(Comentário sobre o filme “Pelé Eterno”)
Nome original: Pelé eterno ou Pelé, o atleta do século
Produção: Brasil
Ano: 2004
Idiomas: Português, Alemão
Diretor: Anibal Massaini Neto
Roteiro: Armando Nogueira, José Roberto Torero
Elenco: Gordon Banks, Franz Beckenbauer, Belini, Paulo César Caju, Roberto Carlos, Clodoaldo, Coutinho, Jair da Rosa Pinto, Ramos Delgado, Jair de Oliveira, Didi, Dorval, Gilmar dos Santos Neves, Edinho, Edu, Gérson, Ugo Giorgetti, John Huston, Henry Kissinger, Lima, Xuxa Meneghel, Washington Olivetto, Carlos Alberto Parreira, Pelé, Pepe, Piazza, Rivelino, Dino Sani, Nilton Santos, Sylvester Stallone, Fúlvio Stefanini, Carlos Alberto Torres, Tostão, Zagalo, Zito, Zizinho
Gênero: documentário
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
Edson Arantes do Nascimento parece ter ficado ressentido com o fato de uma recente eleição da FIFA pela internet ter dado a Maradona o título de melhor jogador de todos os tempos. Para corrigir o despautério de uma eleição feita via internet, sem o menor critério de legitimidade e verificabilidade dos votos, a FIFA foi obrigada a outorgar a Pelé um prêmio oficial, paralelo ao prêmio do público dado a Maradona. É evidente que no critério de rebeldia e inadequação ao sistema, Maradona ganha disparado de Pelé, embora no critério de exemplo de hábitos saudáveis para a juventude, perca também disparado. Pois perde em qualquer comparação técnica possível com Pelé, nunca é demais lembrar.
Não contente com isso, Pelé parece ter exigido a realização do documentário “Pelé Eterno” para pôr as coisas no devido lugar. Essa afirmação de que se trata de uma obra de encomenda é uma mera especulação da parte deste escriba, pois na verdade não sei de onde partiu a iniciativa para produção do documentário. Mas essa hipótese é a única explicação convincente para tamanha falta de imaginação estética e tamanho servilismo bajulatório.
O lançamento do documentário “Pelé Eterno”, do diretor Aníbal Massaini, não poderia passar despercebido a este escriba, na sua dupla qualidade de torcedor de futebol e fã de cinema. O cinema é a meu ver o espaço mais adequado para se assistir futebol (depois do estádio, é claro). A tela grande, a sala escura, o som estrondante, tudo contribui para valorizar qualquer espetáculo. Quando um espetáculo é de qualidade, se diz que é “coisa de cinema”.
O futebol brasileiro é (ou era) “coisa de cinema”. Tanto assim que marcou época o cine-documentário “Canal 100”, exibido nos cinemas brasileiros nas décadas de 1960 e 70. Da trilha sonora instrumental do “Canal 100”, emergiu a música “Na cadência do samba”, que começa com os versos “que bonito é...”. A melodia desta música, nas décadas citadas, fazia as vezes de 2o. hino nacional brasileiro. A “música do Canal 100” sintetizava as qualidades do futebol brasileiro, que por sua vez sintetizava as qualidades do povo brasileiro. Qualidades como alegria, humor, malícia.
Um documentário sobre Pelé no cinema seria a oportunidade para trazer de volta essa atmosfera nostálgica de uma época culturalmente florescente. Uma época em que o Brasil era “o país do futuro”. Existia o orgulho de ser brasileiro. Otimismo e esperança. Sabemos porém que tudo deu errado. A ditadura usurpou o país do futuro. A “República Nova” de Sarney usurpou a redemocratização. O neoliberalismo dos Fernandos I e II usurpou a idéia de projeto de país. O cabotinismo do governo Lula usurpou a esperança.
De usurpação em usurpação, ficamos sem país. Nossos reis foram destronados. Mas eis que ressurge então nas telas a imagem de um rei brasileiro, o rei Pelé. Uma imagem de sonho, de vitória, de realização. Um resgate da auto-estima nacional. Todas essas questões passavam pela minha cabeça quando me preparava para o espetáculo, esperando o time, digo, o filme, entrar em campo, digo, em cena.
Mas para minha decepção, o filme submerge no mais medíocre e constrangedor rosário laudatório e auto-elogiativo. Como filme, “Pelé Eterno” não é mais que isso: medíocre e constrangedor. Parece um quadro tirado do domingão do Faustão, do tipo “esta é a sua vida”, daqueles forjados sob encomenda para provocar choro numa certa celebridade, com a evocação de suas glórias passadas e o elogio choroso dos amigos.
A estética de “Pelé Eterno” é paupérrima. Como experiência cinematográfica, o resultado é extremamente frustrante. O documentário é formal, “careta”, “quadrado”, convencional, institucional, sentimentalóide. Um projeto feito sob encomenda para afagar o ego do cidadão Edson Arantes do Nascimento.
Não há sequer um minuto de reflexão sobre o significado da trajetória de Pelé para o Brasil, sobre a importância da Era de ouro do futebol brasileiro, protagonizada por Pelé, para a construção da auto-imagem nacional. Há apenas de passagem a alusão às proféticas palavras do sábio Nelson Rodrigues, para quem a vitalidade do garoto Pelé na seleção seria o antídoto para nos livrarmos do complexo de nação vira-lata. E a lembrança pelo próprio Pelé da pressão que existia para que o Brasil ganhasse tudo na época. Além do bi mundial do futebol, houve o bi mundial do basquete, os títulos de Maria Éster Bueno no tênis, Eder Jofre no boxe, etc..
Não há uma conexão elaborada entre o momento do esporte e o da cultura, com o cinema novo, a bossa nova, a capital nova, as ligas camponesas, as reformas de base, o projeto de Brasil em gestação no pré-64. O Brasil em efervescência não entra em cena. Fica em segundo plano, ofuscado pelo Brasil ufanista da ditadura.
Se alguma coisa se salva em “Pelé Eterno” são, evidentemente, os gols de Pelé. A frase de Drummond diz tudo a este respeito: “É possível alguém fazer 1000 gols como Pelé. Mas é impossível alguém fazer um gol como Pelé.” Cada gol de Pelé é um feito único. Uma obra excepcional de estilo inimitável. Uma obra de arte. Temos em “Pelé Eterno” um desfile de centenas dessas obras de arte. Segundo a publicidade do lançamento, 350 gols foram garimpados pelo trabalho de arqueologia nos arquivos das redes de TV da época que conseguiram sobreviver intactos.
Há inclusive a reprodução dos dois mais belos gols de Pelé. O gol contra o Juventus, no campo da rua Javari, em 1959, recriado com computação gráfica, numa animação um tanto precária nesses nossos tempos de “Animatrix”, mas bastante convincente e simpática para os fins a que se propõe. E o “gol de placa”, contra o Fluminense, no Maracanã, em 1961, reencenado numa montagem fajuta estilo gato por lebre. De qualquer maneira, não pude contar os 350 gols para confirmar a propaganda, mas essa publicidade provavelmente se refere a “versão estendida” a ser lançada em DVD. De fato, tudo denuncia o interesse no mercado de DVD, onde se espera que “Pelé Eterno” se torne item obrigatório na.estante de cada família brasileira.
Os gols são, como dissemos, a única coisa que se salva em “Pelé eterno”. Gols antológicos, jogadas geniais que embelezaram as maiores jornadas futebolísticas do século XX. De certo modo, o documentário é uma espécie de história das três Copas do Mundo ganhas pelo Brasil em 1958, 62 e 70, sob um ponto de vista “Pelé-cêntrico”.
Para um torcedor de futebol que acompanha o esporte com paixão e profundidade, muitas dessas imagens são velhas conhecidas. Há muitos gols de Pelé que a TV não se cansa de repetir, a cada Copa do Mundo, a cada programa de antologia futebolística. Para o fanático de futebol, “Pelé Eterno” pode ser visto como um presente, mas também como um produto duplamente desinteressante, pela precariedade especificamente cinematográfica e pela falta de novidade futebolística.
Dependerá do estado de espírito de cada um se deixar envolver ou não pela repetição maciça daqueles lances e histórias já sobejamente conhecidas. Ainda assim, um certo interesse secundário subsiste. Para o fanático de futebol, seja ele torcedor de qual time for, os gols e as histórias da Seleção Brasileira e do Santos F. C. não são mais novidades. Mas mesmo assim, não deixa de ser interessante partilhar do entusiasmo do público leigo que assiste a essas imagens pela primeira vez. O “público de Copa do Mundo”, aquela parcela da população que só assiste futebol de 4 em 4 anos, mulheres e crianças, ou pessoas que não acompanham o esporte, ou ainda, aqueles que vão ver o filme em busca de uma experiência puramente estética; todos esses poderão se maravilhar com os lances geniais de Pelé. Apesar da pobreza franciscana da concepção cinematográfica da obra.
Fica portanto a ressalva: como filme, “Pelé Eterno” é péssimo; como coletânea de cenas de futebol, é um colírio para os olhos cansados de presepadas do futebol de hoje, dentro e principalmente fora de campo.
Daniel M. Delfino
03/07/2004
Não contente com isso, Pelé parece ter exigido a realização do documentário “Pelé Eterno” para pôr as coisas no devido lugar. Essa afirmação de que se trata de uma obra de encomenda é uma mera especulação da parte deste escriba, pois na verdade não sei de onde partiu a iniciativa para produção do documentário. Mas essa hipótese é a única explicação convincente para tamanha falta de imaginação estética e tamanho servilismo bajulatório.
O lançamento do documentário “Pelé Eterno”, do diretor Aníbal Massaini, não poderia passar despercebido a este escriba, na sua dupla qualidade de torcedor de futebol e fã de cinema. O cinema é a meu ver o espaço mais adequado para se assistir futebol (depois do estádio, é claro). A tela grande, a sala escura, o som estrondante, tudo contribui para valorizar qualquer espetáculo. Quando um espetáculo é de qualidade, se diz que é “coisa de cinema”.
O futebol brasileiro é (ou era) “coisa de cinema”. Tanto assim que marcou época o cine-documentário “Canal 100”, exibido nos cinemas brasileiros nas décadas de 1960 e 70. Da trilha sonora instrumental do “Canal 100”, emergiu a música “Na cadência do samba”, que começa com os versos “que bonito é...”. A melodia desta música, nas décadas citadas, fazia as vezes de 2o. hino nacional brasileiro. A “música do Canal 100” sintetizava as qualidades do futebol brasileiro, que por sua vez sintetizava as qualidades do povo brasileiro. Qualidades como alegria, humor, malícia.
Um documentário sobre Pelé no cinema seria a oportunidade para trazer de volta essa atmosfera nostálgica de uma época culturalmente florescente. Uma época em que o Brasil era “o país do futuro”. Existia o orgulho de ser brasileiro. Otimismo e esperança. Sabemos porém que tudo deu errado. A ditadura usurpou o país do futuro. A “República Nova” de Sarney usurpou a redemocratização. O neoliberalismo dos Fernandos I e II usurpou a idéia de projeto de país. O cabotinismo do governo Lula usurpou a esperança.
De usurpação em usurpação, ficamos sem país. Nossos reis foram destronados. Mas eis que ressurge então nas telas a imagem de um rei brasileiro, o rei Pelé. Uma imagem de sonho, de vitória, de realização. Um resgate da auto-estima nacional. Todas essas questões passavam pela minha cabeça quando me preparava para o espetáculo, esperando o time, digo, o filme, entrar em campo, digo, em cena.
Mas para minha decepção, o filme submerge no mais medíocre e constrangedor rosário laudatório e auto-elogiativo. Como filme, “Pelé Eterno” não é mais que isso: medíocre e constrangedor. Parece um quadro tirado do domingão do Faustão, do tipo “esta é a sua vida”, daqueles forjados sob encomenda para provocar choro numa certa celebridade, com a evocação de suas glórias passadas e o elogio choroso dos amigos.
A estética de “Pelé Eterno” é paupérrima. Como experiência cinematográfica, o resultado é extremamente frustrante. O documentário é formal, “careta”, “quadrado”, convencional, institucional, sentimentalóide. Um projeto feito sob encomenda para afagar o ego do cidadão Edson Arantes do Nascimento.
Não há sequer um minuto de reflexão sobre o significado da trajetória de Pelé para o Brasil, sobre a importância da Era de ouro do futebol brasileiro, protagonizada por Pelé, para a construção da auto-imagem nacional. Há apenas de passagem a alusão às proféticas palavras do sábio Nelson Rodrigues, para quem a vitalidade do garoto Pelé na seleção seria o antídoto para nos livrarmos do complexo de nação vira-lata. E a lembrança pelo próprio Pelé da pressão que existia para que o Brasil ganhasse tudo na época. Além do bi mundial do futebol, houve o bi mundial do basquete, os títulos de Maria Éster Bueno no tênis, Eder Jofre no boxe, etc..
Não há uma conexão elaborada entre o momento do esporte e o da cultura, com o cinema novo, a bossa nova, a capital nova, as ligas camponesas, as reformas de base, o projeto de Brasil em gestação no pré-64. O Brasil em efervescência não entra em cena. Fica em segundo plano, ofuscado pelo Brasil ufanista da ditadura.
Se alguma coisa se salva em “Pelé Eterno” são, evidentemente, os gols de Pelé. A frase de Drummond diz tudo a este respeito: “É possível alguém fazer 1000 gols como Pelé. Mas é impossível alguém fazer um gol como Pelé.” Cada gol de Pelé é um feito único. Uma obra excepcional de estilo inimitável. Uma obra de arte. Temos em “Pelé Eterno” um desfile de centenas dessas obras de arte. Segundo a publicidade do lançamento, 350 gols foram garimpados pelo trabalho de arqueologia nos arquivos das redes de TV da época que conseguiram sobreviver intactos.
Há inclusive a reprodução dos dois mais belos gols de Pelé. O gol contra o Juventus, no campo da rua Javari, em 1959, recriado com computação gráfica, numa animação um tanto precária nesses nossos tempos de “Animatrix”, mas bastante convincente e simpática para os fins a que se propõe. E o “gol de placa”, contra o Fluminense, no Maracanã, em 1961, reencenado numa montagem fajuta estilo gato por lebre. De qualquer maneira, não pude contar os 350 gols para confirmar a propaganda, mas essa publicidade provavelmente se refere a “versão estendida” a ser lançada em DVD. De fato, tudo denuncia o interesse no mercado de DVD, onde se espera que “Pelé Eterno” se torne item obrigatório na.estante de cada família brasileira.
Os gols são, como dissemos, a única coisa que se salva em “Pelé eterno”. Gols antológicos, jogadas geniais que embelezaram as maiores jornadas futebolísticas do século XX. De certo modo, o documentário é uma espécie de história das três Copas do Mundo ganhas pelo Brasil em 1958, 62 e 70, sob um ponto de vista “Pelé-cêntrico”.
Para um torcedor de futebol que acompanha o esporte com paixão e profundidade, muitas dessas imagens são velhas conhecidas. Há muitos gols de Pelé que a TV não se cansa de repetir, a cada Copa do Mundo, a cada programa de antologia futebolística. Para o fanático de futebol, “Pelé Eterno” pode ser visto como um presente, mas também como um produto duplamente desinteressante, pela precariedade especificamente cinematográfica e pela falta de novidade futebolística.
Dependerá do estado de espírito de cada um se deixar envolver ou não pela repetição maciça daqueles lances e histórias já sobejamente conhecidas. Ainda assim, um certo interesse secundário subsiste. Para o fanático de futebol, seja ele torcedor de qual time for, os gols e as histórias da Seleção Brasileira e do Santos F. C. não são mais novidades. Mas mesmo assim, não deixa de ser interessante partilhar do entusiasmo do público leigo que assiste a essas imagens pela primeira vez. O “público de Copa do Mundo”, aquela parcela da população que só assiste futebol de 4 em 4 anos, mulheres e crianças, ou pessoas que não acompanham o esporte, ou ainda, aqueles que vão ver o filme em busca de uma experiência puramente estética; todos esses poderão se maravilhar com os lances geniais de Pelé. Apesar da pobreza franciscana da concepção cinematográfica da obra.
Fica portanto a ressalva: como filme, “Pelé Eterno” é péssimo; como coletânea de cenas de futebol, é um colírio para os olhos cansados de presepadas do futebol de hoje, dentro e principalmente fora de campo.
Daniel M. Delfino
03/07/2004
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