31.5.07

Oriente Médio em chamas




A recente vitória eleitoral do grupo Hamas na Palestina representa um avanço num sentido limitadíssimo: constitui uma excelente piada de humor negro. Mostra ao imperialismo estadunidense e ao governo israelense que seus planos podem sair pela culatra. É um formidável golpe moral nos inimigos do povo palestino, mas dificilmente terá efeitos práticos em favor da resolução dos problemas desse povo.

A Autoridade Nacional Palestina (ANP), para cujo governo o Hamas se habilitou, não é um Estado de fato, pois não possui sequer autonomia financeira. Nem mesmo arrecada impostos. É sustentada financeiramente por Israel, pelos Estados Unidos e pela União Européia. Desde o começo, a ANP foi criada para servir como forma de desmobilizar a resistência palestina nos territórios ocupados, inclusive pela cooptação de seus líderes. Nesse último aspecto, um eloqüente exemplo do seu sucesso é oferecido pela figura de um Ahmed Korei, ex-primeiro ministro da ANP pelo partido Fatah, empresário do ramo de cimento que fornece material para o muro da vergonha que Israel está construindo.

Com lideranças desse tipo, os palestinos não precisam de inimigo. Precisam sim de um Estado de fato, que não será construído enquanto a ANP for financiada pelo imperialismo, o que aliás deve deixar de acontecer caso o Hamas, agora no governo, mantenha seu programa de rejeitar os acordos de Oslo (pelos quais Israel e a OLP reconheceram o direito mútuo à existência), que foram a base legal para a criação da própria ANP. Que o Hamas não reconheça a existência do Estado de Israel pode não ser muito realista, mas com certeza é coerentemente simétrico em relação à postura desse mesmo Estado de Israel, que de sua parte não reconhece o direito ao Estado Palestino.

Ou melhor, reconhece, desde que esse Estado não tenha direito a nenhuma terra fértil e nenhuma fonte de água, pois estes preciosos recursos são de uso privativo das colônias expansionistas fundamentalistas judaicas protegidas pelo muro de Sharon, Korei & Cia. Ou seja, Israel está disposto a reconhecer apenas um Estado palestino que tenha a função prisional de organizar eficazmente a morte de milhões de palestinos por inanição. Qualquer semelhança com os campos de concentração não será mera coincidência.

Se nos territórios ocupados de Gaza e da Cisjordânia os palestinos devem se contentar apenas com a areia do deserto, sorte não muito melhor desfrutam seus compatriotas e correligionários que habitam no próprio território de Israel, onde formam uma massa lumpenizada de sub-cidadãos. Em Israel a cidadania política e o direito à propriedade da terra é conferido com base num critério étnico-confessional: está garantida a todos os judeus e vedada aos árabes por cláusula pétrea da Constituição; mais ou menos como no Reich nazista ou no Apartheid sul-africano.

As leis de segregação racial e as práticas de estrangulamento econômico aplicadas com sanguinária truculência militar tornam o terrorismo das organizações palestinas extremistas uma inevitabilidade. O fato de que esse terrorismo seja materialmente explicável não o torna mais efetivo do ponto de vista da prática e muito menos o torna moralmente justificável. O sacrifício dos homens-bombas da Jihad Islâmica, braço armado do Hamas, não constitui um contrapeso efetivo à repressão militar israelense nos territórios ocupados: não serve para expulsar o inimigo. Mas constitui uma espécie distorcida de contrapeso moral que justifica aos olhos dos israelenses não-fundamentalistas (os fundamentalistas não precisam de justificação moral para sua versão da solução final, já que de seu ponto de vista a terra lhes pertence por mandato divino inscrito na Torá) essa mesma repressão. Distorcida porque embora algumas de suas organizações recorram ao terrorismo, os palestinos como um todo permanecem na condição de vítimas.

Na situação de hoje a utopia de uma Palestina laica e democrática em que possam conviver árabes e judeus em iguais condições de acesso à bens fundamentais como terra e água parece ser um delírio distante, na medida em que as massas israelenses e palestinas permanecem prisioneiras da retórica apocalíptica de grupos políticos de ideologia religiosa fundamentalista capazes de aceitar qualquer coisa, menos a coexistência pacífica com o outro lado.

Uma vez que na concepção de ação política do Hamas não consta o conceito de ação organizada das massas e sim o do sacrifício de vanguardas terroristas, as chances de que o conflito seja encaminhado positivamente diminuem de maneira drástica, independentemente de seu governo ser reconhecido ou não pela “comunidade internacional” (EUA e Israel) e de seus dirigentes capitularem ou não ao sub-Estado burguês da ANP. Do outro lado, as chances de que Israel renuncie ao terrorismo de Estado, sob pressão da parcela de sua população que deseja viver em paz, são também remotas, visto que esse setor está tão mal organizado e mal representado politicamente quanto as massas palestinas.

Na falta de soluções viáveis, segue-se em busca do absurdo. O Hamas já sinalizou com a possibilidade de romper o isolamento da ANP baseando sua gestão no apoio financeiro de outros Estados cuja doutrina estratégica esteja baseada nos mesmos princípios de sua ideologia religiosa fundamentalista, ou seja, o Irã dos aiatolás radioativos. O “eixo do mal” que a propaganda estadunidense tenta forjar a todo custo para justificar sua “guerra ao terror” pode assim ganhar feições materiais concretas (e caricatas) e deixar de ser a ficção que assusta os caipiras que votam em Bush. Uma eventual aliança entre o Hamas e o Irã do presidente Ahmadinejad pode oferecer a oportunidade para o banho de sangue pelo qual os falcões estadunidenses e as SS israelenses tanto anseiam.

A escalada de hostilidade entre os povos de religião muçulmana contra a política imperialista teve mais um capítulo no acirramento das tensões entre o Irã e os Estados Unidos por conta do programa nuclear daquele país. É bastante curioso que ninguém se choque com a clamorosa assimetria no tratamento dado à questão nuclear que envolve países periféricos como o Irã de um lado e potências como os Estados Unidos e Israel de outro. Os Estados Unidos podem ter milhares de ogivas nucleares, e Israel dezenas, sem que por isso as agências das Nações Unidas insistam em inspecionar as instalações de tais países.

Inexplicavelmente, o desarmamento dos Estados Unidos está excluído de qualquer cogitação. E não só o dos Estados Unidos, mas o da Rússia, da França, da Inglaterra, da China, potências que ameaçam o mundo do alto de seus arsenais nucleares. Por que um país pode ter milhares de armas de destruição em massa, sejam nucleares ou químicas, bacteriológicas, etc., impunemente? Que espécie de mandato divino lhes outorgou esse direito de ameaçar a existência do conjunto da humanidade? Por que o Deus estadunidense é melhor que o iraniano?

A explicação não é teológica, mas histórica e política. O assim chamado “choque de civilizações” é um péssimo eufemismo para luta de classes. A religião e a ideologia são como sempre disfarces para as contradições materiais. A divisão internacional do trabalho no sistema do capital global determina papéis bastante precisos para cada país na sustentação de sua problemática funcionalidade. A uns países cabe fornecer petróleo, a outros cabe fabricar armas ao custo de bilhões de dólares, para estocá-las ou eventualmente usar algumas no mister de roubar o petróleo dos primeiros. O Deus cristão e o Alá muçulmano aparentemente tem muito pouco a ver com as exigências da acumulação do capital, mas prestam-se de maneira excelente ao imperativo de valorizar as ações da Halliburton & CIA, bem como a inflar a votação do candidato dos aiatolás.

Tratar o conflito dos países árabes e de religião muçulmana com o imperialismo estadunidense como “conflito de civilizações” equivale a acreditar que as Cruzadas medievais foram travadas com o único e exclusivo objetivo de arrebatar a Terra Santa aos infiéis. Num como noutro caso, há que se verificar as causas materiais subjacentes, ou seja, os interesses prevalecentes na sociedade de classes em cada conjuntura. A possível diferença está em que, na época das Cruzadas medievais, os bárbaros eram os invasores cristãos. A riquíssima e sofisticada Bagdá medieval onde hoje os soldados bárbaros de Bush urinam sobre o Alcorão fazia as capitais européias como Londres, Paris e Roma da época parecerem verdadeiros esgotos. Durante a Idade Média, os reinos árabes, como o de Córdoba na Espanha, eram muito mais civilizados e cultos que qualquer potentado cristão. Praticavam inclusive a tolerância para com cristãos e judeus em seus territórios, inclusive na mesma Palestina que hoje está sendo ignominiosamente recortada por um muro.

A transformação dos árabes e muçulmanos em geral no estereótipo do fanático e no espantalho do terrorista é uma criação do século XX. Se o Islã fosse desde sempre fundamentalista como tem sido apresentado hoje, uma obra como “As mil e uma noites” jamais teria se tornado o patrimônio da cultura árabe que é, com sua moralidade sexual bastante flexível, para se dizer o mínimo. O fundamentalismo islâmico, como fenômeno político, tem poucas décadas de vida. As primeiras revoluções pela modernização dos países muçulmanos, como a da Turquia, na década de 1920, tiveram ideologia laica, burguesa liberal e republicana, ou seja, não apelavam para a religião para mobilizar o povo. No pós-guerra, fortaleceu-se o nacionalismo árabe, parte do movimento global dos países não-alinhados, que de alguma forma tentavam escapar à rígida polarização imposta pela Guerra Fria e estabelecer um campo alternativo. As superpotências não lhes deram essa chance.

Golpes de estado depuseram as lideranças nacionalistas. De Mossadegh em 1953 no Irã a Allende em 1973 no Chile, e alhures, os líderes nacionalistas, burgueses liberais, republicanos, reformistas e socialistas tombaram todos como peças de dominó, conforme esboçavam a ousadia imperdoável de aplicar medidas minimamente soberanas como a nacionalização das riquezas minerais. O resultado do esfacelamento das lideranças burguesas liberais, democráticas, laicas, nacionalistas, populares e socialistas, no universo dos países muçulmanos, foi o fortalecimento das organizações religiosas.

Assim, coube a Komeini derrubar em 1979 o governo títere e corrupto que Estados Unidos impuseram ao Irã em 1953, em nome de uma certa “revolução islâmica”. A derrota do imperialismo naquele país entusiasmou setores da esquerda internacional, mas estes logo tiveram que se haver com a desconcertante prática do regime dos aiatolás de perseguir e exterminar os socialistas naquele país com o mesmo afinco empregado pelo governo anterior do Xá. O sucesso relativo dessa revolução islâmica em devolver a autonomia ao Irã, ao custo do sacrifício de qualquer liberdade democrática ou modernidade cultural, entusiasmou amplos setores das massas árabes. Da Argélia às Filipinas, movimentos políticos inspirados no regime dos aiatolás declararam guerra santa ao ocidente e aos governos títeres que colaboram com o grande satã.

No entanto, mesmo dentro do fundamentalismo, é preciso estabelecer distinções. Há governos fundamentalistas que colaboram com o ocidente, como o da subserviente Arábia Saudita, ou o dos talebãs no Afeganistão, na época da ocupação soviética. Hoje, os talebãs acobertam Osama bin Laden, inimigo dos Estados Unidos, que no entanto pertence à aristocracia saudita! Traçar uma linha que separa os muçulmanos entre fundamentalistas e moderados, e colocar uns na frente anti-ocidental e outros na frente colaboracionista/pró-imperialista é uma simplificação falsificadora que não explica a situação.

As palavras “ocidente” e “oriente”, por sua vez, são designações meramente geográficas, que somente por meio de um certo abuso conceitual se pode tomar como metáfora para recortar realidades político-sociais. Há atraso, ignorância e barbárie, como também há riqueza, tanto no ocidente como no oriente geográficos.

Os muçulmanos não estão se enfrentando com o Ocidente porque são bárbaros, violentos, ignorantes, autoritários, patriarcais, machistas e antidemocráticos. Também há no Ocidente cristão, “civilizado e democrático”, milhões de bárbaros, violentos, ignorantes, autoritários, patriarcais, machistas e antidemocráticos. Se não os houvesse, Bush não teria sido reeleito. Ou da mesma forma, não se teria eleito o partido de direita que governa a Dinamarca, cujo veículo de comunicação, o Jyllands-Posten, publicou as malfadadas e sacrílegas imagens de Maomé.

Muçulmanos não são “monstros por natureza”, nem sua religião é mais primitiva, ou seus valores atrasados, etc. O sinal da explicação está invertido. Eles se tornam manifestantes agressivos dispostos a queimar embaixadas e se sacrificar como homens-bombas porque o próprio Ocidente lhes subtraiu as chances de serem outra coisa. Tais chances foram cortadas no momento em que as promessas da modernização capitalista mostraram não ser outra coisa além de petrodólares para os xeques e miséria para as massas. Os canais pelos quais as massas árabes poderiam organizar democraticamente suas demandas e assumir os governos de seus próprios países foram destruídos pelo próprio “ocidente democrático”, pois a importação de petróleo sempre foi prioritária em relação à exportação de democracia. Quando se permite que os árabes votem, votam no Hamas.

O fato de os muçulmanos estarem se levantando para votar no Hamas, explodir carros-bombas no Iraque ou queimar embaixadas ocidentais mundo afora não tem a ver com o caráter específico da religião islâmica, mas com o papel que essa religião passou a ocupar nessas sociedades dilaceradas pela miséria material, como foco organizador da identidade e da resistência. No ocidente, ninguém se incomodaria com charges sobre Cristo (não a ponto de mobilizações de massa destruírem embaixadas), porque a religião cristã não é mais o fato central da vida da maioria das pessoas. Substituiu-a a religião do dinheiro. Há alguns séculos, Voltaire já dizia que a humanidade seria livre quando se enforcasse o último rei nas tripas do último padre.

Entretanto, as lutas da burguesia contra os reis e os padres libertaram tão somente o capital, que por sua vez acorrentou o proletariado. Antes mesmo que o iluminismo de Voltaire e seus companheiros estivesse mundialmente disseminado, o sistema do capital recobriu o mundo com a sombra de uma nova barbárie. A sobreposição da economia-mundo capitalista sobre sociedades atrasadas não poderia se dar senão debaixo de violentos conflitos. Como disse Hobsbawm, para três quartos da humanidade, a Idade Média acabou nas décadas de 1950 ou 60. Até então, as grandes massas da Ásia, África e interior da América Latina viviam cercadas por um mundo já capitalista, organizado em torno do eixo atlântico-ocidental-cristão, mas protegiam seus modos de vida tradicionais da dissolução trazida pelo Deus dinheiro. Daquela época em diante, a proteção não foi mais suficiente, desfazendo-se a referência da comunidade local, da família, da autoridade religiosa não-fundamentalista, etc.

Toda essa transformação deu-se no intervalo de uma geração. Na impossibilidade de voltar àquele estágio (e não se julga aqui que isso seja o ideal, pois ali já vigoravam o patriarcalismo, o machismo, etc.), e de responder à modernização por meios democráticos e sob controle social, as massas buscam refúgio num passado idealizado. Recorreram a uma versão brutalizada da religião, como fazem muitos favelados brasileiros que “aceitam Jesus” por meio de igrejas neopentecostais fundamentalistas, ou os caipiras estadunidenses que tentam “se proteger” de coisas como o que acontece em Brokeback Mountain votando em puritanos de araque como Bush. Contra a complexidade da vida moderna, nada como a simplicidade maniqueísta da religião.

Nada mais enganoso. As massas miseráveis dos países muçulmanos não estariam convulsionadas num frenesi de violência cega e bárbara se os mesmos países que insultam sua crença religiosa não estivessem também ao mesmo tempo sustentando o sistema sociometabólico do capital global que as condena à sua situação miserável.

Daniel M. Delfino
21/02/2006

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