3.5.07

"O dia depois de amanhã" e a negação do futuro pelo capital


(Comentário sobre o filme “O dia depois de amanhã”)



Nome original: The day after tomorow
Produção: Estados Unidos
Ano: 2004
Idiomas: Inglês, Francês, Japonês
Diretor: Roland Emmerich
Roteiro: Roland Emerich
Elenco: Dennis Quaid, Jake Gyllenhaal, Emmy Rossum, Dash Mihok, Jay O. Sanders, Sale Ward, Austin Nichols, Arjay Smith
Gênero: ação, aventura, drama, ficção científica, thriller
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

O novo filme do diretor Roland Emerich, mais do que previsão do tempo, trata de previsões políticas. “O dia depois de amanhã” coloca em cena de forma sintética o clima político dominante para as próximas décadas, sem qualquer trocadilho infame. Trata-se de um filme que mostra de forma espetacular a emergência de uma nova Era Glacial instantânea tomando forma no intervalo de alguns poucos dias e devastando inteiramente o Hemisfério Norte.

A forma dramática que esse espetáculo assume é aqui irrelevante. A fórmula narrativa é estritamente hollywoodiana e convencional. Somos apresentados a um pequeno grupo de personagens, pessoas comuns, famílias, que deverão tomar decisões importantes para o destino do mundo e ao mesmo tempo salvar seus entes queridos. O personagem de Dennis Quaid é um cientista que percebe a catástrofe antes de todo mundo e heroicamente tem que afrontar o comodismo dos poderosos para que a notícia seja aceita e as providências cabíveis sejam tomadas.

Evidentemente, essas providências somente são tomadas quando já é tarde demais, a catástrofe já está alastrada, o filho do cientista está ilhado numa Nova York inundada e depois congelada. O descompasso serve de pretexto para que o espectador possa ser bombardeado com cenas espetaculares de destruição. Os efeitos especiais tomam o lugar dos protagonistas e tentam justificar o preço do ingresso. Episódios rocambolescos envolvendo travessias na neve, lobos, etc., tentam compensar a falta de roteiro. De quebra, o tradicional bom-mocismo dos protagonistas do cinema estadunidense.

O que há de possivelmente relevante nesse filme não é sua trama nem seus heróis, apesar de todo o sentimentalismo com que tentam profissionalmente nos comover os astros, bem pagos para isso. O interesse está na sinalização que o filme faz de como o imaginário das populações dos países ricos, especialmente os Estados Unidos, trata a questão climática. Expressamente, considera-se que o mundo pertence aos Estados Unidos, à sua população, ao sistema capitalista e aos seus dirigentes, para dele disporem conforme desejarem. Explico-me.

Nesta crítica, este escriba se permite passar por cima de todo o desenrolar da narrativa para ir direto ao final e analisar a frase que sintetiza todo o conteúdo do filme. Depois da Era Glacial-relâmpago devastar todo o Hemisfério Norte e obrigar a população sobrevivente a se mudar para o sul, o Presidente dos Estados Unidos faz seu discurso. Ele diz algo como: “agradecemos aos países que antigamente chamávamos de Terceiro Mundo por nos acolherem como hóspedes.”

Lida de maneira duplipensada, essa frase quer dizer o seguinte: “nós do Hemisfério Norte exaurimos os recursos do planeta e provocamos o descontrole climático. Com isso, nossos territórios se tornaram inabitáveis, o que fará com que tenhamos que nos mudar para as regiões de clima mais ameno nos trópicos. Portanto, vocês selvagens que habitam essas aprazíveis paragens façam o favor de nos ceder seu sol, sua água e suas florestas. Sejam bonzinhos e se comportem, não criem caso e façam o favor de nos tratar bem, já que nós somos estadunidenses, brancos, cristãos e virtuosos.”

De acordo com uma abordagem superficial do filme, o diretor Roland Emerich estaria sendo crítico da política ambiental do governo Bush, já que ele coloca o personagem de Dennis Quaid numa conferência da ONU (numa Nova Deli sintomaticamente coberta de neve) passando sermão no vice-presidente dos Estados Unidos. No entanto esse aparente criticismo se dissolve como as geleiras ameaçadas pelo aquecimento global, quando o tal vice-presidente, já empossado como presidente, profere a citada frase. Essa frase revela o quanto a perspectiva do filme permanece imperialista.

Nem o diretor nem o público ao qual ele se dirige em qualquer momento deixam de considerar os Estados Unidos como o centro do mundo e sua população como a única cujos interesses merecem ser resguardados. A tragédia humanitária na África, cemitério do imperialismo, corre solta há décadas, matando milhões de pessoas de fome, doenças e guerra. Mas ninguém concede aos africanos o direito de emigrar em massa para escapar desse inferno. Já os estadunidenses podem se apossar em massa do México e do resto da América Latrina como seu espaço vital (“lebensraum”, diria Hitler), já que são os mocinhos da história, tão logo comece a entrar areia (ou melhor, neve), nas engrenagens da locomotiva capitalista. Eles se imaginam como hóspedes bem-quistos por definição, cujo direito de fazer tal migração está de saída assegurado e livre de qualquer contestação.

É claro que o diretor não perderia a oportunidade de fazer piada. Menciona-se que o presidente do México estaria condicionando a permissão para cruzar a fronteira ao perdão da dívida externa. A resposta a tal bravata populista nem sequer é apresentada. É evidente que os estadunidenses tem o direito de cruzar a fronteira e se alojarem onde quiserem. Opor-se a isso significa passar por ridículo. Trata-se de um contraponto cômico ao sentimentalismo do filme.

Por isso consideramos que “O dia depois de amanhã” sinaliza o clima político para as próximas décadas. Com a catástrofe ambiental a caminho, cada vez mais as potências do norte ampliarão suas ingerências no sul. Os países do “terceiro mundo” vão ser obrigados a ceder suas reservas ambientais estratégicas à administração de instituições “responsáveis”. Sob o pretexto de proteger o meio ambiente global, é lógico.

Naturalmente, o filme apresenta os eventos de forma extremamente acelerada, pois do contrário não conseguiria o devido efeito dramático. A chave para entender o significado desse filme está na parábola do sapo fervido. Quando se pega um sapo direto da lagoa e se coloca o animal numa panela de água fervente, o batráquio salta de lá tão rapidamente quanto pode. Quando se coloca o sapo numa panela de água fria, acende-se o fogo e aumenta-se lentamente a temperatura, o simpático anfíbio deixa-se cozinhar em berço esplêndido e morre sem reagir. A humanidade se comporta como o sapo da segunda situação. A temperatura do planeta está subindo lentamente e a catástrofe ambiental que vai nos exterminar se aproxima implacavelmente. Mas o sapo não reage.

O que o filme faz é acelerar a cadeia de eventos de algumas décadas para o espaço de alguns dias. Somente assim as conseqüências se tornam visíveis e se tornam objeto de análise. Ainda que de modo sensacionalista, pois de outra forma não encontraria audiência alguma. A mentalidade globalizada não está preparada para pensar em termos de uma temporalidade estendida. A temporalidade do capital é a das bolsas de valores, dos pregões diários, das variações infinitesimais. A economia perdeu a capacidade de pensar a longo prazo. Os alertas dos ambientalistas, avisando que o sapo está fervendo, são solenemente ignorados, em função da necessidade de preservar a estabilidade dos mercados em Nova York, ou na Conchinchina. Até o dia seguinte

O capital é uma relação social estruturalmente incapaz de se por limites e aceitar um controle racional. A forma como ele se reproduz é pela expansão sempre contínua e ampliada. Depois de se espalhar pela totalidade extensiva da superfície do planeta, incorporando o antigo bloco soviético e a China, ele busca se expandir de forma intensiva, acelerando seu ciclo de produção destrutiva. Os Estados Unidos, apontado como modelo ideal de sociedade pelos propagandistas do sistema, com 5% da população mundial, consomem 20% dos recursos naturais. Se o seu padrão de consumo se expandisse para os restantes 95% da população humana, os recursos naturais teriam que ser consumidos 19 vezes mais rápido. Os eventos mostrados em “O dia depois de amanhã” estariam logo ali na esquina do tempo.

O capital somente pensa em curto prazo, já que, como diz Keynes, um de seus insignes defensores, “a longo prazo estaremos todos mortos”. Estaremos quem, cara pálida? Keynes já morreu, mas nós estamos vivos. E o planeta pertence a todos, não apenas aos donos do capital. Se o sistema capitalista comprova dia a dia sua inviabilidade material, tanto em termos ambientais como humanos, que se substitua o sistema por outra forma de reprodução sociometabólica capaz de equacionar racionalmente as necessidades humanas e os recursos do planeta.

P.S. (Apenas para quem assistiu ao filme):
1. Eu também não queimaria Nietzsche.
2. E viva o Manchester United!!

Daniel M. Delfino

27/05/2004

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