28.5.07

Aspectos da relação entre filosofia, ciência e sociedade ao longo da história



Primitivamente, todas as formas de saber humano estiveram reunidas em duas modalidades de discurso: a do mito e a do senso comum. O discurso do senso comum primitivo era o uso prático e imediato da linguagem nas atividades cotidianas. Já o mito era o discurso especializado destinado a explicar o mundo e dar sentido à vida das comunidades primitivas. No mito estavam contidas as diversas formas de discurso que posteriormente iriam se diferenciar e se opor ao longo da história: religião, arte, ciência e filosofia. O mito era estruturado em forma de poesia, de contos épicos, de cânticos religiosos, que por sua vez eram cantados e encenados por poetas e sacerdotes, reis e sábios, propiciando a continuidade dos ciclos normais de metabolismo dessa sociedade com a natureza.

Até aqui, podemos generalizar vagamente esse quadro para praticamente todas as sociedades humanas nos primeiros estágios de sua História. Para determinar com maior precisão aquilo que chamamos de diferentes formas de discurso que emergem e se especificam a partir do mito, será preciso referir-se a um caso histórico concreto.

O exemplo da Grécia Antiga parece ser o mais apropriado para examinar este problema. A cultura grega é a raiz da cultura européia, depois generalizada para o Ocidente e presentemente globalizada. Na “pólis” grega o discurso da filosofia se autonomizou em relação ao mito e ao senso comum. Os filósofos gregos derrubaram a crença de que o mundo estivesse regido por forças arbitrárias e caprichosas, submetendo-o a uma idéia de ordem, harmonia e equilíbrio. Do mito restaram as narrativas dos grandes poemas épicos, que sobreviveram como obras literárias e como fonte de inspiração para as artes plásticas clássicas e posteriormente renascentistas. Nesse aspecto, o mito foi o fundamento da arte.

Em lugar dos deuses mitológicos, os filósofos gregos por sua vez estabeleceram princípios materiais para a explicação do mundo. Princípios independentes da vontade humana, auto-regulados, permanentes e previsíveis. Sai o “mithos” e entra o “logos”. Essas duas palavras, na verdade intraduzíveis, significavam algo parecido com “fala” ou “discurso”, mas com conotações qualitativamente diferentes. O mito era ditado exclusivamente ao poeta por inspiração religiosa das musas; o logos era abstraído por uma intuição racional do filósofo socialmente, sendo assim mais acessível.

Esses primeiros filósofos realizaram também trabalhos científicos, coligindo as primeiras observações empíricas explicitamente racionais, objetivas, universais. Praticamente todas as ciências têm sua origem na Grécia, embora do ponto de vista atual as teorias dos filósofos gregos sobre a natureza possam ser consideradas praticamente infantis. Suas intuições sobre o funcionamento da natureza, como a do atomismo, por exemplo, só podem ser consideradas como um ponto de partida para a ciência moderna por meio de uma vaga analogia superficial.

Apesar do seu pioneirismo nos mais variados campos científicos, o interesse dos filósofos gregos dividia seu foco entre o estudo da natureza e o das questões éticas e políticas. Um ideal de harmonia, equilíbrio e eqüidade tanto nas questões humanas como na explicação da natureza presidia a visão de mundo dos pensadores gregos. Tudo tendia para encontrar seu lugar mais justo e mais adequado. O mundo estava encerrado num ciclo de repetições. Tanto a natureza quanto a sociedade, ou seja, as “pólis”, era visto como se reproduzindo indefinidamente e de forma idêntica ao longo de um tempo indiferenciado. Isso somente mudaria com o advento do cristianismo.

A visão de mundo cristã está centrada na idéia de uma história da redenção humana, tendo como episódios a criação, a queda, a encarnação do verbo (Cristo), a redenção e a beatitude eterna, fases nas quais a figura de Cristo ocupa o lugar central. Para encaminhar o desenrolar dessa história, a Igreja se arrogou o direito de dirigir as sociedades européias medievais, acumulando poderes espirituais e temporais. Toda ciência e toda filosofia no mundo cristão passam a estar ordenadas em função da necessidade de justificar e confirmar a ordem social prescrita pela Igreja cristã.

Se por um lado a intromissão da religião no domínio da filosofia e da ciência impede o seu desenvolvimento no cenário euro-ocidental por praticamente um milênio, há pelo menos uma contribuição positiva da teologia cristã: a própria idéia de História como evolução e desenvolvimento de uma Humanidade em explicitação. Sem a história da redenção inventada pelo cristianismo, o homem estaria preso a uma concepção de mundo circular e repetitiva, em que não havia fases nem desenvolvimento qualitativo.

A história narrada pela Igreja era linear e ascendente. No entanto, a própria Igreja era um obstáculo que impedia o desenvolvimento das forças produtivas sociais. No contexto de uma sociedade dividida em classes, o conhecimento é sempre um fator fundamental para o exercício da hegemonia, de modo que a classe dominante precisa se reservar institucionalmente o estratégico monopólio desse fator. A implicância da Igreja contra a nova astronomia renascentista não era uma questão de gosto ou de interesse teórico, mas de interesses materiais. O céu era em todos os sentidos um monopólio da Igreja e não se podiam fazer impunemente observações sobre ele, ainda que tais observações científicas fossem necessárias para uma atividade prática como a da navegação oceânica em desenvolvimento.

A solução encontrada foi uma negociação entre os cientistas e os teólogos. A ciência abriu mão da pretensão de explicar a realidade essencial do mundo e passou a se concentrar em descrever exteriormente os fenômenos em busca de sua previsibilidade, tal como pragmaticamente exigia a forma de atividade produtiva da burguesia nascente. Exemplo dessa negociação é o prefácio de Osiander para o livro de Copérnico. Depois dessa ruptura entre essência e aparência, restou aos filósofos a tarefa de continuar negociando com a teologia os limites do conhecimento racional do mundo em relação ao conhecimento religioso revelado.

Essa relação permaneceu mal resolvida até que Kant desse o passo decisivo de afirmar, na “Crítica da Razão Pura”, que a Metafísica não era uma questão de ciência. O idealismo alemão foi o ponto de chegada onde terminou a milenar fusão entre filosofia e teologia. Segundo Feuerbach, toda a filosofia até a dele próprio não passava de teologia. O fim do idealismo clássico alemão marcou o apogeu da era das Revoluções Burguesas. A Revolução teórica realizada por Kant dava-se ainda apenas no plano do pensamento. A Revolução real era a que ocorria na Inglaterra e na França, onde nasceram a economia capitalista moderna e o Estado burguês.

As instituições sociais foram reordenadas em função das necessidades produtivas do capital e também com elas a ciência. A reordenação se dá sob a forma de separação e compartimentação. Como em toda sociedade de classes, a inevitável especialização horizontal funcional das atividades produtivas sociais se transforma, sob o sistema sociorreprodutivo do capital, em uma conflituosa e opressiva hierarquização vertical das classes em função de sua localização no complexo sociometabólico. A política (Estado), a economia (o capital) e o conhecimento (ciência) reconfiguram-se como esferas de atividade estranhas e hostis ao homem, postas alienadamente fora de seu controle. A complexidade técnico-funcional criada pela anarquia burguesa torna-se um obstáculo para a tarefa emancipadora de integrar as diversas esferas de atividade humana em uma nova forma social racionalmente articulada, tarefa que subsiste inacabada em pleno século XXI.

A Revolução Industrial multiplica os poderes produtivos da sociedade numa escala exponencial na medida em que transforma a tecnologia em fator essencial do processo econômico. Para desempenhar adequadamente esse papel essencial, a ciência precisa ser isolada das pretensões realistas da filosofia. As ciências da natureza separaram-se gradativamente da filosofia, deixando de enfrentar o problema teórico de explicar o mundo e o problema sócio-político do monopólio intelectual da Igreja. Quando a classe burguesa adquiriu força econômica e importância social suficiente para derrubar o poder político do clero e da nobreza, o monopólio intelectual da Igreja caiu por si mesmo.

Em meados do século XIX, a religião deixou de ser levada a sério pelas pessoas cultas do Ocidente e deixou de ter qualquer importância prática como obstáculo para a ciência instrumental. Evidentemente, a religião continuou tendo grande peso no atraso cultural das massas, tanto no Ocidente como nas demais sociedades, sob suas diferentes formas de obscurantismo, misticismo, superstição e intolerância.

A solução burguesa de compartimentar e especializar todas as atividades produtivas determinou um novo tipo de relação entre a ciência e a sociedade. O que determinava essa relação nas sociedades pré-capitalistas era o fato de que arte, filosofia e ciência estavam separadas do mundo da produção. Tais atividades intelectuais eram praticadas por elementos ociosos oriundos das classes superiores, desvinculados dos problemas práticos da reprodução societária. O modo de produção capitalista vem romper com a auto-suficiência da comunidade primitiva, redistribuindo suas forças produtivas de modo que cada indivíduo passe a estar dependendo do trabalho de todos.

Os trabalhadores perdem o controle da produção e tornam-se apêndices da máquina. Na linha de montagem taylorista, a técnica se materializa como um artifício capaz de multiplicar a força produtiva de um grande número de trabalhadores por meio de sua distribuição otimizada no tempo e no espaço em cada um dos pontos do processo de trabalho social. A eficácia prática unidirecional do conjunto do sistema se desenvolve na mesma medida em que se aniquila o poder de controle do indivíduo sobre o processo produtivo social total. Esse paradoxo constitui a essência mesma do sistema do capital, tanto em sua variedade capitalista ocidental como na vertente do capital pós-capitalista soviético stalinista, onde a mais-valia era politicamente extraída.

O que se sucedeu com o trabalhador braçal também vitimou o trabalho intelectual. A multidão de especialidades acadêmicas deixou de dialogar entre si e submeteu-se à linha de montagem dos aparelhos ideológicos do Estado burguês estruturados a partir da Universidade. As diferentes ciências se autonomizam e se isolam ao longo dos séculos XIX e XX, se especializam e se aprofundam em campos de estudo restritos. A visão integradora a ser fornecida pelo filósofo positivista do ideal de Comte se materializa como um grosseiro imperativo prático ministrado pelo mercado. A economia depende da técnica e a técnica depende da ciência. No entanto, é o interesse da economia que prevalece na relação, subordinando e mutilando a técnica e a ciência, privando-as de sua dimensão emancipadora.

Paradoxalmente, a ciência se transforma em inimiga do trabalhador, privando-o de seu emprego, ao invés de conseguir-lhe tempo livre. Ao invés de reduzir-se a jornada de trabalho, reduz-se o número de trabalhadores empregados. A ciência e a tecnologia economizam trabalho humano para o capital, ao invés de economizar tempo disponível para o Homem. A limitação alienante das possibilidades emancipadoras da ciência e da tecnologia se manifesta assim, em relação às ciências naturais, por meio de determinações organizativas oblíquas inerentes a essa ordem sócio-econômica. No que diz respeito às ciências humanas, essa limitação atinge seu próprio núcleo teórico.

Reproduz-se no campo particular das ciências humanas o problema enfrentado pela ciência da natureza renascentista. As ciências humanas não podem explicar adequadamente a sociedade porque isso interfere com os interesses econômicos da classe proprietária. As ciências humanas renunciam então à unidade fundamental de seu objeto e fragmentam artificialmente o estudo do homem. Transformam-se em disciplinas mutiladas: economia sem política, política sem história, história sem cultura, cultura sem filosofia. Campos de pesquisa férteis e legítimos como os da Antropologia e da Psicologia passam a vagar no vazio conceitual da Sociologia, pseudociência de tudo e de nada ao mesmo tempo.

A história não apresenta mais nenhum conteúdo humano em desenvolvimento e tão somente um crescimento que se mede em termos economicistas, computando bens de consumo supérfluos numa explosiva espiral ascendente de desperdício ecologicamente insustentável. O progresso se transforma em valor supremo e em obsessão coletiva. Mas um progresso que é redutivamente sinônimo de avanço da ciência, que é redutivamente avanço da tecnologia, que é redutivamente avanço de inovações produtivas (destrutivas/perdulárias), que não passam de peças de marketing para uma campanha interminável de busca por uma felicidade inalcançável. A distopia tecnológica reintroduz o mito sob a forma de culto irracional à novidade. A ciência está em toda parte sob a forma de novidades tecnológicas antecipadamente obsoletas, perdulárias, destrutivas, poluentes e perfeitamente inúteis.

Toda a cultura se transforma em entretenimento, o entretenimento em propaganda, a propaganda em ideologia de uma sociedade onde a vida perde em sentido o que ganha em sofisticação técnica. Reintroduz-se a primitiva fusão entre ciência e mito, mutilada pela morte da arte, da filosofia e da religião. Na noite conceitual da pós-modernidade tecnológica, todos os gatos são pardos. A cultura da nova idade da pedra computadorizada está dissolvida no caldeirão de consumo do espetáculo on-line e do entretenimento fast-food. Na fragmentação das ciências humanas os filósofos decretam a morte do homem e a ciência transformada em coadjuvante do marketing galopante do capital anuncia o pós-homem artificial, um ciborg de consumo espetacularmente disponível nas prateleiras da utopia farmacológica das pílulas da felicidade. Em lugar do esforço de autodescobrimento e emancipação, Prozac, Viagra, Xanax e Ecstasy.

PS. O texto aqui publicado é a adaptação de um trabalho apresentado para o curso de Filosofia da FFLCH-USP pela impessoa deste escriba, válido para a disciplina de “Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência” no segundo semestre de 2004.

Daniel M. Delfino

06/02/2005

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