31.5.07

A violência urbana e a necessidade da revolução




A cidade de São Paulo foi surpreendida entre os dias 12 e 19 de maio de 2006 por uma onda de ataques contra delegacias, rebeliões em presídios e atentados contra ônibus, ordenada pelo PCC (Primeiro Comando da Capital), resultando em represálias da polícia, toque de recolher e histeria coletiva. O saldo final chegou a algumas centenas de mortes. Os ataques se repetiram novamente entre os dias 11 e 14 de julho e depois entre 7 e 9 de agosto, atingindo também prédios públicos, agências bancárias, postos de gasolina, supermercados, etc., porém sem as mesmas perdas de vidas humanas.

Os ataques do PCC trouxeram à tona a assim chamada “questão da violência”. O fato de que a maior cidade do país tenha sido paralisada na segunda-feira 15 de Maio foi o pretexto para que a sociedade se escandalizasse com a existência do “crime organizado” e discutisse apaixonadamente maneiras de lidar com “o problema da violência”. Entretanto, toda essa discussão foi falseada pela histeria criada pela manipulação da mídia, interessada em veicular propostas de cunho fascista como a pena de morte e a prisão para crianças.

A espetacularização da “violência” favorece o discurso autoritário. Os ataques do PCC acabaram dando a oportunidade para que se manifestasse a opinião de que “bandido bom é bandido morto”. Pior do que isso, permitiu que recrudescesse a opressão carcerária, como foi verificado na penitenciária de Araraquara, bem como o arbítrio policial na periferia. Sob o pretexto de reprimir o “crime”, a polícia matou quase 500 “suspeitos” na esteira daqueles acontecimentos.

É por esse ponto que a discussão deve ser colocada em seu devido lugar. A “violência” é o cotidiano da periferia. As organizações do tráfico lutam entre si e lutam com a polícia, todas disputando frações do lucro das atividades “criminosas”, e aterrorizando a população da periferia, que sofre com o arbítrio vindo de todas as partes. Os agentes da repressão são tão corruptos e odiados quanto os “criminosos”. A verdadeira imagem da polícia está nas cenas captadas pela TV na Favela Naval, em Diadema, há alguns anos. Quando os holofotes da TV se afastaram, as cenas de abusos, extorsão, espancamentos, tortura e mortes de trabalhadores protagonizadas por policiais voltaram a se repetir.

A “violência” que paralisou São Paulo em 15 de maio é a mesma que paralisa a periferia nos restantes 364 dias do ano. As chacinas são uma realidade cotidiana. As mortes com armas de fogo são a maior causa de mortes entre a população jovem dessa camada social. Por que somente agora a sociedade se escandalizou com “a violência”?

Torna-se nítida a vigência de um Apartheid social no Brasil. A população da periferia não é tratada como gente, não faz parte da cidadania, não é considerada como parte interessada nas “questões sociais”. O morador da periferia somente é considerado como objeto, nunca como sujeito. Quando alguém diz que “bandido bom é bandido morto”, está se referindo genericamente ao conjunto dos moradores das favelas. Trata a todos indistintamente como “bandidos”. Como objetos a serem tratados por alguma medida de cunho autoritário e tecnocrático, como a remoção física das favelas, a construção de mais presídios, a intensificação do policiamento, etc.

Essas propostas ignoram que a “violência” não será debelada pela repressão, pois nasce da miséria. A violência do PCC é somente a última de uma série de violências a que os moradores da periferia são submetidos, a começar pela violência da polícia. A polícia é a única manifestação da presença do Estado nas favelas. Não há escola, não há hospitais, não há transporte público, não há iluminação pública, não há saneamento básico, não há água e esgoto, não há espaços de lazer e de cultura. Há apenas os barracos, os botecos, a televisão e o tédio.

Essa ausência do Estado e dos serviços sociais básicos se completa com a ausência de emprego. Os moradores de favela são desempregados perpétuos. Não tem escolaridade, não tem currículo, não tem “boa aparência”, pois são em geral negros, mestiços e nordestinos, e são sistematicamente preteridos em entrevistas de emprego, o que demonstra a existência de um estereótipo discriminatório racista e extremamente opressivo. Os favelados vivem de biscates, de pequenos expedientes, de trabalhos temporários, precários, informais.

Essa é aliás a realidade que o capitalismo projeta para o conjunto da classe trabalhadora brasileira no próximo período, com a continuidade das reformas neoliberais que grassam no país. Por enquanto, as vítimas do descalabro neoliberal se concentram na periferia. Como são em geral negros, mestiços e nordestinos, a “sociedade”, a mídia burguesa e a “opinião pública” não se reconhecem nessa população. Atribuem aos próprios miseráveis a culpa pela miséria. Além da violência da polícia, da ausência de serviços sociais básicos e da inexistência de empregos, a população mais pobre é violentada também diariamente pela imposição de uma cultura que os exclui e secundariza.

A cultura da publicidade capitalista criou um modelo de beleza, um padrão de consumo, um estilo de visual, de vestuário, uma coleção de grifes, marcas e nomes famosos, um rol de objetos materiais supérfluos, de automóveis de luxo a bugingangas eletrônicas; associando a tudo isso uma imagem de sucesso e status. Os jovens da periferia são expostos a essas imagens através da televisão e de outras formas de publicidade onipresente. Ao mesmo tempo, são sistematicamente excluídos do acesso a esses bens. A periferia está obrigada a viver à margem do luxo capitalista; como esperar que não desenvolva a cobiça e a atração pelo luxo?

Como não esperar que jovens sem perspectiva de cultura, de trabalho, de vida, vejam no “crime” a via para o acesso ao luxo e ao “sucesso”? Some-se a isso o arbítrio e a violência policiais, a opressão carcerária e tem-se a receita para a formação das “organizações criminosas” como o PCC. Há ainda um ingrediente fundamental a ser considerado, que é a percepção objetiva da injustiça social fundamental do capitalismo.

Essa percepção objetiva é facilmente desenvolvida pelos membros do lúmpen, a subclasse sem perspectivas de integração na sociedade de onde o PCC recruta seus soldados. É uma percepção empírica, limitada, que não chega a completar o conhecimento dialético da luta de classes. Trata-se da percepção de que a lei só existe para oprimir as classes subalternas. A justiça só funciona para os pobres e ladrões de galinhas. O grosso da criminalidade está entre as classes dominantes, as quais sim agem como predadores ferozes contra o patrimônio público e contra a sociedade em geral.

Essa percepção capta apenas parte do problema, mas está em si correta. É por isso que usamos aspas para falar da “violência”, do “crime” e dos “bandidos”. O capitalismo é criminoso de cima abaixo. Em todo ramo de negócios há mil formas ilegais de se roubar os clientes, os funcionários, os fornecedores, o Estado. Há mil maneiras de burlar as regulamentações contábeis, a segurança no trabalho, as normas de higiene, os cuidados ambientais, etc. Essa é a prática sistemática de 11 entre 10 empresas capitalistas. Em todo ramo de negócios há corrupção, sonegação, propinas, caixa 2, etc.

No mundo cão da concorrência capitalista, o “crime” é só mais uma forma de disputa. Não existe o “crime organizado” sem a simbiose com o submundo das finanças capitalistas. As favelas não produzem cocaína nem armas de fogo. Esses “produtos” não chegam à periferia sem um circuito de contrabando e lavagem de dinheiro. A polícia, o judiciário, os políticos, os banqueiros, são os verdadeiros atacadistas desse mercado do crime. É só mais um mercado capitalista como outro qualquer. O PCC atua no varejo desse mercado, e quis tão somente aumentar suas margens de lucro. Isso motivou a disputa com as autoridades.

A economia capitalista é criminosa de cima a baixo. O PCC, por sua vez, é uma variedade de empresa capitalista que explora os presos, os foragidos, seus associados, suas famílias e oprime a população favelada como qualquer outra empresa. A sub-economia do crime se associa à política da repressão. A “guerra contra o tráfico” é só um pretexto para manter a população mais pobre sob a mira diária das armas dos defensores da ordem. E aqui, ao centralizar o “crime”, o PCC atua como instituição repressiva “terceirizada”, impondo sua lei e mantendo a ordem onde o Estado não existe.

Por conta dessa simbiose entre as diversas formas de violência da parte do sistema capitalista e a violência do crime organizado, fica claro que a verdadeira emancipação da população mais pobre das mazelas do capitalismo não será obra do próprio sistema, nem dos “marginais” que aparentemente lhe fazem oposição. Apenas a classe trabalhadora pode transformar a realidade devido ao papel de centralidade que ocupa no sistema produtivo. As greves, ocupações, invasões, manifestações, ações diretas coletivamente organizadas, são a única maneira de modificar a realidade em favor dos trabalhadores.

O desenvolvimento dessas lutas está muito atrasado em relação às necessidades da classe. Devido à omissão das organizações políticas que se enraízam na classe trabalhadora, as organizações criminosas puderam aparecer como “inimigos do sistema”, quando na verdade são parte de suas engrenagens. As organizações criminosas ofereceram aos jovens o atrativo da rebelião, e com isso se constróem enquanto as organizações revolucionárias vegetam.

A rebelião cega, com ou sem programa revolucionário, destrói as cadeias do Estado, do desemprego, da publicidade que aprisionam a subjetividade humana. Destrói também as cadeias da autoridade repressiva da família patriarcal, da escola, da igreja, da moral burguesa, que esmagam o verdadeiro potencial humano.

É certo criticar o PCC por sua estratégia “terrorista” que colocou o Estado e a sociedade contra os mais pobres; mas também é certo criticar a esquerda por seu “pacifismo”, por deixar de pregar a necessária subversão da ordem e esconder o programa da revolução.

A maior de todas as revoluções burguesas, a da França em 1789, começou com a destruição de um presídio: a queda da Bastilha.

Daniel M. Delfino
08/09/2006


ÍNDICEP.S. Este texto é uma versão resumida do artigo "O dia em que São Paulo parou"(http://politicapqp.blogspot.com/2007/05/o-dia-em-que-so-paulo-parou.html), produzida especialmente para o jornal do Espaço Socialista.

Nenhum comentário: