8.5.07

Receita de mãe para o governo Lula




Por ocasião da posse de Lula em janeiro de 2003, Hebe de Bonafini, líder do movimento das Mães da Praça de Maio, deu a receita: para acabar com a fome no Brasil, basta deixar de pagar a dívida externa. Imaginava-se então que o Fome Zero era algo mais que mera retórica ou que no mínimo refletia uma prioridade real do novo governo. Um governo que, imaginava-se, estivesse disposto a imprimir uma verdadeira inflexão na história político-social do país.

Com sua sabedoria prática de mãe e seu conhecimento de militante socialista (sim, as Mães da Praça de Maio se tornaram um movimento socialista, por mais surreal que isso pareça aos brasileiros), Hebe de Bonafini dirigiu-se a um antigo companheiro de lutas, tal como ela própria, figura importante no contexto dos movimentos sociais na América Latina, a quem felicitava pelo sucesso eleitoral, ao mesmo tempo em que dava sua contribuição para a luta do país vizinho.

A receita de Hebe de Bonafini vai direto ao ponto, colocando o dilema sob sua forma nua e crua: acabar com a fome no Brasil ou pagar a dívida externa? Não existe meio termo possível. Por mais que se insista no auto-engano, não é possível fugir dessa constatação inevitável. Uma política que leve em consideração os interesses do país e de sua população mais desfavorecida deve ser necessariamente diferente da política que obedece aos credores internacionais.

Sem ruptura não há mudança. O governo Lula não rompeu com o sistema financeiro internacional e agora todos pagamos o preço. O bolo desandou. Há uma diferença fundamental entre Lula e os demais governos, o que torna o seu fracasso ainda mais dramático. A importância dessa diferença pode ser ilustrada por um simples incidente, típico ato de desespero de causa, primeira página de jornais sensacionalistas, sinal dos tempos em que vivemos.

Um desempregado ateou fogo em si mesmo para chamar a atenção de Lula. Ele o fez porque considera que Lula vai se sensibilizar com sua situação. Ele pensa dessa maneira porque sabe que Lula era um dos seus. Um trabalhador, um homem do povo. Ninguém pensaria isso em relação a FHC. FHC não era um dos nossos. Não era um homem do povo. Era um intelectual elitista a serviço do capital, alguém que está do outro lado da clivagem social fundamental. Ninguém pensaria em se auto-imolar perante FHC, pois sabe que isso não teria qualquer sentido. Não teria qualquer eficácia simbólica, pois trata-se de seres de espécies diferentes. Alguém pensou em atear fogo sobre si mesmo diante de Lula, porque sabe que ele pode sentir, em algum lugar.

Longe estamos portanto de endossar aqui o batido discurso de que “os políticos são todos iguais” ou de que “todos mudam quando chegam lá”. É preciso antes entender a especificidade do fracasso de Lula. Há questões que somente podem ser explicitadas num governo “de esquerda”. Pois sob o domínio da direita, a questão fundamental permanece sempre sendo a de chegar ao poder. Essa é a única questão importante do ponto de vista da esquerda. Do ponto de vista da direita, não há, por definição, qualquer idéia de alternativa, de projeto, de auto-construção nacional, de futuro. Para a direita, a História acabou. O mercado é o limite último da civilização humana. Logo, não faz sentido debater com a direita. É um debate ocioso, que não acrescenta nada.

Já no governo da “esquerda” a questão programática se coloca de maneira palpitante e vital. É onde se torna possível falar em projeto. Ou, infelizmente, falta de projeto. Voltemos a Hebe de Bonafini. Pagar a dívida externa ou acabar com a fome, é a alternativa. É nesses termos que se deve colocar a discussão sobre o governo Lula. Discutir a taxa de juros, o risco Brasil, os indicadores externos, etc., é perda de tempo. Nada disso acrescenta um centímetro sequer à discussão dos verdadeiros problemas do país.

Discutir essas variáveis econômicas significa jogar o jogo dentro das regras ditadas pelo capital internacional. Lutar por mudanças infinitesimais na taxa de juros significa manter a taxa de juros em primeiro plano no debate. Tratar os problemas do país em termos de índices econômicos significa caminhar em círculos. Não há saída por essa via. Essa discussão apenas serve para dar legitimidade ao programa de desmonte do país em vigor desde a era Collor. Um programa que consiste em colocar o mercado acima da sociedade e o Estado como servo do mercado. Chame-se de neoliberalismo, de consenso de Washington, de pensamento único, de ideologia burguesa, etc., o que importa é que essa problemática artificial não fornece qualquer solução plausível para os problemas do país.

Do ponto de vista da esquerda, o Estado deve existir para servir à sociedade, a ponto de dissolver-se na auto-administração da sociedade socialista. Se isso desagrada ao mercado, é problema do mercado. É claro que muitos dirão que este escriba enlouqueceu de vez, que está advogando o puro voluntarismo, que não se pode governar de maneira “irresponsável”, etc. Um Estado-transicional que encaminhe a própria dissolução só pode ser construído por meio do retorno dos poderes sociais alienados na esfera política aos seus legítimos donos, ou seja, o povo. Por isso a receita de mãe está fundamentalmente certa. Os governos neoliberais, “de esquerda” e de direita, permanecerão agradando o mercado, esperando o bolo crescer, e as pessoas continuarão passando fome décadas a fio, “ad infinitum”.

O fracasso do PT é inevitável diante da perspectiva fundamental adotada. A perspectiva de que se deve “fazer a lição de casa” e esperar o bolo crescer. O bolo continuará minguado e o PT será varrido do cenário político na próxima eleição, levando com ele toda legitimidade da idéia de alternativa. Não se trata de negar a viabilidade prática da idéia de alternativa, que continua existindo, mas sua eficácia simbólica. Tome-se o caso da negociação do salário mínimo. A oposição tucana e conservadora é contra um salário mínimo de R$ 260,00 porque está na oposição, não porque tenha uma alternativa programática a ele. Se estivesse no governo, faria a mesma coisa, mas como não está, só lhe resta cinicamente votar contra seu próprio programa. É uma oposição tática, circunstancial, nominal, contingente, venal. O PT, por sua vez, ao fazer passar um salário mínimo de R$ 260,00 reais, está agindo como um governo tático, circunstancial, nominal, contingente, venal, porque está fazendo a mesma coisa que a direita fazia no poder.

Logo, o PT é na prática um governo idêntico ao da direita, que por meio da sua falta de programa, transforma a própria idéia de programa numa idéia inviável. A própria idéia de alternativa fica desacreditada quando o governo que dizia ser a alternativa coloca em prática o mesmo programa que criticava. O que cabe denunciar aqui é essa renúncia petista à idéia de alternativa. Renúncia que desacredita e rouba a voz de todos aqueles que defendem alternativas. O PT usurpou essa voz e tem feito papel ridículo com seu mandato. Note-se bem que não estamos falando de socialismo, mas simplesmente de alternativa. O socialismo fica para depois. O que o PT não foi capaz de oferecer foi uma alternativa minimamente consistente de enfrentamento da crise. E por essa incompetência será derrotado.

Foi preciso que o PT chegasse ao poder para que se percebesse isso. Uma amarga lição a ser aprendida. Não há solução pela via petista. Agora, as forças de esquerda devem se organizar em torno de uma nova perspectiva. O primeiro passo é negar ao “mercado” a legitimidade para falar em nome dos interesse do país. Os índices da bolsa de valores dizem respeito a quem aplica na bolsa. O Estado tem a função precípua de se impor como voz da sociedade inteira, não dos especuladores.

A sociedade precisa de alimentação, de escola, de saúde, de habitação, de segurança, de saneamento, de infra-estrutura, de transporte, de cultura, de lazer. O mercado que se organize para providenciar esses bens. Essa deve ser a perspectiva. Como se vê, não estou falando aqui sequer de socialismo. Isso ficaria para depois. O que se deve lutar ainda no Brasil é para atingir essas condições mínimas. Um governo de esquerda deveria lutar por esses itens básicos, subordinando todo o resto a esse objetivo.

Pense-se na estrutura do governo. Temos um Ministério da Fazenda que é um super-Ministério, com peso prático maior do que a soma de todos os demais órgãos do Executivo e dos outros Poderes da República. Dentro do Ministério da Fazenda temos o Banco Central como instância de relacionamento com o mercado financeiro e formuladora de políticas às quais o Ministério da Fazenda deve se submeter. Logo, quem governa o país é o Banco Central. Nada que os outros Ministérios queiram fazer pode ser viabilizado, porque o Ministério da Fazenda segura as chaves do cofre. O Ministério da Fazenda, por sua vez, segue as instruções do Banco Central. O qual zela pela rentabilidade dos negócios dos especuladores, garantindo-lhes o superlucro predatório que nos extraem.

Na estrutura que sugerimos, a situação estaria invertida. Cada Ministério formularia seus programas e pediria as verbas. O Ministério da Fazenda teria que arranjá-las. Se ele arranja verbas para pagar a dívida externa, bagatela de 100 bilhões de reais por ano, deve arranjar para pagar a dívida social. Qual é a prioridade? Dívida externa ou dívida social? O que se poderia fazer com 100 bilhões de reais em verbas para investir no país? Não se faz nada, porque esse dinheiro está comprometido com a dívida externa. Que se inverta a situação. Invista-se no país, em primeiro lugar, e pague-se a dívida externa, quando se puder.

Também não é necessário dar calote. Basta estender um pouco mais o prazo. Lembremos que a população negra do país está esperando há mais de 100 anos a completa abolição da escravidão. O civilizado mercado internacional certamente também saberá ser paciente e poderá também esperar por um prazo equivalente. Pois é “consenso” a idéia de que o mercado é a instância mais avançada da civilização. Seja como for, o que interessa é encontrar um lugar adequado para a dívida externa no orçamento do país, que deve ser lá entre o 118o. e o 119o. lugar na lista das prioridades.

A esse respeito não é preciso importar a sabedoria de uma mãe argentina. Toda dona de casa brasileira, diante do dilema de pagar a dívida no banco e dar comida aos filhos, sabe claramente qual opção tomar. Recorre-se aqui a uma comparação que parece ser de um simplismo brutal, além de apelativa e sentimentalista. Afinal, administrar um país não é o mesmo que administrar um orçamento doméstico.

Mas o que há mesmo de tão diferente? Não será só o tamanho dos números? Essa complexidade fundamental de um orçamento nacional não será apenas uma mistificação falaciosa destinada a perpetuar a condução da riqueza pública nas mãos dos aprendizes de feiticeiro chamados de economistas? Será que não foram eles mesmos que inventaram a complexidade para nos fornecerem o antídoto, assim como a Igreja inventou o inferno para nos vender a salvação?

O dilema, como nos coloca Hebe de Bonafini, é simples e transparente. Pagar a dívida externa ou alimentar o povo. Urge reconhecer essa situação. O que há de mais problemático na mentalidade colonizada que vigora no Brasil não é o simples fato de que sejamos explorados por credores externos, mega-empresas transnacionais, etc. Isso acontece com centenas de países. O mais problemático é que o país não acredita nas suas próprias forças. O brasileiro não acredita no Brasil. Nada do que é brasileiro presta. Tudo que é bom vem de fora. O Brasil não tem idéias próprias. Não existe um modelo brasileiro de se fazer as coisas. Os modelos tem que vir de fora. Se uma idéia não se encaixa nos modelos estrangeiros, está fora de questão. O Brasil não tem o direito de desenvolver modelos próprios. Não pertencemos ao seleto grupo de países que desfruta do privilégio de criar modelos. Somos eternos escravos da “experiência internacional”.

A experiência internacional aqui referida é, como sempre, o tal mercado. Pode-se fazer qualquer coisa, e Lula tem feito, desde que não se desagrade o mercado. E com isso, tudo que Lula faz, vira e mexe, inventa e tenta, resulta em absolutamente nada. E continuará resultando em nada. Diante dessa inapetência criativa, podemos ver Hebe de Bonafini brandindo o rolo de pastel, pronta para dar uma sova em Lula, por sua incapacidade de enxergar o país que tem nas mãos. A velha mãe daria tudo para ter na sua Argentina o potencial que temos no Brasil. A receita daria um bolo bem melhor.

O Brasil tem potencial para superar todos os seus problemas e ainda se tornar modelo civilizatório para o mundo no século XXI. O esgotamento dos combustíveis fósseis fará das fontes renováveis de energia a mais importante riqueza estratégica global. E em termos de fontes renováveis de energia, o Brasil está tão bem posicionado quanto a Arábia Saudita em termos de petróleo. Energia solar, eólica, das marés, hidrelétrica, de biomassa, etc.. Isso sem falar nas reservas de biodiversidade, de turismo, de cultura.

Ao invés de pensar em termos de monocultura de exportação, que é o que o Brasil faz há 500 anos, a solução está em fazer a Reforma Agrária, instalar 10 milhões de famílias no campo, multiplicar microdestilarias de álcool, usinas de biomassa, adubo orgânico, alimento ecológico, produzidas por cooperativas autogestionárias, sob a inspiração de um projeto nacionalista política e culturalmente soberano. Nesse caso, sim, teríamos uma alternativa consistente, ao invés da idéia colonizada de pagar a dívida externa para não “fazer feio lá fora.”

O que falta a Lula é a capacidade de transcender a mentalidade de peão de fábrica transnacional, que continua querendo agradar ao patrão estrangeiro. Falta-lhe pensar como um brasileiro autêntico e emancipado. Como cada pai e mãe de família pensa em relação a seus filhos. E como filhos desse pai, não nos cabe outra solução a não ser chamar pela mãe. Ainda que tenha que ser uma mãe Argentina.

Na próxima eleição, voto em minha mãe para Presidente.

Daniel M. Delfino

27/05/2004

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