8.5.07

O filme que deu origem à camiseta




A MTV Brasil veiculou uma inteligente chamada publicitária para o filme “Diários de Motocicleta”. O filme trata da viagem de Ernesto Guevara pela América Latina, em 1952, ao lado de seu amigo Alberto Granado, à bordo de uma motocicleta. Ernesto Guevara, como se sabe, tornou-se mundialmente conhecido como “Che” Guevara. Líder guerrilheiro, ícone romântico, símbolo de rebeldia e, também, personagem de camisetas. Na vinheta da MTV, o filme “Diários de Motocicleta” é “o filme que deu origem à camiseta” de Che Guevara. Mas a pergunta fundamental subsiste: quem é Che Guevara?

Che é “aquele cara nas camisetas”. Assim pensa o público alvo da chamada da MTV. Por isso, o filme é apresentado a esse público com essa chancela, “filme que deu origem à camiseta”. Como se fosse um daqueles filmes que dão origem a seriados, desenhos, histórias em quadrinhos, etc.. Para a massa da audiência da MTV, Che é um personagem da cultura “pop”. A propaganda trabalha no mesmo nível em que se situa o imaginário de seu público alvo. Usa-se a camiseta de Che como se usa a camiseta de uma banda de rock. Veja-se então o filme que mostra como esse personagem surgiu.

A imagem mundialmente conhecida de Che é aquela da foto de Albert Korda, a imagem do guerrilheiro de boina com estrela, olhar distante, cabelos desgrenhados, barba mal feita. Uma imagem tantas vezes reproduzida, transformada em decalque, clonada, multiplicada em broches e chaveiros, estampada em duas cores, desenhada por meio de contrastes. Em suma, infinitamente manipulada e despersonalizada, como a Marilyn Monroe de Andy Warhol. Em “A taça do mundo é nossa”, filme do Casseta & Planeta, Che Que-vara fingiu de morto para viver da venda de camisetas.

A transformação de Che Guevara em personagem da cultura “pop” expressa dois fenômenos: a flexibilidade da indústria cultural, capaz de assimilar e transformar em produto qualquer ícone de rebeldia; e a perda da dimensão concreta do tempo histórico e do significado humano dos seus conteúdos factuais, peculiar à cultura contemporânea, chamada de pós-moderna.

Quanto ao primeiro fenômeno, já é por demais conhecido o processo por meio do qual a indústria cultural assimila elementos da cultura “underground” e os transforma em “mainstream”. A história da cultura “pop” pode ser contada por meio de uma espiral de “movimentos revolucionários” que começam no “underground”, tomam o poder e se tornam “conservadores”, ou seja, comerciais. Esse processo cíclico de pseudo-revoluções é típico do universo da música “pop”.

A música “pop” típica do século XX foi o rock, que exemplificou portanto de forma típica essa dialética da assimilação, por meio de todas as sucessivas ondas, desde o inocente rockabilly dos anos 50, passando pelo som psicodélico dos anos 60, o metal dos 70, o progressivo, o punk rock, o gótico dos 80, o grunge dos 90 e seja lá o que for que se ouça hoje.

Todos esses movimentos, cada um por seu turno, se apresentam como “opositores do sistema” e de sua cultura estabelecida. No momento seguinte, se transformam em produto do mesmo sistema e por isso mesmo, em alvos da próxima revolução, que inevitavelmente vai derrubá-los e substituí-los. A cada momento, o rótulo da rebeldia precisa ser aplicado a um novo conteúdo estético. Num determinado momento, certo conteúdo é considerado “rebelde”, portanto adequado ao consumo. No momento seguinte, seu potencial de mobilizar atenção está esgotado. Esse conteúdo passa a ser considerado comercial, excessivamente “pop” e fica fora de moda.

Este escriba promete voltar em breve a esse tema da dialética da assimilação. Está em elaboração uma série de artigos que entre outros temas aborda uma espécie de história da cultura “pop”. Por enquanto, para os fins aqui visados, basta assinalar o processo por meio do qual o público jovem se transformou no principal filão da indústria cultural, a partir dos anos 50 e 60 do século XX.

Desde esse período, o cinema e a música passaram a ter os jovens como seu mercado principal. A emergência da cultura jovem se manifesta sob a forma de contracultura, ou seja, como rejeição da cultura ancestral legada pelas gerações anteriores. Prontamente, a indústria se apropria dos ícones do movimento contracultural e passa a estampá-los em seus produtos. Um consenso se estabelece no sentido de que a juventude é a fase rebelde da vida. A fase em que é legítimo se entregar a todos os tipos de experiências e excessos escapistas e auto-destrutivos. Esse estereótipo de juventude rebelde fixa-se no imaginário coletivo e passa determinar o comportamento esperado de todos os “jovens” nascidos depois dos anos 60.

Mas o que é então essa rebeldia que a indústria cultural tenta engarrafar e oferecer nas prateleiras do mercado do “pop”? Quem define o que é rebelde, o que é “underground”, o que é “cool”, o que é “hype”, o que está na vanguarda, o que é revolucionário? Aparentemente, apenas o próprio público pode fazê-lo. Essa é talvez a sua única margem de liberdade, reconhecer focos autênticos de cultura, onde quer que eles apareçam, antes que os marqueteiros do sistema o transformem em mercadoria de consumo de massa e esgotem seu sentido. Esse foco de cultura antes autêntica logo estará transformado em chaveiros, capas de caderno, e camisetas. Como o Che

Chegamos portanto à camiseta de Che Guevara. A implacável dialética da assimilação praticada pela indústria cultural apanhou a imagem do Che em suas malhas. O guerrilheiro se transformou em imagem adequada para a rebeldia juvenil. Uma rebeldia totalmente desprovida de conteúdo histórico-social concreto. O que nos leva ao segundo aspecto acima mencionado: a falta de solo sócio-histórico no discurso padrão da indústria cultural.

O jovem que usa a camiseta do Che está se rebelando contra quem? Contra seus pais? Seus professores? O sistema? O governo? Qual é o grau de efetividade que essa rebeldia lhe oferece? Em termos práticos, o que ela transforma? Qual é a grande mudança existencial envolvida no significativo gesto de envergar uma camiseta do Che? Qual é a causa que se abraça por meio desse gesto?

Cada uma dessas questões em algum momento atravessa a mente do jovem que enverga a camiseta. Mas esse momento é breve, pois logo ele recebe de alguma sorte a resposta tranqüilizadora de que o Che foi “um cara legal” que lutou “contra os poderosos” há algum tempo atrás, em “defesa dos oprimidos”, terminando por “morrer como herói”. Essas respostas citadas entre aspas circulam como lugares-comuns do imaginário dos jovens, representando o nível de consciência possível que eles possuem do que pode vir a ser “uma boa causa”.

Che era um cara legal porque morreu pelos seus ideais, como Jesus Cristo. E isso basta. Morrer pela causa é um gesto “radical”. Tal como surfar numa onda de 10 metros de altura. Os dois atos se equivalem para o jovem rebelde educado por essa cultura “pop” pós-moderna desreferencializada, abstrata e fugaz. Talvez esse modo de apresentar a questão possa parecer muito superficial, caricato, irônico, preconceituoso, arrogante ou elitista, sobretudo injusto para com os jovens realmente engajados que também tem Che como seu herói.

O objetivo não é porém ofender ninguém, nem discutir quem é alienado ou não. Trata-se apenas de assinalar o grau de descolamento que cresceu como um abismo separando a rebeldia “pop” pós-moderna da história concreta da rebeldia em diferentes momentos da vida da humanidade. Che não era “o rebelde” ideal e abstrato, um rótulo conveniente e descartável, para qualquer época e lugar; ele era um determinado tipo de rebelde. Era um guerrilheiro engajado na causa da revolução socialista. Uma revolução que tem como objetivo transformar todos os aspectos da vida social, em busca de uma humanidade plenamente emancipada, autônoma e realizada. Uma causa que ainda tem sua pertinência. E em vista do aprofundamento da barbárie que experimentamos, sua urgência.

É disso que se está falando quando se fala do Che. Ou se fala da tragédia do socialismo reiteradamente adiado ou se fala de uma simples imagem numa camiseta. A discussão deve ser feita nesse nível para que se possa inclusive questionar o significado do sacrifício de Che Guevara, o tipo de revolução que pretendia, o modelo pelo qual lutava. Trazer o personagem para o terreno da história real significa tratá-lo como ser humano real, passível de erros e acertos, dissolvendo sua infalibilidade mitológica. Somente assim se pode reconhecer o verdadeiro valor humano de seu sacrifício.

A estratégia publicitária veiculada pela MTV destila uma irônica ambigüidade, tratando de maneira divertida o herói do filme como um personagem de camiseta, provocando com isso a estranheza que desperta a curiosidade e convida a conhecer o personagem real por trás do mito. O sucesso de tal estratégia dependerá é claro do sucesso estético do filme, o que será objeto de discussão em outro artigo.

Daniel M. Delfino

27/05/2004

P.S. Filme comentado: “Diários de motocicleta”

Nome original: Diários de motocicleta
Produção: Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra (UK), Argentina, Chile, Peru, França
Ano: 2004
Idiomas: Quéchua, Espanhol
Diretor: Walter Salles
Roteiro: Ernesto ‘Che’ Guevara, Alberto Granado
Elenco: Gael García Bernal, Rodrigo De La Serna
Gênero: aventura, biografia, drama
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

Nenhum comentário: