8.5.07

"Diários de Motocicleta": o Renascimento da Latinoamericanidade


(Comentário sobre o filme “Diários de motocicleta”)



Nome original: Diários de motocicleta
Produção: Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra (UK), Argentina, Chile, Peru, França
Ano: 2004
Idiomas: Quéchua, Espanhol
Diretor: Walter Salles
Roteiro: Ernesto ‘Che’ Guevara, Alberto Granado
Elenco: Gael García Bernal, Rodrigo De La Serna
Gênero: aventura, biografia, drama
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

“Diários de Motocicleta”, novo filme do diretor brasileiro Walter Salles, trata da viagem de Ernesto Guevara e seu amigo Alberto Granado pela América Latina, em 1952. Ernesto Guevara, na época com 23 anos, tornou-se depois mundialmente conhecido como “Che” Guevara, liderando a Revolução Cubana ao lado de Fidel Castro, em 1959. Tentando estender a Revolução ao continente latino-americano, foi morto pelo exército boliviano, em 1967, com assistência da CIA. Alberto Granado vive até hoje em Cuba. O filme é baseado num livro de sua autoria, narrando sua viagem com Che, cujo apelido na época era Fuser.

O interesse do filme está obviamente em conhecer a figura de Che antes de se tornar o “Che”. Quem era Ernesto Guevara antes de se tornar Che? Responder a essa pergunta equivale a explicar como se forma um herói. O que é um herói? A definição clássica diz que um herói é uma pessoa comum que, sob circunstâncias extraordinárias, realiza feitos extraordinários. O herói é um simples ser humano cujos atos se projetam na História, de uma forma tal que ofuscam a sua dimensão humana original. Che Guevara era um simples ser humano, isso é uma afirmação banal.

Transformar uma afirmação verdadeira, mas banal como essa, numa verdade significativa, é a tarefa de todo artista e o metro pelo qual se avalia a qualidade estética de sua obra. Em “Diários de motocicleta”, Che Guevara emerge como homem real e como herói. Este escriba partilha da idéia de que um filme deve ser avaliado de acordo com a proposta interna que move sua realização. “Diários de motocicleta” é um filme pequeno, despretensioso, minimalista, por assim dizer, e ao mesmo tempo grandioso em sua realização.

O filme é minimalista porque não trata da trajetória inteira da vida de Che, mas apenas de um certo episódio. Evita-se no filme qualquer alusão importante ao futuro de Fuser, quando este se tornaria Che. Evita-se debater seu futuro revolucionário, sua participação na revolução cubana, os fracassos em Angola e na Bolívia, etc.. Esses problemas espinhosos não pertencem ao escopo desta produção, ainda que a figura de Che seja uma sombra em nossa mente pairando do futuro sobre a história narrada. O filme não tenta fingir que Fuser não se tornaria uma figura importante. O filme sabe desse futuro, apenas não se propõe a abordá-lo diretamente. Sua limitação é seu maior mérito, ao ater-se ao período de formação de Fuser.

Ao mesmo tempo que minimalista, o filme é grandioso, pela complexidade dos cenários que revela. “Diários de motocicleta” é um “road movie”, um filme de viagem. Ao longo da viagem, temos a exposição de amplo um painel da diversidade geográfica e humana da América Latina, da neve dos Andes ao rios da Amazônia, da burguesa Buenos Aires à impressionante Machu Pichu e à favelizada Lima. Sob muitos aspectos, a América do Sul assim revelada parece um retrato do Brasil ampliado.

A latinidade do Brasil, sua pertença à América Latina, muitas vezes parece estar eclipsada pela questão do idioma português. Mas vendo um filme como esse, é impossível deixar de pensar no próprio Brasil, em sua diversidade de cenários e paisagens. Sobretudo para quem, como este escriba conheceu o Nordeste brasileiro, o paralelo com o povo mestiço e pobre da América do Sul é de uma evidência gritante.

Talvez por isso “Diários de motocicleta” esteja sendo considerado uma espécie de manifesto ou “filme-símbolo” de um certo cinema latino-americano em processo de afirmação perante o cenário mundial. Fala-se então no caráter multinacional da obra, com um diretor brasileiro, um astro mexicano, Gael Garcia Bernal (o “novo Antonio Banderas”), um coadjuvante argentino (o ótimo Rodrigo de la Serna), um produtor estadunidense, o versátil Robert Redford. Para além dessas considerações de baixa cinefilia, o que se quer destacar aqui é a sensação de latino-americanidade presente no filme, que mostra a América do Sul como uma ampliação do Brasil, revelando ao mesmo tempo o Brasil como uma condensação da América Latina.

A barreira do idioma, é claro, não existe quando os dois protagonistas deixam sua Buenos Aires natal e atravessam Chile, Peru e Venezuela. Em toda parte fala-se castelhano. Talvez não o mesmo castelhano, pois no Chile alguém menciona a partícula “che” peculiar aos argentinos. O que aparece como a pista que explica o apelido de Fuser na maturidade, com o qual passará à História.

Àquela altura, Fuser e Mial (apelido de Granado), estavam mais interessados em mulheres e em aventuras do que em qualquer outra coisa. A viagem estava programada para festejar o aniversário de 30 anos de Granado, por ocasião da chegada à Venezuela. Mas uma série de vicissitudes, entre as quais a perda da motocicleta “la Poderosa”, determinaram um atraso de vários meses.

Como em todo filme de viagens, os personagens acabam encontrando a si mesmos ao longo do trajeto. Mais do que qualquer objetivo exterior posto no final da jornada, o que todo viajante encontra é sua própria verdade interior. Fuser descobre aquela unidade da América do Sul a que me referi. A mesma pobreza, a mesma injustiça, a mesma história de espoliação ancestral e reiterada corrupção. Um dos primeiros incidentes onde a revolta se manifesta transcorre no Chile, quando os dois viajantes presenciam o recrutamento de mineiros mestiços por funcionários de uma empresa transnacional. Diante dos maus-tratos aos peões, Fuser discute com os funcionários da empresa. Os dois são intimados a se retirar do local, sob a alegação de que se trata de uma propriedade da “Anaconda Mining Company”.

O espectador, ao impacto desta cena, inevitavelmente se pergunta: “como assim, Anaconda Mining Company?” O absurdo de uma transnacional explorar riquezas minerais da América do Sul usando população local como mão-de-obra em regime de semi-escravidão aparece de maneira gritante. Assim como o relato de um sem-terra peruano, que muito recorda o de um similar brasileiro.

Aos poucos, a consciência social de Fuser desperta sob o impacto dessas experiências. Um dos contrastes que lhe chamam atenção é o do esplendor da cidade sagrada inca de Machu Pichu, em comparação com a degradação das favelas de Lima. Um simpático guia mirim de Cuzco diz aos dois viajantes que se pode conhecer muito facilmente a diferença entre uma construção inca e uma espanhola, através da clamorosa superioridade técnica da primeira sobre a segunda.

O sentimento de humanidade que os dois carregavam e que passa a ser cultivado ao longo da viagem tem ocasião de se manifestar quando chegam à escala final do percurso, uma colônia para leprosos na Amazônia venezuelana. Ali os dois protagonizam um “momento Estranho no Ninho”, subvertendo o regime obscurantista que as freiras que administravam o local impunham à colônia, por meio do gesto simbólico de deixar de usar luvas. A lepra, quando tratada, não é contagiosa. Logo, não faz sentido usar luvas, senão para demarcar uma diferença de condição social. Diferença que ambos se recusam a reconhecer. Ao resgatar a humanidade dos leprosos, Fuser dá também testemunho de sua própria condição de doente. Para quem, asmático como ele, precisa lutar por cada golfada de ar, a vida é uma benção que deve ser desfrutada a cada instante.

Ao longo do filme, percebe-se que Fuser está se tornando Che. Mas esse movimento ainda é embrionário. Não há uma enunciação programática clara, apenas uma indignação fundamental que lentamente toma corpo. Um médico que os acolhe em Lima indica a leitura de Mariátegui, importante pensador marxista peruano, virtualmente desconhecido no Brasil, que tematizava a questão da revolução camponesa de maneira bastante criativa. Mas isso é apenas um dos episódios da viagem.

Todos sabem que Fuser se tornaria Che, mas àquela altura, ele próprio ainda não sabia. Tratava portanto de viver sua vida, como um jovem comum. Um jovem membro da burguesia Argentina. Ernesto Guevara era médico e Alberto Granado bioquímico. Apenas sua condição social razoavelmente privilegiada lhes permitiria fazer tal viagem. Mas ainda assim, em condições precárias, pois os dois não eram ricos. Eram burgueses românticos, acima de tudo. Mais do que uma vida burguesa confortável e monótona em Buenos Aires, buscavam a liberdade, o que quer que ela significasse.

O que estamos tentando dizer aqui é que não se trata de um filme programático, de propaganda política explícita dos ideais de esquerda. A abordagem de Walter Salles é quase documental. A estética semi-documental de “Diários de motocicleta” abre espaço para cenas quase puramente fotográficas, painéis humanos variados do povo, trechos de música, de forma leve, suavizando e emoldurando a narrativa. Somos assim convidados a acompanhar a viagem e trilhar cada passos ao lado dos protagonistas.

Graças à competência do diretor e do elenco, a figura de Che ganha em naturalidade e humanidade, através de sua forma embrionária de Fuser. Alguns dos traços de Che já estão presentes, mas precisarão ainda ser desenvolvidos. Uma das chaves interpretativas possíveis compara Ernesto e Alberto a Dom Quixote e Sancho Pança, respectivamente. O primeiro representa um idealismo inflexível, o segundo um pragmatismo mais rasteiro e prosaico. Há três momentos importantes que ressaltam a diferença dos dois no que diz respeito à questões de ética e verdade: o encontro com o fazendeiro, com a senhora moribunda e com o médico aspirante a escritor. Ao longo desses três momentos, Ernesto descobre como se deve dizer a verdade às pessoas, ou não dizê-la, para constrangimento de Alberto.

Uma outra chave interpretativa pode ver em Ernesto o representante da razão e Alberto a pura emoção. Pode-se dizer que Rodrigo de la Serna rouba a cena no papel de Alberto Granado. Mais velho que seu companheiro e sobretudo mais experiente com o sexo oposto, ele protagoniza os momentos mais divertidos, exteriorizando uma autêntica e contagiante alegria de viver. Seu sucesso em conquistar a garota de programas do barco que os leva pelo rio, conseguindo o dinheiro no carteado, é um dos momentos mais saborosos do filme. Através de Alberto Granado, o espectador brasileiro descobrirá o quanto os palavrões em castelhano são semelhantes aos do português. Alberto é um verdadeiro argentino-carioca, tal a facilidade e o humor com que se serve do baixo léxico.

Estamos falando portanto de um filme bastante humano, bastante simples em sua forma e bastante profundo em sua sensibilidade. Um filme pautado por pequenos incidentes, pequenos percalços e peripécias, miudezas puramente humanas e nada heróicas. Ao invés de um esquerdismo programático, temos um humanismo difuso. É como se o velho latino-americanismo estivesse tentando voltar à origem, reencontrar sua inocência e sua inspiração. Nada mais apropriado nesse contexto do que resgatar a figura de Che. Nesse sentido, a nostalgia pela inocência e pelo idealismo de “Diários de motocicleta” faz dele a versão latino-americana de “Adeus Lênin”.

Através desse humanismo difuso, aprendemos que talvez de Alberto tenha vindo a principal lição para a formação de Che Guevara, aquela que ele próprio sintetizou quando, já celebre, proferiu e famosa frase: “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. Imperativo contraditório, também tornado banal, cuja verdade somente transparece quando examinada à luz da trajetória de vida daquele que o proferiu. A dureza é o requisito para se transformar um mundo duramente injusto; a ternura é a maior arma para a luta e a própria recompensa da vitória, que nos aguarda num mundo mais humano. Vitória sim, pois somente os heróis vencem a morte e se tornam exemplo para os vivos.

“Hasta la Victoria, siempre!”

Daniel M. Delfino

27/05/2004

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