factível, pois exigiria enfrentar concretamente as causas do atraso nacional. Ou seja, enfrentar a luta de classes. Para o PT de Lulla, “luta de classes” é um anátema.

O fato de que o PT não queira mais enfrentá-la não impede que os jagunços continuem matando a mando dos grileiros e os agiotas continuem sangrando a economia. Não dão a isso o nome de “luta de classes”, mas de “agronegócio” e “mercado financeiro”, o que soa mais acadêmico e respeitável na mídia. A mídia e a academia (assim como o PT), não usam o termo luta de classes, mas isso não impede que, no processo real da luta de classes, a burguesia siga massacrando o povo (com a ajuda do PT).

Uma vez que o PT bandeou-se de malas e bagagem para o lado oposto, o seu ciclo histórico na esquerda brasileira está objetivamente encerrado. O PT não é mais uma barricada a ser usada na defesa, mas um entulho que impede o avanço. O velho entulho está morto, mas as formas de luta do novo ciclo ainda não despontaram. Mãos à obra!

Daniel M. Delfino
08/05/2005

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