Relata-se a seguir um curioso caso de somatização. A somatização é o processo por meio do qual uma determinada condição psicológica se converte em doença física, por força da insistência do cérebro em achar que o corpo está doente. A somatização a que me refiro aconteceu com minha própria pessoa. Eis que me aparece uma espinha no meio do nariz. Fenômeno assaz inusitado, dada a faixa etária. Imaginava já haver deixado para trás, na adolescência distante, a fase das espinhas.
O enigma dessa erupção cutânea tardia e inoportuna não tardou a se esclarecer. Trata-se de um reflexo somático dos protestos que a Gaviões da Fiel tem feito contra o time do Corinthians e sua diretoria. Diante das péssimas campanhas que vem se repetindo desde o ano de 2003, a torcida protestou usando nariz de palhaço postiço. Minha espinha é meu nariz de palhaço. A situação está tão séria no meu time que o problema se tornou físico. O torcedor do Corinthians se tornou um palhaço, o que no meu caso não é uma condição apenas metafórica, mas real. A condição de palhaço aflorou-me à pele.
Entretanto, permita-me o leitor partilhar essa condição com todos os demais torcedores de outros times. Todos nós, que torcemos, somos palhaços. Claro que, à primeira vista, outros torcedores poderão dizer: “palhaço é você, que torce para esse time ridículo”. Eles tem razão ao dizer isso. Mas mesmo assim, não se trata de uma desculpa esfarrapada da minha parte. Concedo que o meu time tem sido especialmente ridículo, se me concederem que é verdade em certa medida o que dizem aqueles que não gostam de futebol.
Para quem não gosta de futebol, o torcedor que vai aos estádios, caso deste palhaço que vos escreve, é um ser completamente ridículo. Quem se dá ao trabalho de enfrentar as condições nos estádios para torcer é um palhaço. A total falta de higiene, de conforto, de atendimento, de organização, de segurança, deveriam por si só demover a nós palhaços da idéia tresloucada de ir ao campo. E mais ainda, de pagar por isso. Os estádios brasileiros são chiqueiros mal-cheirosos. São escadarias de concreto onde cada um se ajeita como pode. São currais onde se apanha da polícia, que não consegue organizar uma fila senão na base do cacetete. São antros onde se corre o risco de ser roubado por trombadinhas, onde o simples ato de comprar ingresso envolve consideráveis riscos à integridade física.
Tudo isso valeria à pena se pelo menos o espetáculo fosse de qualidade. O que também não é o caso. Os campeonatos que se disputam no Brasil são arremedos de campeonato. Ainda engatinhamos em busca de uma forma de organização adequada. Recentemente, adotou-se a fórmula de pontos corridos, habitual na Europa há um século. Isso pode ser considerado um avanço. Mas a forma como foi aplicada essa fórmula ainda guarda vícios indeléveis da cartolagem brasileira. Para evitar o risco de ver times “grandes” na 2a. Divisão, inventou-se um campeonato com 24 times. Ora, um campeonato de pontos corridos com 24 times se transforma numa interminável maratona de 46 rodadas. O problema não é a fórmula, mas o país onde ela é aplicada.
No Brasil, os times que começam a disputa não são os mesmos que terminam. Ao longo dessa maratona interminável de 46 rodadas, os times mudam tanto de jogadores, para não falar de técnicos, que ao terminar a disputa, não são mais os mesmos que começaram. O mercado europeu terá levado embora os jogadores mais promissores que aparecerem. O sentido da disputa em pontos corridos, que é a isonomia de condições na competição, se desfaz completamente. Está em jogo não apenas o mérito técnico dos times, mas sua capacidade de reter ou não jogadores. Capacidade totalmente fortuita, que depende de fatores instáveis de mercado. Os times que revelarem melhores jogadores serão os mais prejudicados, pois esses jogadores serão levados na metade do ano, no intervalo entre as temporadas européias.
Tocamos aqui no problema da instabilidade financeira dos times brasileiros. Os grandes clubes brasileiros estão falidos. E não apenas o time para o qual torce este palhaço que vos escreve. A bancarrota é generalizada. O que é evidentemente absurdo. Pois se todos os grandes clubes europeus querem jogadores brasileiros, é porque são os melhores. E se os jogadores brasileiros são os melhores, porque o campeonato brasileiro não é o melhor? Porque não temos a NBA do futebol? Sigamos a cadeia de razões, em busca de uma resposta.
Não temos uma NBA do futebol porque os grandes clubes brasileiros não são capazes de pagar salários compatíveis com os dos grandes clubes da Europa. Não são capazes porque o Brasil é um país pobre. A renda gerada pelo futebol no país não é suficiente para concorrer com a do futebol europeu. Até aí, estamos falando de um problema histórico e estrutural, cuja solução vai para muito além do futebol. Mas a diferença será assim tão distante? O abismo entre a renda do futebol brasileiro e a do europeu precisa ser tão profundo? Não há um meio de tornar o mercado de futebol no Brasil mais rentável? Se não rentável, pelo menos minimamente sustentável? Será que nossos clubes têm todos que passar pela vexaminosa situação falimentar em que se encontram?
Tivéssemos campeonatos bem organizados e estádios confortáveis, tanto a bilheteria como a audiência de televisão seriam maiores. Mas pensar em organização com a atual classe dirigente dos cartolas brasileiros é uma utopia. Os coronéis do futebol, fósseis da ditadura, transformaram o futebol em terra devastada. Ninguém mais quer jogar no Brasil. Ao primeiro aceno de um time da Bulgária ou da Coréia, um jogador brasileiro de futuro promissor no clube onde surgiu não pensa duas vezes e arruma as malas como se estivesse indo para o Barcelona ou o Manchester United.
Aos olhos da torcida, os jogadores se transformaram em mercenários sem respeito pelas camisas dos times. Trocam de camisa com uma facilidade desnorteante. Ninguém pensa mais em desenvolver uma carreira em um time só. Ninguém pensa mais em termos de anos. Quando muito, pensa-se num semestre. Vive-se a ditadura do curto prazo. Os contratos são assinados para períodos curtos, de um campeonato no máximo, sempre deixando aberta a possibilidade de uma transferência para a Europa.
É inaceitável que um clube como o Corinthians (e isso vale para outros grandes em má fase) se transforme num castelo de cartas. Bastou a eliminação perante o River Plate na Libertadores para o time se desfazer. Um time que vinha ganhando títulos todos os anos, desde 1997 (não vou expor a lista completa de títulos para não sobrecarregar o texto e cansar o leitor) subitamente se desfaz. O clube não tem direção, não tem rumo, não tem projeto, não tem futuro. A cada derrota, prometem-se reforços que nunca vem; a cada resultado positivo, repete-se o discurso de que “os garotos são bons, só precisam de experiência”. A direção oscila entre um discurso e outro, porque não tem competência para formar um grupo e mantê-lo. Mas isso não é “privilégio” do Corinthians.
Uma condição anormal rapidamente tornou-se estrutural. O Brasil não é mais o lugar onde se joga futebol, é o lugar de onde se sai para ir para a Europa. Um jovem que está se profissionalizando não sonha em defender a camisa que ama e jogar na seleção. Sonha em ir para o Internazionale ou o Juventus. Qualquer time grande do Brasil é pequeno demais para seus craques. O Brasil é apenas uma estação de passagem. Ficamos aqui com um campeonato jogado por jogadores de segunda. Só ficam aqui os jovens demais para ir para a Europa, os veteranos demais para jogarem no exterior, os que foram e já voltaram e os tão medianos que jamais conseguirão uma chance no exterior.
Nós que assistimos a um tal campeonato, sonhando em ver os grandes times do Corinthians, do Flamengo, Atlético, Internacional, etc., somos evidentemente uns palhaços. Estamos nos iludindo jogo a jogo, rodada a rodada, querendo ver um tipo de atração esportiva que não existe mais. A relação entre jogadores e clubes se tornou precária e utilitária. Para o torcedor, os jogadores de seu time aparecem como mercenários, vendidos, traidores, sem amor a camisa, que não se entregam nos jogos, etc. Por isso mesmo, a relação entre torcedores e jogadores se tornou tensa e hostil. Os torcedores tem mágoa dos jogadores, que por sua vez tem medo da torcida.
Exemplos como os goleiros Marcos do Palmeiras e Rogério do São Paulo são raríssimos. Exceções gritantes, ninguém os imagina vestindo a camisa de outros times. Nem eles mesmos, em primeiro lugar. Nós palhaços não conseguimos mais encontrar casos assim em nossos times. Sendo que antes, eles eram a regra e não a exceção. O jogador não quer mais jogar no Brasil porque tem medo de apanhar da torcida. Isso é o fundo do poço da mediocridade. O absurdo se completa quando a torcida mais atrapalha o time do que ajuda. Chegamos assim à antítese do futebol, o time sem torcida.
A antítese do futebol é o São Caetano, campeão paulista de 2004. O azulão é a antítese do futebol e ao mesmo tempo é também sua essência. A essência do futebol e sua antítese se manifestam num mesmo time porque o próprio futebol se tornou anti-natural e entrou em contradição consigo mesmo. Parte do sucesso do São Caetano é creditada ao fato de que, quando o time perde, não há torcida protestando no dia seguinte. Assim, os jogadores têm tranqüilidade para trabalhar e se recompor para o jogo seguinte. Isso é apenas parte da equação de sucesso do Azulão, mas é bastante relevante para o problema aqui tratado. O São Caetano é um time sem torcida e por isso mesmo faz sucesso.
Faz sucesso porque trouxe o futebol de volta à sua essência: onze jogadores em campo. Um time só precisa disso. São Caetano, Brasiliense, XV de Novembro de Campo Bom, são times que se projetam do nada no cenário nacional, porque trouxeram o futebol de volta ao estado original. São times simples, bem organizados, onde cada um faz sua parte, todos se esforçam, todos se ajudam em campo. Restituíram assim ao esporte o prazer de jogar. Grupos de jogadores medianos num clube organizado podem jogar melhor do que elencos estelares desmotivados. Que o diga o torcedor do Real Madrid.
Voltemos ao Brasil. Quando foi que um time e sua torcida estiveram unidos numa campanha futebolística de uma maneira que fizesse lembrar a antiga relação que existia no futebol brasileiro? O único caso que me ocorre é o do Palmeiras e do Botafogo na 2a. divisão em 2003. A campanha que fizeram foi bonita não só porque seus times se classificaram, mas porque time e torcida estiveram unidos. Tanto assim que, chegando à primeira divisão, o encanto se desfez.
Talvez assim, através desse exemplo, o futebol brasileiro tenha encontrado seu verdadeiro tamanho. Somos um futebol de 2a. divisão. Diante da Europa, o Brasil foi rebaixado. Nossos dirigentes transformaram o futebol brasileiro em terra devastada. Terra de ninguém. Várzea. Os clubes se transformaram em agregados de jogadores frustrados, manipulados por empresários, pressionados por torcidas enraivecidas, todos enganados por dirigentes sonolentos e corruptos.
O Brasil não deveria mais ter 1a. divisão, apenas 2a., já que na Segundona os estádios ficam lotados e as torcidas participam. E não vai aqui nenhuma provocação tardia contra um rival já devidamente reabilitado. Talvez devêssemos todos jogar a 2a. divisão: Corinthians, Flamengo, Vasco, Internacional, Atlético, etc. Talvez todos devessem passar por um curso de reciclagem. Deixar a 1a. divisão para Goiás, Criciúma, Atlético-PR, São Caetano, Vitória, times de menor tradição nacional, mas que no momento representam melhor aquilo que chamamos essência do futebol.
Daniel M. Delfino
27/05/2004
O enigma dessa erupção cutânea tardia e inoportuna não tardou a se esclarecer. Trata-se de um reflexo somático dos protestos que a Gaviões da Fiel tem feito contra o time do Corinthians e sua diretoria. Diante das péssimas campanhas que vem se repetindo desde o ano de 2003, a torcida protestou usando nariz de palhaço postiço. Minha espinha é meu nariz de palhaço. A situação está tão séria no meu time que o problema se tornou físico. O torcedor do Corinthians se tornou um palhaço, o que no meu caso não é uma condição apenas metafórica, mas real. A condição de palhaço aflorou-me à pele.
Entretanto, permita-me o leitor partilhar essa condição com todos os demais torcedores de outros times. Todos nós, que torcemos, somos palhaços. Claro que, à primeira vista, outros torcedores poderão dizer: “palhaço é você, que torce para esse time ridículo”. Eles tem razão ao dizer isso. Mas mesmo assim, não se trata de uma desculpa esfarrapada da minha parte. Concedo que o meu time tem sido especialmente ridículo, se me concederem que é verdade em certa medida o que dizem aqueles que não gostam de futebol.
Para quem não gosta de futebol, o torcedor que vai aos estádios, caso deste palhaço que vos escreve, é um ser completamente ridículo. Quem se dá ao trabalho de enfrentar as condições nos estádios para torcer é um palhaço. A total falta de higiene, de conforto, de atendimento, de organização, de segurança, deveriam por si só demover a nós palhaços da idéia tresloucada de ir ao campo. E mais ainda, de pagar por isso. Os estádios brasileiros são chiqueiros mal-cheirosos. São escadarias de concreto onde cada um se ajeita como pode. São currais onde se apanha da polícia, que não consegue organizar uma fila senão na base do cacetete. São antros onde se corre o risco de ser roubado por trombadinhas, onde o simples ato de comprar ingresso envolve consideráveis riscos à integridade física.
Tudo isso valeria à pena se pelo menos o espetáculo fosse de qualidade. O que também não é o caso. Os campeonatos que se disputam no Brasil são arremedos de campeonato. Ainda engatinhamos em busca de uma forma de organização adequada. Recentemente, adotou-se a fórmula de pontos corridos, habitual na Europa há um século. Isso pode ser considerado um avanço. Mas a forma como foi aplicada essa fórmula ainda guarda vícios indeléveis da cartolagem brasileira. Para evitar o risco de ver times “grandes” na 2a. Divisão, inventou-se um campeonato com 24 times. Ora, um campeonato de pontos corridos com 24 times se transforma numa interminável maratona de 46 rodadas. O problema não é a fórmula, mas o país onde ela é aplicada.
No Brasil, os times que começam a disputa não são os mesmos que terminam. Ao longo dessa maratona interminável de 46 rodadas, os times mudam tanto de jogadores, para não falar de técnicos, que ao terminar a disputa, não são mais os mesmos que começaram. O mercado europeu terá levado embora os jogadores mais promissores que aparecerem. O sentido da disputa em pontos corridos, que é a isonomia de condições na competição, se desfaz completamente. Está em jogo não apenas o mérito técnico dos times, mas sua capacidade de reter ou não jogadores. Capacidade totalmente fortuita, que depende de fatores instáveis de mercado. Os times que revelarem melhores jogadores serão os mais prejudicados, pois esses jogadores serão levados na metade do ano, no intervalo entre as temporadas européias.
Tocamos aqui no problema da instabilidade financeira dos times brasileiros. Os grandes clubes brasileiros estão falidos. E não apenas o time para o qual torce este palhaço que vos escreve. A bancarrota é generalizada. O que é evidentemente absurdo. Pois se todos os grandes clubes europeus querem jogadores brasileiros, é porque são os melhores. E se os jogadores brasileiros são os melhores, porque o campeonato brasileiro não é o melhor? Porque não temos a NBA do futebol? Sigamos a cadeia de razões, em busca de uma resposta.
Não temos uma NBA do futebol porque os grandes clubes brasileiros não são capazes de pagar salários compatíveis com os dos grandes clubes da Europa. Não são capazes porque o Brasil é um país pobre. A renda gerada pelo futebol no país não é suficiente para concorrer com a do futebol europeu. Até aí, estamos falando de um problema histórico e estrutural, cuja solução vai para muito além do futebol. Mas a diferença será assim tão distante? O abismo entre a renda do futebol brasileiro e a do europeu precisa ser tão profundo? Não há um meio de tornar o mercado de futebol no Brasil mais rentável? Se não rentável, pelo menos minimamente sustentável? Será que nossos clubes têm todos que passar pela vexaminosa situação falimentar em que se encontram?
Tivéssemos campeonatos bem organizados e estádios confortáveis, tanto a bilheteria como a audiência de televisão seriam maiores. Mas pensar em organização com a atual classe dirigente dos cartolas brasileiros é uma utopia. Os coronéis do futebol, fósseis da ditadura, transformaram o futebol em terra devastada. Ninguém mais quer jogar no Brasil. Ao primeiro aceno de um time da Bulgária ou da Coréia, um jogador brasileiro de futuro promissor no clube onde surgiu não pensa duas vezes e arruma as malas como se estivesse indo para o Barcelona ou o Manchester United.
Aos olhos da torcida, os jogadores se transformaram em mercenários sem respeito pelas camisas dos times. Trocam de camisa com uma facilidade desnorteante. Ninguém pensa mais em desenvolver uma carreira em um time só. Ninguém pensa mais em termos de anos. Quando muito, pensa-se num semestre. Vive-se a ditadura do curto prazo. Os contratos são assinados para períodos curtos, de um campeonato no máximo, sempre deixando aberta a possibilidade de uma transferência para a Europa.
É inaceitável que um clube como o Corinthians (e isso vale para outros grandes em má fase) se transforme num castelo de cartas. Bastou a eliminação perante o River Plate na Libertadores para o time se desfazer. Um time que vinha ganhando títulos todos os anos, desde 1997 (não vou expor a lista completa de títulos para não sobrecarregar o texto e cansar o leitor) subitamente se desfaz. O clube não tem direção, não tem rumo, não tem projeto, não tem futuro. A cada derrota, prometem-se reforços que nunca vem; a cada resultado positivo, repete-se o discurso de que “os garotos são bons, só precisam de experiência”. A direção oscila entre um discurso e outro, porque não tem competência para formar um grupo e mantê-lo. Mas isso não é “privilégio” do Corinthians.
Uma condição anormal rapidamente tornou-se estrutural. O Brasil não é mais o lugar onde se joga futebol, é o lugar de onde se sai para ir para a Europa. Um jovem que está se profissionalizando não sonha em defender a camisa que ama e jogar na seleção. Sonha em ir para o Internazionale ou o Juventus. Qualquer time grande do Brasil é pequeno demais para seus craques. O Brasil é apenas uma estação de passagem. Ficamos aqui com um campeonato jogado por jogadores de segunda. Só ficam aqui os jovens demais para ir para a Europa, os veteranos demais para jogarem no exterior, os que foram e já voltaram e os tão medianos que jamais conseguirão uma chance no exterior.
Nós que assistimos a um tal campeonato, sonhando em ver os grandes times do Corinthians, do Flamengo, Atlético, Internacional, etc., somos evidentemente uns palhaços. Estamos nos iludindo jogo a jogo, rodada a rodada, querendo ver um tipo de atração esportiva que não existe mais. A relação entre jogadores e clubes se tornou precária e utilitária. Para o torcedor, os jogadores de seu time aparecem como mercenários, vendidos, traidores, sem amor a camisa, que não se entregam nos jogos, etc. Por isso mesmo, a relação entre torcedores e jogadores se tornou tensa e hostil. Os torcedores tem mágoa dos jogadores, que por sua vez tem medo da torcida.
Exemplos como os goleiros Marcos do Palmeiras e Rogério do São Paulo são raríssimos. Exceções gritantes, ninguém os imagina vestindo a camisa de outros times. Nem eles mesmos, em primeiro lugar. Nós palhaços não conseguimos mais encontrar casos assim em nossos times. Sendo que antes, eles eram a regra e não a exceção. O jogador não quer mais jogar no Brasil porque tem medo de apanhar da torcida. Isso é o fundo do poço da mediocridade. O absurdo se completa quando a torcida mais atrapalha o time do que ajuda. Chegamos assim à antítese do futebol, o time sem torcida.
A antítese do futebol é o São Caetano, campeão paulista de 2004. O azulão é a antítese do futebol e ao mesmo tempo é também sua essência. A essência do futebol e sua antítese se manifestam num mesmo time porque o próprio futebol se tornou anti-natural e entrou em contradição consigo mesmo. Parte do sucesso do São Caetano é creditada ao fato de que, quando o time perde, não há torcida protestando no dia seguinte. Assim, os jogadores têm tranqüilidade para trabalhar e se recompor para o jogo seguinte. Isso é apenas parte da equação de sucesso do Azulão, mas é bastante relevante para o problema aqui tratado. O São Caetano é um time sem torcida e por isso mesmo faz sucesso.
Faz sucesso porque trouxe o futebol de volta à sua essência: onze jogadores em campo. Um time só precisa disso. São Caetano, Brasiliense, XV de Novembro de Campo Bom, são times que se projetam do nada no cenário nacional, porque trouxeram o futebol de volta ao estado original. São times simples, bem organizados, onde cada um faz sua parte, todos se esforçam, todos se ajudam em campo. Restituíram assim ao esporte o prazer de jogar. Grupos de jogadores medianos num clube organizado podem jogar melhor do que elencos estelares desmotivados. Que o diga o torcedor do Real Madrid.
Voltemos ao Brasil. Quando foi que um time e sua torcida estiveram unidos numa campanha futebolística de uma maneira que fizesse lembrar a antiga relação que existia no futebol brasileiro? O único caso que me ocorre é o do Palmeiras e do Botafogo na 2a. divisão em 2003. A campanha que fizeram foi bonita não só porque seus times se classificaram, mas porque time e torcida estiveram unidos. Tanto assim que, chegando à primeira divisão, o encanto se desfez.
Talvez assim, através desse exemplo, o futebol brasileiro tenha encontrado seu verdadeiro tamanho. Somos um futebol de 2a. divisão. Diante da Europa, o Brasil foi rebaixado. Nossos dirigentes transformaram o futebol brasileiro em terra devastada. Terra de ninguém. Várzea. Os clubes se transformaram em agregados de jogadores frustrados, manipulados por empresários, pressionados por torcidas enraivecidas, todos enganados por dirigentes sonolentos e corruptos.
O Brasil não deveria mais ter 1a. divisão, apenas 2a., já que na Segundona os estádios ficam lotados e as torcidas participam. E não vai aqui nenhuma provocação tardia contra um rival já devidamente reabilitado. Talvez devêssemos todos jogar a 2a. divisão: Corinthians, Flamengo, Vasco, Internacional, Atlético, etc. Talvez todos devessem passar por um curso de reciclagem. Deixar a 1a. divisão para Goiás, Criciúma, Atlético-PR, São Caetano, Vitória, times de menor tradição nacional, mas que no momento representam melhor aquilo que chamamos essência do futebol.
Daniel M. Delfino
27/05/2004
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