(Comentário sobre o filme “Alexandre”)
Nome original: Alexander
Produção: Alemanha, Estados Unidos, Holanda, França
Ano: 2004
Idiomas: Inglês
Diretor: Oliver Stone
Roteiro: Oliver Stone, Christopher Kyle
Elenco: Collin Farell, Jessie Kamm, Connor Paolo, Angelina Jolie, Val Kilmer, David Bedella, Anthony Hopkins, Fiona O’Shaughnessy, Christopher Plummer
Gênero: ação, aventura, biografia, drama, guerra
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
Há alguns meses, ao comentar os filmes “Rei Artur” e “Tróia”, este escriba finalizou seu texto com a seguinte frase: “Ao que parece, será preciso esperar por ‘Alexander’, versão de Oliver Stone para a história de Alexandre Magno, para vermos um épico de verdade no cinema”. Agora que o referido filme foi lançado, chegou o momento de acertar as contas com essa expectativa.
A frase acima citada expressa um evidente tom apreciativo, no sentido de que se considerava Oliver Stone capaz de realizar uma obra infinitamente superior àquelas duas pequenas aventuras histórico-literárias com as quais seu trabalho estava sendo antecipadamente comparado. Neste sentido, agora que tal trabalho foi lançado, podemos dizer tranqüilamente que “Alexander” está há anos-luz de distância daqueles dois descartáveis concorrentes. Não há o que discutir a esse respeito. Discutiremos aqui sim se “Alexander” é um filme à altura de suas próprias pretensões.
Antes de mais nada, é preciso justificar o crédito concedido ao diretor e a confessada expectativa positiva a seu favor. Oliver Stone construiu uma filmografia concebida para servir como uma forma de intervenção no debate político-cultural acerca dos rumos de seu país. Simplificaremos esse debate reduzindo-o esquematicamente a duas alternativas, às quais experimentalmente denominaremos “exemplaristas” e “imperialistas”, tendo em vista tão somente o escopo do presente comentário.
Os “imperialistas” são os que consideram legítimo impor os valores do capitalismo estadunidense ao resto do mundo, pela força das armas, se for preciso, levando no pacote os dogmas da moral fundamentalista cristã conservadora e outros adereços ideológicos. Os “exemplaristas” são os que simplesmente amam os Estados Unidos por considerá-lo a realização de um certo ideal de democracia e igualitarismo, o “triunfo do homem comum”, conceito lá também denominado de “populismo” (não confundir com o chamado populismo latino-americano) e que vem dos democratas jacksonianos e jeffersonianos, etc. Essa corrente considera ideal o modo de vida estadunidense, mas acredita que os demais povos do mundo devem adotá-lo tão somente se assim o quiserem, voluntariamente, por imitação, sem a necessidade de imposição.
Por mais que esse conceito de “triunfo do homem comum” seja problemático e também carregado de ideologia, cujas determinações não cabe aqui discutir; é em nome dele que se ergueram algumas das maiores realizações culturais do povo estadunidense, no cinema, na música e nos quadrinhos, em função das quais a indústria cultural daquele país merecerá ser lembrada na história. Oliver Stone milita, pois, nas fileiras daqueles que denominamos “exemplaristas”, razão pela qual sempre se pode esperar resultados interessantes de seu trabalho.
Stone faz de seus filmes uma cruzada contra os “imperialistas”, como em “Platoon”, “Nascido em 4 de Julho” ou “JFK”. Além da crítica, o cineasta exercita também a defesa das teses “exemplaristas” em seus demais filmes como “The Doors” ou “Um domingo qualquer”. Dentro de uma trajetória assim descrita, um trabalho como “Alexander” parece de certo modo deslocado. O que Oliver Stone estaria tentando dizer com este filme? Qual o propósito de filmar a história de Alexandre Magno no presente contexto?
Alexandre foi basicamente um jovem que quis terminar o trabalho iniciado por seu pai e conquistar o Oriente Médio. Exatamente como George W. Bush! Essa curiosa coincidência e o silêncio de Oliver Stone ao longo da rumorosa campanha de reeleição de Bush, onde boa parte da classe artística estadunidense tomou partido enfaticamente (contra o Presidente), deram um nó nas cabeças acostumadas a pensar bitoladamente por meio de esquematismos rígidos. De que lado estaria o diretor?
Oliver Stone não mudou de lado. Ele simplesmente escolheu um objeto que não se enquadra muito facilmente na sua filosofia da história. O pensamento estadunidense, em ambas as correntes acima grosseiramente esquematizadas, tem uma obsessão pela história do Império Romano. A hegemonia que os Estados Unidos exercem hoje é usualmente comparada por ambas essas correntes àquela que os romanos exerceram na Antigüidade. Os Estados Unidos se consideram a Roma de hoje. Desse ponto de vista, a interpretação dos processos da história romana parece crucial para determinar os rumos da história estadunidense.
Existe uma espécie de consenso de que o Império Romano teria tido uma certa “missão civilizadora” no contexto da Antigüidade. Roma teria tido a missão de levar a lei e o direito para as terras bárbaras da Europa. Suas instituições, suas estradas, seu comércio, sua moeda, sua língua, sua razão, seriam um benefício pelo qual seria justo fazer os bárbaros pagarem o preço da conquista militar. A partir do momento em que os Césares, os senadores e a classe dos patrícios em geral degeneraram numa oligarquia de nobres ambiciosos, depravados e cultivadores do luxo, o domínio romano perdeu a sua justificação moral. Amofinados, os romanos foram subjugados pelos bárbaros a quem deveriam civilizar.
Essa interpretação da história de Roma coloca para os Estados Unidos de hoje a necessidade de se manterem moralmente dignos da hegemonia que exercem, sob pena de perderem o “direito” ao seu “mandato histórico”. Um filme como “Alexander” não está a serviço da tese imperialista de que os Estados Unidos devem expandir seu império, mas sim se propõe a ser um estudo sobre os motivos que justificam a iniciativa de construir um império. Oliver Stone expressamente apresenta Alexandre como alguém que tinha em mente construir algo parecido com aquilo que o Império Romano viria a ser.
O esforço para transformar Alexandre num herói cinematográfico somente se justifica, aos olhos do diretor, se esse herói puder ser mostrado como o precursor dos valores que seriam realizados pelos romanos (e conseqüentemente, pelos estadunidenses), lutando contra a xenofobia arrogante e estreita de seus generais. Entretanto, a idéia de direito, de igualitarismo, de cosmopolitismo que os romanos realizaram é um saldo positivo que apenas a posteridade pôde apurar. É impossível que alguém da época de Alexandre pudesse antecipar aquilo que os historiadores de hoje consideram como resultado positivo das conquistas helênicas e romanas.
É historicamente impossível que o próprio Alexandre pudesse projetar a idéia de um império multinacional livre do despotismo, da tirania e do arbítrio, onde todos os povos fossem iguais e os indivíduos tivessem “direitos” no sentido moderno. Ele podia projetar os valores da educação grega que recebeu, porque isso era tudo o que conhecia como modo de reinar, mas não com o objetivo explícito de construir uma civilização que atravessasse os séculos. Os agentes históricos, mesmo os maiores como Alexandre, têm uma consciência necessariamente limitada das conseqüências que seus atos acarretam. Essa consciência pode ser mais ou menos limitada, mas nunca absolutamente nítida e clara como no Alexandre de Oliver Stone.
A tentativa anacrônica de apresentar Alexandre como um herói modernamente palatável foi uma armadilha da qual Oliver Stone não soube como escapar. Isso não significa necessariamente que o filme seja ruim. Mas quando o alicerce conceitual está comprometido, o conjunto da obra não se sustenta. Não encontra o equilíbrio ideal entre forma e conteúdo. O recurso paliativo dos flashbacks apresentados por Ptolomeu (Antony Hopkins) se torna uma incômoda muleta narrativa para a exposição de teses interpretativas vagas por meio das quais o diretor tenta pedagogicamente defender suas concepções de um “bom Império”.
Quando falha desse modo a tentativa de transmitir uma idéia dramaticamente precisa, tudo o que resta da obra é o espetáculo visual e sonoro de três horas de superprodução. No meio da confusão conceitual e narrativa, é preciso paciência e esforço para resgatar aquilo que merece ser salvo. O filme não é ruim, mas é irregular, o que basta para condená-lo. Uma produção do porte de “Alexander” não pode ser simplesmente “boa”. Precisa ser espetacular, esplendorosa, avassaladora, monumental. Vindo do diretor que vem e tratando do tema que trata, o fato de o filme ser apenas “bom” pode ser considerado um fracasso.
Como dissemos acima, se encarado como uma simples aventura histórica, para quem aprecia filmes épicos, trata-se de um prato cheio. Estão lá as indefectíveis cenas de batalha, a reconstituição visual primorosa de cenários grandiosos, o vasto elenco de curiosos coadjuvantes, etc. Nesse aspecto, “Alexander” está muito acima da média. Destacando-se entre as ofertas na prateleira de lançamentos descartáveis como a aposta da vez, no gênero de curiosidade épica-aventuresca, tem o mérito de ser bastante realista, embora não 100% exato historicamente.
Não é exato por conta de pequenos detalhes. Por exemplo, a cena em que o oficial Clito decepa o braço do comandante persa que estava prestes a matar Alexandre aconteceu na batalha do rio Granico, na Ásia Menor, e não em Gaugamela. Do mesmo modo, a cena em que Alexandre toma sob sua proteção as mulheres da família de Dario aconteceu logo após a batalha de Issus, a segunda do exército macedônio em território asiático, e não na chegada (espetacular) à Babilônia. E assim por diante.
Essas pequenas inexatidões são perdoáveis em vista da necessidade dramática de selecionar e enquadrar os numerosos episódios de uma vida tão extraordinária numa edição cinematográfica de duração minimamente digerível. Episódios como o do nó de Górdio, o cerco de Tiro, as bodas de Susa, que são tão pitorescos como o da aquisição de Bucéfalo ou o casamento com Roxana, tem que ficar de fora em nome dos imperativos da economia narrativa cinematográfica.
Apesar dessas pequenas inexatidões, o filme é realista no que se refere, por exemplo, à questão da bissexualidade de Alexandre. Tratando de uma época anterior ao predomínio da moral judaico-cristã, o diretor retrata as preferências sexuais tais como elas de fato se desenvolviam, com muito mais liberdade e naturalidade. Os homens precisavam das mulheres para produzir herdeiros, mas podiam preferir a relação com outros homens, sem que isso diminuísse em nada a sua condição de indivíduos habilitados para as tarefas típicas do mundo masculino, como a guerra.
A associação do prazer sexual anal com a condição social simbólica de “passivo” é uma criação histórica posterior da cultura cristã. Como diz o amigo Carlos Wellington, antes de ser homofóbica, a sociedade ocidental-cristã é sexofóbica. A repulsa ao que se chama de manifestações alternativas ou minoritárias de sexualidade é uma parte da repulsa ao sexo em geral. A miséria sexual contemporânea não assimila a exuberância espontânea e natural da Antiguidade helênica. Aos olhos da nossa posteridade machista e homofóbica, o desinteresse de Alexandre por mulheres o torna ridículo, embora na época fosse apenas um problema prático secundário. Mesmo que tenha acarretado ao rei da Macedônia a falta de um herdeiro viável, que se mostrou crucial para a sobrevivência de seu império.
A relação dos gregos com a sexualidade é especial não porque lá houvesse mais homossexuais do que em qualquer outra época ou lugar, mas porque uma arraigada misoginia relegou as mulheres a um irremediável segundo plano sócio-político. De tal modo que o amor por excelência, tal como foi definido por Sócrates no “Banquete” de Platão, é o que se desenvolve entre duas criaturas moralmente livres e iguais, o que só poderia significar dois homens. Mesmo com a ressalva de que esse amor platônico pudesse ser carnal ou não. O que importa para Sócrates, Platão e Aristóteles é amar a virtude, e no caso da Grécia a virtude só pode ser masculina.
É certo que Oliver Stone não encontrou o tom adequado para retratar a relação entre Alexandre e Hefaistion, mas isso requer outra discussão. Resta-lhe o inegável mérito de ter corajosamente abordado o assunto. Graças a essa única ousadia, mais do que a qualquer dos muitos outros defeitos do filme, “Alexander” já nasceu condenado ao fiasco de bilheteria no mercado estadunidense, dominado pela onda neoconservadora do puritanismo hipócrita de Bush.
Entre essas falhas e virtudes, “Alexander” apresenta problemas também com relação ao elenco. O caso mais grave é o de Angelina Jolie, que apesar de enfeitar o filme com sua beleza hipnotizante, não só não tem idade para ser a mãe de Alexandre como entrega uma interpretação nada menos que ridícula. Por sua vez, Collin Farrel parece ter aprendido a lição com Felipe de que os grandes feitos custam grandes sofrimentos: ele chora o filme inteiro. Oliver Stone o sobrecarrega com cenas histéricas, melodramáticas, exageradas, dolorosas, atordoantes, pois tudo o que diz respeito a Alexandre parece ter lugar entre bebedeiras homéricas, crises morais dilacerantes e discussões intermináveis. E por falar em Felipe, a melhor interpretação de todas é, inacreditavelmente, a de Val Kilmer, o que dá uma medida do nível da coisa toda.
Um último destaque digno de menção é a trilha sonora criada pelo grego Vangelis, autor da inesquecível trilha do clássico “Blade Runner”. A música de “Alexander” é belíssima, com exceção dos momentos em que tem que carregar uma apoteose que acaba não se verificando, nas cenas que deveriam ter sido triunfais. Nos seus momentos mais sutis e intimistas a trilha mostra-se capaz de criar atmosferas de delicadeza sublime. Numa fita tão irregular, a música é um dos poucos elementos que estão à altura daquilo que deveria ter sido um grande filme sobre Alexandre Magno.
Daniel M. Delfino
07/02/2005
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