Um dos critérios mais importantes para a qualificação de um filme para a disputa dos Oscar diz respeito à data de lançamento. Os filmes que concorrerão em um determinado ano devem ter sido lançados comercialmente até dezembro do ano anterior no território estadunidense (exibições em festivais não contam). Essa restrição é crucial para a definição da estratégia dos executivos encarregados de pensar o aspecto puramente comercial do cinema. Em muitos casos, o único atrativo mercadológico com o qual os estúdios esperam poder contar para vender um determinado gênero de filme é o prêmio da Academia.
Pensando no impulso de marketing que as estatuetas podem proporcionar, os estúdios e distribuidoras seguram seus filmes de prestígio e potenciais concorrentes até a última hora, para que não enfrentem a concorrência dos “blockbusters” mais comerciais ao longo do ano. No último mês do ano acontece então o lançamento dos filmes com os quais os estúdios esperam poder ser indicados. Os filmes lançados nos Estados Unidos em dezembro chegam ao Brasil em janeiro ou até depois. Muitas vezes, já chegam ao mercado nacional com o embrulho promocional enriquecido pelo adendo de “n” indicações.
O resultado dessa estratégia dos estúdios e distribuidoras é a consolidação de uma divisão do ano cinematográfico em temporadas de lançamento. Como se se tratasse do ano esportivo, onde temos a temporada da N.B.A., a do Baseball, a do Superbowl, etc.. No meio do ano cinematográfico temos a temporada dos filmes de verão, que acompanha as férias escolares do Hemisfério Norte para lotar as salas dos “multiplex” com milhões de adolescentes ansiosos por personagens de gibi, efeitos especiais, tiroteios, perseguições de carro, etc. No final do ano, em contrapartida, temos a temporada dos “filmes do Oscar”, com os épicos, dramas, biografias, etc.
Isso significa que é preciso esperar um ano inteiro para assistir filmes minimamente inteligentes, com uma certa dose de conteúdo, interpretações decentes, diálogos bem escritos, amarração bem feita. O fato de que estes filmes cheguem ao Brasil numa avalanche origina uma espécie de deformação da recepção. O fato de que cheguem ao mercado depois de terem recebido as indicações para o Oscar dá a impressão de que só estão sendo lançados porque estão concorrendo. Essa impressão por sua vez gera a impressão secundária de que foram produzidos apenas para concorrer ao prêmio.
A estratégia mercadológica dos estúdios se sobrepõe à intenção artística dos autores. Não se enxerga o filme como filme, mas como concorrente ao Oscar. O raciocínio fica invertido em relação ao processo real que origina um filme. Um roteirista, um diretor, um ator têm uma idéia abstrata de um projeto estético e procuram realizá-la da melhor maneira em um filme. Em função desse trabalho, são posteriormente reconhecidos por seus colegas da Academia com indicações ao Oscar. Mas o lançamento comercial subseqüente desses filmes já como concorrentes dá a sensação de que foram produzidos desde o começo com a intenção expressa de disputar estatuetas.
Em alguns casos, foram de fato. Mas em outros não. Pensar em filmes como em carros de corrida alinhados num grid de largada para uma competição não é a melhor maneira de aproveitar o que eles podem ter para mostrar. Entretanto, é dessa maneira que pensa a indústria cultural estadunidense e no reboque dela a máquina promocional nas colônias “worldwide”. Em princípio a idéia de competição não está de todo equivocada. Os próprios festivais europeus são organizados como mostras competitivas. Não há como resistir à tentação de selecionar como vencedores os melhores do ano em determinada atividade e de homenageá-los com o devido destaque.
O que causa espécie é a maneira extremamente rígida e formal como a Academia de Hollywood concebe sua premiação, como se se tratasse de uma competição esportiva de fato. Porque somente cinco filmes concorrentes? Será que há somente cinco produções de destaque ao longo de determinado ano? Será que há somente cinco performances, ou cinco roteiros, ou trilhas sonoras, etc., dignos de atenção? Como equiparar produções de características diferentes, com propostas autorais e objetivos estéticos diversificados? Como colocá-los frente a frente num ringue, emoções e sensações únicas e peculiares?
Na falta de critérios objetivos absolutos, cria-se o “grid” com base em aspectos secundários e categorias técnicas, o que por sua vez subdivide os filmes em hierarquias estatísticas artificiais: os que tiveram uma ou duas indicações, os que tiveram quatro ou cinco, ou os que tiveram uma dúzia. Essa hierarquia se prolonga para além do ano específico em questão, agrupando e comparando filmes de anos e até de décadas diferentes pelo número de indicações e prêmios, o que é ainda mais bizarro.
O modo como a indústria cinematográfica estadunidense avalia suas realizações está de acordo com a cultura do país em geral, que dilui todos os valores e qualidades em quantidades abstratas numericamente hierarquizadas, até mesmo as pessoas (em função do salário, por exemplo). Naquele país, tudo tem que ser reduzido a números e cifras. Há um célebre crítico gastronômico que dá notas de 0 a 100 para todos os vinhos do mundo, o que cria artificialmente um padrão único para a experiência de degustar vinhos. Experiência que na verdade comporta infinitas nuances, tantas quantas são as pessoas que bebem vinho, as garrafas de vinho e as ocasiões em que se bebe vinho.
Teremos ocasião de falar sobre vinho (ou quase) em um dos comentários que compõem essa série, pois um dos filmes em discussão tem precisamente a cultura do vinho como pano de fundo. O que cabe aqui assinalar é o fato de que o crítico Robert Parker, com seu olfato sobrenatural capaz de identificar um milhão de vinhos (isto não é uma ironia, e sim uma constatação) acabou por aglutinar todo o mercado de vinho no planeta ao redor de seu gosto particular.
Este escriba não tem nenhuma sensibilidade comparavelmente tão poderosa para avaliar filmes, por isso recusa-se a dar notas e criar hierarquias. Ou arriscar palpites sobre quem vai ganhar o Oscar.
Tentando respeitar a especificidade de cada projeto, assistiu-se a cada um dos cinco filmes indicados, mas tentando não tomar conhecimento do fato de que estavam indicados e para quais categorias. Realizou-se uma maratona com o simples objetivo de tentar aproveitar o que de mais interessante cada filme pudesse oferecer, usufruindo o feliz acidente de ter à disposição um conjunto respeitável de obras de arte, antes que a entressafra do mercado traga de volta o deserto criativo que grassa no resto do ano.
Daniel M. Delfino
25/02/2005
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