POLÍCIA PARA QUEM PRECISA DE... POLÍCIA!
No dia 23/10 será realizado um referendo para decidir se a lei brasileira continuará a permitir a venda de armas e munições. O primeiro ponto a ser destacado sobre esse assunto é o aspecto que parece bastante positivo de se trazer a discussão para o conjunto da população sob a forma de referendo. Os mecanismos de democracia direta, como referendos e plebiscitos, deveriam ser um recurso rotineiro para resolução dos problemas da sociedade.
Votações nacionais, estaduais, municipais, distritais, deveriam ser tão freqüentes quanto a missa de domingo ou os diversos cultos a que tanta gente assiste. Assim era na Grécia antiga, berço da democracia. A idéia de democracia direta só é considerada irreal ou utópica porque na nossa sociedade o Shopping Center e a TV substituíram a praça pública como centro da sociabilidade. Vive-se o individualismo e a irresponsabilidade generalizados. Estamos acostumados a não tomar decisões e deixar tudo por conta de pessoas “responsáveis”: os políticos.
Questões que vão desde os tratados e acordos internacionais a que o país está sujeito até a gestão do orçamento público não podem ser deixados ao arbítrio de políticos que são eleitos a cada quatro anos, sobre os quais não se tem qualquer controle. Ainda mais quando se leva em consideração o fato de que as campanhas eleitorais manipulatórias desses políticos são regadas pelo dinheiro ilegal proveniente dos mesmos interesses escusos aos quais suas nebulosas decisões beneficiam. Se o eleitor pudesse optar diretamente pelo uso cotidiano que as instituições públicas devem fazer do seu dinheiro, diminuiria consideravelmente a margem para os desvios do tipo daqueles cuja revelação precipitou a crise política da qual estamos saindo.
Além disso, quando toda a população fosse educada a decidir por si mesma as questões que lhe interessam, a qualidade da política mudaria drasticamente para melhor. O voto obrigatório, essa excrescência peculiar ao sistema eleitoral brasileiro, se tornaria supérfluo. Os eleitores não precisariam ser obrigados a votar se soubessem que o seu voto vale alguma coisa: votariam por opção e conscientemente. O poder dos “políticos” tradicionais seria reduzido praticamente a zero e o conjunto dos cidadãos, de quem verdadeiramente emana o poder político, alcançaria a plenitude do exercício da soberania. Provavelmente, é por isso que tais políticos tradicionais, com o poder que têm em mãos, vetam qualquer possibilidade do livre exercício da iniciativa popular, para preservar o rendoso monopólio de que desfrutam.
Para justificar essa interdição de um legítimo direito popular, usa-se às vezes o pseudo-argumento técnico de que tantas votações seriam muito trabalhosas para as instituições envolvidas. Essa objeção seria válida se não houvesse sistemas, como os dos bancos, ou das loterias, capazes de processar milhões de operações diariamente, com relativa segurança.
Evidentemente, nada é perfeito. É preciso fazer uma ressalva quanto ao tão festejado sistema brasileiro do voto eletrônico. Os programas que rodam nas urnas eletrônicas não são abertos à verificação dos interessados, ou seja, dos eleitores ou dos partidos que disputam as eleições. Sob o argumento de que os programas são protegidos por leis de propriedade intelectual, em benefício das empresas que os desenvolveram, a Justiça Eleitoral impede que os partidos possam verificar a confiabilidade dos resultados obtidos. Para falar diretamente, quem pode garantir que os resultados de uma votação são de fato aqueles que a Justiça Eleitoral divulga? Porque o funcionamento do sistema não pode ser público e transparente? Esconde-se um problema político crucial por trás de uma falsa dificuldade técnica. A pseudo-democracia brasileira, com sua eletrônica de camelô, ainda rasteja numa lamentável pré-história.
Passemos ao caso do referendo propriamente em discussão. Aqui não temos partidos políticos em disputa. Temos frentes parlamentares suprapartidárias levantando argumentos a favor ou contra o desarmamento. Aparentemente, tais parlamentares o fazem em nome da defesa de visões ideológicas distintas que sustentam seus projetos de sociedade. Não deixa de ser curioso que os membros do mesmo Congresso que goza de generalizado descrédito junto à população venham a público discutir assuntos dessa seriedade. Indiretamente, o dinheiro que esses farsantes roubam, pela falta que faz onde deveria ser aplicado, mata mais que qualquer arma de fogo. Políticos que são vistos como criminosos, que deveriam estar na cadeia e com os bens confiscados, estão discutindo medidas de “combate ao crime”. É o cúmulo do cinismo.
Nessa sociedade do espetáculo, tudo é teatro e encenação. O show não pode parar. É preciso ter sempre um novo ato para entreter a audiência. Enquanto não sai a pizza final, algum outro prato deve ser servido como aperitivo. É claro que o referendo não é uma simples armação tirada do bolso do colete para desviar a atenção dos problemas políticos do governo de plantão. A votação já estava prevista há mais de um ano, tendo sido marcada quando da aprovação do estatuto do desarmamento que criou restrições para a posse de armas no Brasil. Em nome desse estatuto já se realizou inclusive uma campanha propondo a entrega voluntária de armas pela população.
Mas é impossível deixar de notar a utilidade providencial do referendo para dar uma trégua a um governo visivelmente combalido. E ainda assim, o tiro pode sair pela culatra, pois uma vitória do “não” no referendo, contra um governo que defende o “sim”, terá o efeito de mais uma derrota política. A derrota estará configurada apesar do fato de não se poder distinguir, no balaio de gatos que constitui as tais frentes parlamentares, quem é governo e quem é oposição. As diferenças entre eles, já se disse e repetiu à exaustão, são de ocasião e não de conteúdo. Numa época em que os partidos não têm mais programa nem projeto de sociedade, os argumentos pelo “sim” ou pelo “não” mobilizam apenas os preconceitos do senso comum, passando longe de tocar nas causas reais dos problemas.
O debate entre o “sim” e o “não” ganha contornos de uma discussão apaixonada, o que impede que se veja o óbvio: para resolver o problema da violência, é preciso acabar com a miséria. Coloca-se o foco da questão nas armas, como se o problema não fosse social. Enquanto houver miseráveis, haverá recrutas de sobra para serem alistados no crime. Mas a miséria é uma questão secular tão arraigada e complexa que já se tornou banal e imperceptível, como se fosse um dado da natureza, inescapável. Para acabar com a miséria, seria preciso alterar toda a estrutura de classes no país. Como isso demandaria uma ou duas revoluções, é mais fácil colocar em discussão as armas de fogo. Mais uma vez, tenta-se resolver um problema material por meio de mais uma lei repressiva ideal. A questão da segurança é mais uma das históricas pendências do Estado para com a população reiteradamente colocadas para debaixo do tapete.
A segurança é mais um dos serviços que inexistem na prática para uma vasta maioria da população. A mesma população que não recebe educação, saúde, habitação, transporte, cultura, lazer, etc., também não recebe segurança (ou melhor, recebe sob a forma de uma polícia fascista, que a trata como a uma raça inimiga). Para que existisse uma polícia realmente capaz de “proteger e servir”, além de uma substancial inversão metodológica nos procedimentos, seria preciso que essa polícia tivesse um efetivo muito maior, muito mais bem pago, melhor preparado, com mais armamento, mais equipamento, mais instalações, melhores condições de trabalho, melhor assessoria, etc., o que só seria possível com mais verbas.
A mesma realidade de sucateamento que grassa nos demais serviços públicos vigora também na polícia. Segurança pública é só mais uma das rubricas do orçamento sujeitas ao implacável contingenciamento de verbas. A mesma panacéia universal da privatização neoliberal que destruiu os serviços públicos precariamente existentes antes mesmo que se generalizassem para o conjunto da população condenou também a polícia à mais vexatória inoperância prática. Essa ideologia é a droga mais perigosa contrabandeada para dentro de nossas fronteiras. Como a polícia não reagiu a tempo, os falsários tomaram de assalto os cofres públicos. Não há outra alternativa inclusive para que a nossa sucateada polícia possa funcionar a não ser deixar de pagar a dívida externa.
É aí que está o perigo do referendo, do ponto de vista do stablishment. Se o povo perceber que há outros tipos de votação além da sistemática eleição de políticos de quatro em quatro anos, pode descobrir que o verdadeiro poder está em suas mãos. Esse é o aspecto positivo do atual referendo a ser desenvolvido e expandido no futuro. Todas as questões fundamentais da sociedade, como a destinação dos recursos públicos, deveriam ser submetidas à consulta popular por mecanismos de democracia direta. Se o Estado alega que há escassez de recursos, seja para segurança ou para qualquer serviço público, é preciso usar os recursos disponíveis nas ações que sejam consideradas mais necessárias. Ou seja, deveria haver uma hierarquia de prioridades no uso do dinheiro público. E essa hierarquia de prioridades deveria ser submetida a plebiscito. Uma opção crucial como a de continuar pagando a dívida externa não poderia ser deixada ao arbítrio de meia dúzia de iluminados “formuladores de política econômica”.
A atual hegemonia desses ridículos garotos de recados de Wall Street sobre o país escancara a vigência de uma feroz ditadura de interesses predatórios por trás de nossa pseudo-democracia representativa. Algumas frases no “Wall Street Journal” tem mais influência sobre as decisões do governo brasileiro do que o clamor de dezenas de milhões de trabalhadores que vegetam no desemprego, no subemprego, na economia informal e têm que viver com salários de fome. Essa porção da população, que representa talvez dois terços do total de brasileiros, deveria ter voz para discutir por exemplo o valor que deveria ter um salário mínimo real. Aquele que, segundo a lei, deveria dar conta de todas as despesas de uma família com alimentação, habitação, vestuário, saúde, educação, transporte e lazer. Evidentemente, ninguém poderia receber menos do que esse salário mínimo.
Sempre haverá alguém para dizer que o país não pode arcar com um salário mínimo desse valor, mas esse alguém comete o erro de esquecer que o país está jogando no lixo mais de R$ 100 bilhões por ano com a dívida externa fraudulenta. Esse alguém é pago para cometer esse erro porque trabalha como comentarista de economia de algum grande jornal, recebendo algumas dezenas de salários-mínimos como pagamento. E esse empedernido gênio das finanças somente alcança tal prestigiosa posição depois de ter sido um tecnocrata da ekipekonômica de algum dos nossos últimos governos vendidos.
Por falar em tecnocratas empedernidos e seus patrões vendidos, se tivéssemos um salário mínimo real, esse valor poderia ser fixado como teto para remuneração dos ocupantes de cargos eletivos. Quem quisesse ganhar mais dinheiro, que fosse para a iniciativa privada. Os cargos públicos deveriam ser deixados apenas para aqueles que estão de fato interessados em servir ao público. Aliás, quem não estivesse interessado em enriquecimento ilícito, deveria ter seu sigilo fiscal e bancário colocado à disposição como pré-condição para ser empossado em quaisquer cargos, para ser verificado no início e ao fim de cada mandato. Afinal, trata-se do dinheiro público. E não só o dinheiro gasto como salário para os ocupantes de cargos públicos, mas todo gasto de cada órgão da União, estados ou municípios deveria ser imediatamente publicado e disponibilizado para verificação de qualquer cidadão.
Enfim, é possível pensar em uma meia dúzia de idéias para plebiscitos e referendos (sobre a ALCA, a base de Alcântara, os transgênicos, etc.) capazes de fazer alguma diferença na realidade, mitigando a brutal desigualdade social, diminuindo a miséria material e espiritual, reduzindo radicalmente o crime e a violência, produzindo verdadeiras revoluções sem dar um tiro sequer. Lidar com os problemas ordenadamente, conforme sua hierarquia estrutural e prioridade lógica é muito trabalhoso, de modo que se torna preferível para os interesses estabelecidos propor soluções paliativas e parciais. O referendo pode se tornar um exemplo positivo, mas pode resultar também num engodo.
O engodo é possível pelo fato de que a população das grandes cidades clama por segurança. O povo assustado exige mais policiamento, mais presídios, mais agilidade da justiça. Mas é preciso perguntar: qual polícia? Qual justiça? Quais presídios? A polícia é fascista. A Justiça é cega, mas sabe discernir muito bem a que classe social pertencem as partes do julgamento. Os presídios são universidades do crime. Certamente não é esse tipo de segurança que a população deseja. Nesse contexto, o desarmamento funciona como mais uma vaga promessa de solução que não se sabe muito bem como funcionaria na prática.
O Brasil é o país no qual tudo funciona apenas pela metade. A lei só vale para metade da população. Metade obedece, metade não obedece. Metade dos contribuintes paga impostos, metade não paga. Metade é punida, metade não é. Metade tem acesso a serviços públicos, metade não tem. Essa divisão, bastante real no plano material, não pode transparecer na auto-imagem do país. Essa auto-imagem não admite fraturas e conflitos, pois pressupõe que os valores da parte “respeitável” da sociedade estão em pleno vigor. Pressupõe um espaço público democrático no qual o debate possa se colocar livremente e o consenso racionalmente obtido possa ser implementado.
Nesse conto de fadas forjado pela rede Globo e pela revista Veja, discute-se o desarmamento. Engodo ou não, o tema se impõe à discussão. A contragosto, é preciso assim ingressar no debate proposto. Passemos a algumas das razões apresentadas pelos dois lados. Aqueles que argumentam pelo “sim” dizem que a maior parte dos crimes são cometidos com armas adquiridas legalmente, que passam para a mão dos criminosos. Os que argumentam pelo “não” dizem que o desarmamento deixaria os criminosos livres para agir sem medo de encontrar cidadãos capazes de se defender.
Estamos aqui no terreno das hipóteses. O fim do comércio legal de armas e munições criaria alguma dificuldade para que os criminosos se abastecessem. E com essa dificuldade, algumas vidas com certeza seriam poupadas. Por outro lado, a dificuldade não seria um impedimento absoluto, pois os criminosos continuariam armados. Os desarmados seriam os cidadãos comuns. Estes não teriam acesso às fontes de contrabando que alimentam o tráfico de armas. Logo, os criminosos poderiam atuar na certeza de que suas vítimas estarão desarmadas.
Para essa última suposição existe porém um contrapeso lógico: os criminosos hoje em ação estão em alguma medida inibidos pela possibilidade de suas vítimas estarem armadas? Até que ponto as armas são um fator de dissuasão eficiente como garantia de segurança? Na verdade os especialistas e autoridades, bem como a experiência empírica, atestam o contrário: em face do crime, o melhor é não reagir. Mesmo que a reação seja bem sucedida, e o hipotético assaltante abatido, o cidadão estaria a partir de então sujeito a represálias do restante da quadrilha.
Temos assim, a favor do “sim” uma certeza e contra o “não” uma dúvida. Mas o debate não pode ser decidido unilateralmente no campo das considerações meramente técnicas. Há uma série de outras variáveis políticas, sociais, históricas, ideológicas, envolvidas na questão, que é preciso ainda considerar.
Os defensores do “sim” esquecem que também há uma grande quantidade de armas “de uso exclusivo” do exército em posse de quadrilhas. Se não houver mais o comércio legal de armas no país, os criminosos vão adquirí-las por contrabando, roubando do exército, da polícia ou trazendo do exterior. E podem até mesmo adquirir armas brasileiras, já que a lei não proíbe a indústria bélica nacional de continuar produzindo e exportando, como já faz com sucesso há algumas décadas. Proibiria apenas a venda dessa produção no mercado interno, o que representa mais uma contradição do projeto do desarmamento. O Brasil proibiria as armas no seu território, mas as venderia ao exterior. Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. Tudo em nome da balança comercial. “Business as usual”.
O que importa é que, com ou sem proibição, as armas vão continuar circulando. Do mesmo modo que as drogas, que também são proibidas, mas nem por isso deixam de ser contrabandeadas. A proibição, tanto no caso das drogas quanto no caso das armas, só serve para aumentar o poder dos contrabandistas que distribuem ilegalmente esses artigos. Aliás, se as drogas não fossem proibidas, não haveria repressão ao contrabando pela polícia, não haveria traficantes armados, não haveria guerra de quadrilhas, não haveria contrabando de armas, não haveria a mesma facilidade para os criminosos atuarem armados e não haveria tantos crimes à mão armada. Talvez, antes de se pensar em proibir o comércio legal de armas, se devesse pensar em legalizar o consumo de drogas.
Nesse caso, provavelmente alguns dos membros das frentes que se propõem a participar desse debate sob o pretexto de estarem discutindo a melhor maneira de lutar contra o crime mudariam de lado. O desarmamento é tradicionalmente visto como uma causa “de esquerda”. O direito ao uso de armas pelo cidadão é tradicionalmente uma bandeira da direita. Ambos os lados passam longe de se envolver numa discussão como a da legalização das drogas. Mas é mais razoável supor que uma tal proposta fere mais profundamente a sensibilidade da direita.
O projeto de sociedade da direita pressupõe a tutela moral do indivíduo pelo Estado. Não se pode permitir que o indivíduo destrua seu próprio corpo por meio do uso de drogas, ou que adote qualquer outro tipo de comportamento autodestrutivo, ou desviante. Práticas sexuais heterodoxas, tatuagens e piercings, etc., tudo isso deveria ser banido. Esses tipos de comportamento ofendem o ideal humano da direita, especialmente o ideal fundamentado na religião.
Curiosamente, a direita que se ofende com sexo, drogas e rock n’ roll não se ofende com o assassinato, pois reivindica o direito de usar armas de fogo em defesa da propriedade. Nessa visão de mundo estruturada em torno de uma cruzada moralista, o maniqueísmo campeia desenfreado. O mal está à espreita por toda parte. Seja o mal provocado pelos vícios que corrompem os bons costumes, seja o mal social materializado na existência do crime. Mas ainda aqui a abordagem não é social e sim individual. Discute-se a questão em termos de um confronto entre os “cidadãos de bem” de um lado e os “bandidos” do outro, como se se tratasse de categorias naturais absolutas. Como se ambos não fossem produtos sociais.
Nessa visão maniqueísta, a maldade faz parte da “natureza humana”. Não são todos os que conseguem conter seus “maus instintos”. E contra os que não conseguem, o cidadão de bem, este ente moralmente superior, deve ter o direito de andar armado. Por via das dúvidas, pois nunca se sabe quando aqueles seres malignos, tarados e drogados vão atacar. É neste ambiente psicológico paranóico que muitos dos defensores do “não” bebem seus argumentos.
Este escriba adianta aqui que também votará pelo “não”, mas não em nome de argumentos como os que foram apresentados acima. Ao se expor aqui essa tentativa de caracterização dos argumentos, isso se fez em busca de uma delimitação política precisa, que supere a forma bidimensional como o debate é apresentado. Se dissemos que o problema é mais complexo do que supõe a simplicidade da pergunta (“sim” ou “não”?), é preciso apresentar os vários aspectos dessa complexidade.
Não se pode por exemplo lidar com a discussão como se fosse uma questão de ser contra ou a favor das armas de fogo em si, enquanto objetos. Em se tratando de princípios, é realmente impossível ser a favor da existência de armas de fogo. A humanidade precisa de ciência, de arte, de amor, não de armas. A existência de um instrumento fabricado com a única exclusividade de matar constitui uma inequívoca expressão da barbárie em que ainda vivemos, não só no Brasil, mas no mundo. É claro que as armas só matam se houver alguém para empunhá-las com disposição assassina. E que se pode matar um ser humano de diversas maneiras, até mesmo com as mãos nuas. Mas nem por isso a existência de uma bilionária indústria global de instrumentos de morte deixa de ser absurda, em face do quadro calamitoso das reais necessidades humanas.
Ainda mais quando consideramos a situação de continentes inteiros, como a África, ou regiões como a periferia das grandes cidades brasileiras, onde a existência de armas constitui o sustentáculo principal para a vigência de uma ordem social bárbara baseada na violência e no medo, monopolizados por bandos armados, opostos ao restante da sociedade em aberto desafio ao Estado.
O contraste se mostra mais aberrante quando, para além das armas de uso pessoal dos traficantes de drogas brasileiros, ou das milícias de contrabandistas de diamantes africanos, observamos a existência de uma produção bélica que tem como clientes os exércitos nacionais: tanques de guerra, aviões de caça, mísseis, etc. Centenas de bilhões de dólares por ano são desperdiçados em instrumentos de destruição. Países armam seus exércitos para guerras que nunca serão travadas. Não serão devido às milhares de armas de destruição em massa, nos arsenais nucleares de algumas dezenas de países, capazes de destruir o planeta centenas de vezes. Armas de destruição em massa que funcionam como uma paradoxal garantia para uma paz precária.
Na ordem internacional, ainda não superamos aquilo que os filósofos liberais chamam de “estado de natureza”, ou seja, um regime em que vigora a força bruta pura e simples. Não há lei alguma acima dos Estados nacionais. Reina o mais puro arbítrio. Mas se por um lado as confrontações do tipo das Guerras Mundiais do século XX se tornaram impossíveis devido à dissuasão nuclear, por outro o fantasma da guerra convencional está mais presente do que nunca. Alguns países, como os Estados Unidos, podem invadir outros sem um pretexto razoável, sem que haja qualquer instância superior que possa impedí-los.
Para entender melhor a questão é preciso deixar o plano dos princípios e passar para o da realidade concreta. Os Estados nacionais não vivem num hipotético estado de natureza contra o qual se poderia opor um “estado civil” global racionalmente constituído. Os Estados nacionais são a expressão política de uma determinada forma histórica de existência social, que vem a ser o capitalismo. O capitalismo global é um sistema estruturado de forma hierárquica e conflitiva. Ou seja, existem, as classes e países dominantes, em conflito com classes e países dominados. É nesse quadro concreto que se movem as forças materiais em ação na realidade, sejam armadas ou não.
Numa sociedade dividida em classes, o desarmamento teria um sentido preciso de aprofundamento da dominação. O Estado moderno não é uma realidade que paira acima da sociedade. Ele existe para proteger interesses determinados. Na medida em que existe para proteger a propriedade privada, o Estado é um instrumento da classe burguesa. Ao contrário do que aprende todo estudante de direito no primeiro ano da faculdade, o bem mais precioso protegido pela lei não é a vida, mas a propriedade privada. Em nome da defesa da propriedade, os agentes armados do Estado usam a força e matam.
No caso do Estado brasileiro, na sua condição de país subordinado, a sua força não é exercida para defender os interesses nacionais contra a opressão do capital global, mas para esmagar a população local. Em nome da continuidade dos negócios em bons termos com a rapinagem globalizada, o Estado brasileiro, por meio de sua polícia, mata trabalhadores sem-terra, prende manifestantes, reprime grevistas, etc. Quando não oprime por ação, o faz por omissão, permitindo que jagunços assassinem lideranças comunitárias, e em seguida acobertando e inocentando agentes (às vezes policiais) e mandantes desses crimes (geralmente grileiros e políticos).
Na atual voga imperialista da globalização, a idéia de projeto nacional foi desfeita e o país foi obrigado a entregar sua administração às forças cegas do mercado. Privatizaram a Amazônia, o subsolo, o petróleo, os minérios, a água, a eletricidade, o Banco Central, as escolas, os hospitais, as estradas, etc. Agora, é a vez de privatizar a polícia. Na pseudo-lógica neoliberal em vigor, quem quiser segurança que pague por ela às empresas privadas que se apressarão em oferecer o serviço. Estamos diante do Estado mínimo, que sabe ter o máximo de eficiência como elemento de repressão.
A única presença do Estado entre os setores mais pobres da população é a da polícia. Trata-se de uma presença extremamente hostil. A polícia entra nas favelas atirando, torturando, espancando, agredindo, humilhando, achacando, abusando da força, matando primeiro e perguntando depois, plantando provas falsas, etc. Para uma imensa maioria da população, isso é o Estado brasileiro. A polícia é inimiga do povo. A relação está envenenada por medo, ódio e desconfiança mútuos.
As raízes dessa relação deturpada estão na estrutura de classes da sociedade brasileira, que determina o caráter do nosso Estado. Mais uma vez, não há como prescindir da História para esclarecer o caso. O aparato de segurança do Estado, desde as Forças Armadas até a PM, foi construído com fins repressivos. O patrono do Exército, Duque de Caxias, foi um carrasco que afogou em sangue as revoltas populares de meados do século passado. De Caxias até hoje, passando por Canudos, revolta da Armada, guerra do Contestado, etc., o exército e a polícia foram treinados e doutrinados para agir contra os pobres, o que em geral significa os negros.
Objetivamente, do ponto de vista dessa população oprimida, a polícia é só mais uma das quadrilhas que atormentam sua existência. Uma quadrilha uniformizada dotada da prerrogativa muito especial de agir com o beneplácito da Justiça, num espúrio conluio com a classe dominante. A polícia pode fazer o que quiser com os negros, pobres e favelados; pode extorquir, torturar, matar, desde que as aparências sejam mantidas, ou seja, desde que os abusos aconteçam na periferia e não contaminem o ambiente da sociedade “respeitável”. Admite-se inclusive que alguns policiais vão a julgamentos de fachada de vez em quando, para mostrar que há repressão aos elementos da “banda podre” da instituição.
Com a possível aprovação do desarmamento, o desequilíbrio de forças será agravado. A população civil não poderá usar armas, mas as empresas de segurança estarão autorizadas a fazê-lo. Logo, o primeiro passo dos grileiros para assegurar o roubo da terra que usurparam será transformar suas milícias particulares de jagunços mercenários em “empresas de segurança” devidamente legalizadas. O Estado terceiriza a repressão. Os sem-terra poderão ser legalmente mortos por agentes particulares, sem que a PM precise se envolver nessa sujeira. E se os sem-terra reclamarem o direito à autodefesa armada que lhes assiste do mesmo modo que aos grileiros, vão ser enquadrados como criminosos.
Indo ainda mais longe, considere-se a realidade da luta de classes mundial e a ofensiva imperialista de recolonização das periferias do sistema. Quando um governo genuinamente popular decidir pela via da democracia direta o não-pagamento da dívida externa, esse governo será prontamente atacado por um golpe da burguesia vendida e escorada no apoio dos marines. Afinal, a “democracia” só vale quando os “respeitáveis” candidatos pré-fabricados do sistema são eleitos com seus programas de governo “responsáveis”. Sobrevindo o golpe anti-popular, fará bastante diferença o fato da população estar armada ou não. Que o diga a resistência iraquiana.
As lutas sociais recrudescem na América Latina e o império está vigilante. Cioso de seus interesses, plantou estrategicamente suas bases militares ao redor do nosso território. Agora, espera receber de presente a boa notícia de que a população do Brasil cogita desarmar-se. Uma dor de cabeça a menos para o Dr. Fantástico da Casa Branca. Nesse cenário de pesadelo, de nada adianta ser contra ou a favor das armas em si. A arma da qual este escriba não abre mão é a independência de pensamento. E o pensamento, já dizia Marx se torna uma força material quando se apodera das massas: a arma da crítica se associa à crítica das armas. Essa é a razão final do voto pelo “não”.
Daniel M. Delfino
23/08/2005
No dia 23/10 será realizado um referendo para decidir se a lei brasileira continuará a permitir a venda de armas e munições. O primeiro ponto a ser destacado sobre esse assunto é o aspecto que parece bastante positivo de se trazer a discussão para o conjunto da população sob a forma de referendo. Os mecanismos de democracia direta, como referendos e plebiscitos, deveriam ser um recurso rotineiro para resolução dos problemas da sociedade.
Votações nacionais, estaduais, municipais, distritais, deveriam ser tão freqüentes quanto a missa de domingo ou os diversos cultos a que tanta gente assiste. Assim era na Grécia antiga, berço da democracia. A idéia de democracia direta só é considerada irreal ou utópica porque na nossa sociedade o Shopping Center e a TV substituíram a praça pública como centro da sociabilidade. Vive-se o individualismo e a irresponsabilidade generalizados. Estamos acostumados a não tomar decisões e deixar tudo por conta de pessoas “responsáveis”: os políticos.
Questões que vão desde os tratados e acordos internacionais a que o país está sujeito até a gestão do orçamento público não podem ser deixados ao arbítrio de políticos que são eleitos a cada quatro anos, sobre os quais não se tem qualquer controle. Ainda mais quando se leva em consideração o fato de que as campanhas eleitorais manipulatórias desses políticos são regadas pelo dinheiro ilegal proveniente dos mesmos interesses escusos aos quais suas nebulosas decisões beneficiam. Se o eleitor pudesse optar diretamente pelo uso cotidiano que as instituições públicas devem fazer do seu dinheiro, diminuiria consideravelmente a margem para os desvios do tipo daqueles cuja revelação precipitou a crise política da qual estamos saindo.
Além disso, quando toda a população fosse educada a decidir por si mesma as questões que lhe interessam, a qualidade da política mudaria drasticamente para melhor. O voto obrigatório, essa excrescência peculiar ao sistema eleitoral brasileiro, se tornaria supérfluo. Os eleitores não precisariam ser obrigados a votar se soubessem que o seu voto vale alguma coisa: votariam por opção e conscientemente. O poder dos “políticos” tradicionais seria reduzido praticamente a zero e o conjunto dos cidadãos, de quem verdadeiramente emana o poder político, alcançaria a plenitude do exercício da soberania. Provavelmente, é por isso que tais políticos tradicionais, com o poder que têm em mãos, vetam qualquer possibilidade do livre exercício da iniciativa popular, para preservar o rendoso monopólio de que desfrutam.
Para justificar essa interdição de um legítimo direito popular, usa-se às vezes o pseudo-argumento técnico de que tantas votações seriam muito trabalhosas para as instituições envolvidas. Essa objeção seria válida se não houvesse sistemas, como os dos bancos, ou das loterias, capazes de processar milhões de operações diariamente, com relativa segurança.
Evidentemente, nada é perfeito. É preciso fazer uma ressalva quanto ao tão festejado sistema brasileiro do voto eletrônico. Os programas que rodam nas urnas eletrônicas não são abertos à verificação dos interessados, ou seja, dos eleitores ou dos partidos que disputam as eleições. Sob o argumento de que os programas são protegidos por leis de propriedade intelectual, em benefício das empresas que os desenvolveram, a Justiça Eleitoral impede que os partidos possam verificar a confiabilidade dos resultados obtidos. Para falar diretamente, quem pode garantir que os resultados de uma votação são de fato aqueles que a Justiça Eleitoral divulga? Porque o funcionamento do sistema não pode ser público e transparente? Esconde-se um problema político crucial por trás de uma falsa dificuldade técnica. A pseudo-democracia brasileira, com sua eletrônica de camelô, ainda rasteja numa lamentável pré-história.
Passemos ao caso do referendo propriamente em discussão. Aqui não temos partidos políticos em disputa. Temos frentes parlamentares suprapartidárias levantando argumentos a favor ou contra o desarmamento. Aparentemente, tais parlamentares o fazem em nome da defesa de visões ideológicas distintas que sustentam seus projetos de sociedade. Não deixa de ser curioso que os membros do mesmo Congresso que goza de generalizado descrédito junto à população venham a público discutir assuntos dessa seriedade. Indiretamente, o dinheiro que esses farsantes roubam, pela falta que faz onde deveria ser aplicado, mata mais que qualquer arma de fogo. Políticos que são vistos como criminosos, que deveriam estar na cadeia e com os bens confiscados, estão discutindo medidas de “combate ao crime”. É o cúmulo do cinismo.
Nessa sociedade do espetáculo, tudo é teatro e encenação. O show não pode parar. É preciso ter sempre um novo ato para entreter a audiência. Enquanto não sai a pizza final, algum outro prato deve ser servido como aperitivo. É claro que o referendo não é uma simples armação tirada do bolso do colete para desviar a atenção dos problemas políticos do governo de plantão. A votação já estava prevista há mais de um ano, tendo sido marcada quando da aprovação do estatuto do desarmamento que criou restrições para a posse de armas no Brasil. Em nome desse estatuto já se realizou inclusive uma campanha propondo a entrega voluntária de armas pela população.
Mas é impossível deixar de notar a utilidade providencial do referendo para dar uma trégua a um governo visivelmente combalido. E ainda assim, o tiro pode sair pela culatra, pois uma vitória do “não” no referendo, contra um governo que defende o “sim”, terá o efeito de mais uma derrota política. A derrota estará configurada apesar do fato de não se poder distinguir, no balaio de gatos que constitui as tais frentes parlamentares, quem é governo e quem é oposição. As diferenças entre eles, já se disse e repetiu à exaustão, são de ocasião e não de conteúdo. Numa época em que os partidos não têm mais programa nem projeto de sociedade, os argumentos pelo “sim” ou pelo “não” mobilizam apenas os preconceitos do senso comum, passando longe de tocar nas causas reais dos problemas.
O debate entre o “sim” e o “não” ganha contornos de uma discussão apaixonada, o que impede que se veja o óbvio: para resolver o problema da violência, é preciso acabar com a miséria. Coloca-se o foco da questão nas armas, como se o problema não fosse social. Enquanto houver miseráveis, haverá recrutas de sobra para serem alistados no crime. Mas a miséria é uma questão secular tão arraigada e complexa que já se tornou banal e imperceptível, como se fosse um dado da natureza, inescapável. Para acabar com a miséria, seria preciso alterar toda a estrutura de classes no país. Como isso demandaria uma ou duas revoluções, é mais fácil colocar em discussão as armas de fogo. Mais uma vez, tenta-se resolver um problema material por meio de mais uma lei repressiva ideal. A questão da segurança é mais uma das históricas pendências do Estado para com a população reiteradamente colocadas para debaixo do tapete.
A segurança é mais um dos serviços que inexistem na prática para uma vasta maioria da população. A mesma população que não recebe educação, saúde, habitação, transporte, cultura, lazer, etc., também não recebe segurança (ou melhor, recebe sob a forma de uma polícia fascista, que a trata como a uma raça inimiga). Para que existisse uma polícia realmente capaz de “proteger e servir”, além de uma substancial inversão metodológica nos procedimentos, seria preciso que essa polícia tivesse um efetivo muito maior, muito mais bem pago, melhor preparado, com mais armamento, mais equipamento, mais instalações, melhores condições de trabalho, melhor assessoria, etc., o que só seria possível com mais verbas.
A mesma realidade de sucateamento que grassa nos demais serviços públicos vigora também na polícia. Segurança pública é só mais uma das rubricas do orçamento sujeitas ao implacável contingenciamento de verbas. A mesma panacéia universal da privatização neoliberal que destruiu os serviços públicos precariamente existentes antes mesmo que se generalizassem para o conjunto da população condenou também a polícia à mais vexatória inoperância prática. Essa ideologia é a droga mais perigosa contrabandeada para dentro de nossas fronteiras. Como a polícia não reagiu a tempo, os falsários tomaram de assalto os cofres públicos. Não há outra alternativa inclusive para que a nossa sucateada polícia possa funcionar a não ser deixar de pagar a dívida externa.
É aí que está o perigo do referendo, do ponto de vista do stablishment. Se o povo perceber que há outros tipos de votação além da sistemática eleição de políticos de quatro em quatro anos, pode descobrir que o verdadeiro poder está em suas mãos. Esse é o aspecto positivo do atual referendo a ser desenvolvido e expandido no futuro. Todas as questões fundamentais da sociedade, como a destinação dos recursos públicos, deveriam ser submetidas à consulta popular por mecanismos de democracia direta. Se o Estado alega que há escassez de recursos, seja para segurança ou para qualquer serviço público, é preciso usar os recursos disponíveis nas ações que sejam consideradas mais necessárias. Ou seja, deveria haver uma hierarquia de prioridades no uso do dinheiro público. E essa hierarquia de prioridades deveria ser submetida a plebiscito. Uma opção crucial como a de continuar pagando a dívida externa não poderia ser deixada ao arbítrio de meia dúzia de iluminados “formuladores de política econômica”.
A atual hegemonia desses ridículos garotos de recados de Wall Street sobre o país escancara a vigência de uma feroz ditadura de interesses predatórios por trás de nossa pseudo-democracia representativa. Algumas frases no “Wall Street Journal” tem mais influência sobre as decisões do governo brasileiro do que o clamor de dezenas de milhões de trabalhadores que vegetam no desemprego, no subemprego, na economia informal e têm que viver com salários de fome. Essa porção da população, que representa talvez dois terços do total de brasileiros, deveria ter voz para discutir por exemplo o valor que deveria ter um salário mínimo real. Aquele que, segundo a lei, deveria dar conta de todas as despesas de uma família com alimentação, habitação, vestuário, saúde, educação, transporte e lazer. Evidentemente, ninguém poderia receber menos do que esse salário mínimo.
Sempre haverá alguém para dizer que o país não pode arcar com um salário mínimo desse valor, mas esse alguém comete o erro de esquecer que o país está jogando no lixo mais de R$ 100 bilhões por ano com a dívida externa fraudulenta. Esse alguém é pago para cometer esse erro porque trabalha como comentarista de economia de algum grande jornal, recebendo algumas dezenas de salários-mínimos como pagamento. E esse empedernido gênio das finanças somente alcança tal prestigiosa posição depois de ter sido um tecnocrata da ekipekonômica de algum dos nossos últimos governos vendidos.
Por falar em tecnocratas empedernidos e seus patrões vendidos, se tivéssemos um salário mínimo real, esse valor poderia ser fixado como teto para remuneração dos ocupantes de cargos eletivos. Quem quisesse ganhar mais dinheiro, que fosse para a iniciativa privada. Os cargos públicos deveriam ser deixados apenas para aqueles que estão de fato interessados em servir ao público. Aliás, quem não estivesse interessado em enriquecimento ilícito, deveria ter seu sigilo fiscal e bancário colocado à disposição como pré-condição para ser empossado em quaisquer cargos, para ser verificado no início e ao fim de cada mandato. Afinal, trata-se do dinheiro público. E não só o dinheiro gasto como salário para os ocupantes de cargos públicos, mas todo gasto de cada órgão da União, estados ou municípios deveria ser imediatamente publicado e disponibilizado para verificação de qualquer cidadão.
Enfim, é possível pensar em uma meia dúzia de idéias para plebiscitos e referendos (sobre a ALCA, a base de Alcântara, os transgênicos, etc.) capazes de fazer alguma diferença na realidade, mitigando a brutal desigualdade social, diminuindo a miséria material e espiritual, reduzindo radicalmente o crime e a violência, produzindo verdadeiras revoluções sem dar um tiro sequer. Lidar com os problemas ordenadamente, conforme sua hierarquia estrutural e prioridade lógica é muito trabalhoso, de modo que se torna preferível para os interesses estabelecidos propor soluções paliativas e parciais. O referendo pode se tornar um exemplo positivo, mas pode resultar também num engodo.
O engodo é possível pelo fato de que a população das grandes cidades clama por segurança. O povo assustado exige mais policiamento, mais presídios, mais agilidade da justiça. Mas é preciso perguntar: qual polícia? Qual justiça? Quais presídios? A polícia é fascista. A Justiça é cega, mas sabe discernir muito bem a que classe social pertencem as partes do julgamento. Os presídios são universidades do crime. Certamente não é esse tipo de segurança que a população deseja. Nesse contexto, o desarmamento funciona como mais uma vaga promessa de solução que não se sabe muito bem como funcionaria na prática.
O Brasil é o país no qual tudo funciona apenas pela metade. A lei só vale para metade da população. Metade obedece, metade não obedece. Metade dos contribuintes paga impostos, metade não paga. Metade é punida, metade não é. Metade tem acesso a serviços públicos, metade não tem. Essa divisão, bastante real no plano material, não pode transparecer na auto-imagem do país. Essa auto-imagem não admite fraturas e conflitos, pois pressupõe que os valores da parte “respeitável” da sociedade estão em pleno vigor. Pressupõe um espaço público democrático no qual o debate possa se colocar livremente e o consenso racionalmente obtido possa ser implementado.
Nesse conto de fadas forjado pela rede Globo e pela revista Veja, discute-se o desarmamento. Engodo ou não, o tema se impõe à discussão. A contragosto, é preciso assim ingressar no debate proposto. Passemos a algumas das razões apresentadas pelos dois lados. Aqueles que argumentam pelo “sim” dizem que a maior parte dos crimes são cometidos com armas adquiridas legalmente, que passam para a mão dos criminosos. Os que argumentam pelo “não” dizem que o desarmamento deixaria os criminosos livres para agir sem medo de encontrar cidadãos capazes de se defender.
Estamos aqui no terreno das hipóteses. O fim do comércio legal de armas e munições criaria alguma dificuldade para que os criminosos se abastecessem. E com essa dificuldade, algumas vidas com certeza seriam poupadas. Por outro lado, a dificuldade não seria um impedimento absoluto, pois os criminosos continuariam armados. Os desarmados seriam os cidadãos comuns. Estes não teriam acesso às fontes de contrabando que alimentam o tráfico de armas. Logo, os criminosos poderiam atuar na certeza de que suas vítimas estarão desarmadas.
Para essa última suposição existe porém um contrapeso lógico: os criminosos hoje em ação estão em alguma medida inibidos pela possibilidade de suas vítimas estarem armadas? Até que ponto as armas são um fator de dissuasão eficiente como garantia de segurança? Na verdade os especialistas e autoridades, bem como a experiência empírica, atestam o contrário: em face do crime, o melhor é não reagir. Mesmo que a reação seja bem sucedida, e o hipotético assaltante abatido, o cidadão estaria a partir de então sujeito a represálias do restante da quadrilha.
Temos assim, a favor do “sim” uma certeza e contra o “não” uma dúvida. Mas o debate não pode ser decidido unilateralmente no campo das considerações meramente técnicas. Há uma série de outras variáveis políticas, sociais, históricas, ideológicas, envolvidas na questão, que é preciso ainda considerar.
Os defensores do “sim” esquecem que também há uma grande quantidade de armas “de uso exclusivo” do exército em posse de quadrilhas. Se não houver mais o comércio legal de armas no país, os criminosos vão adquirí-las por contrabando, roubando do exército, da polícia ou trazendo do exterior. E podem até mesmo adquirir armas brasileiras, já que a lei não proíbe a indústria bélica nacional de continuar produzindo e exportando, como já faz com sucesso há algumas décadas. Proibiria apenas a venda dessa produção no mercado interno, o que representa mais uma contradição do projeto do desarmamento. O Brasil proibiria as armas no seu território, mas as venderia ao exterior. Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. Tudo em nome da balança comercial. “Business as usual”.
O que importa é que, com ou sem proibição, as armas vão continuar circulando. Do mesmo modo que as drogas, que também são proibidas, mas nem por isso deixam de ser contrabandeadas. A proibição, tanto no caso das drogas quanto no caso das armas, só serve para aumentar o poder dos contrabandistas que distribuem ilegalmente esses artigos. Aliás, se as drogas não fossem proibidas, não haveria repressão ao contrabando pela polícia, não haveria traficantes armados, não haveria guerra de quadrilhas, não haveria contrabando de armas, não haveria a mesma facilidade para os criminosos atuarem armados e não haveria tantos crimes à mão armada. Talvez, antes de se pensar em proibir o comércio legal de armas, se devesse pensar em legalizar o consumo de drogas.
Nesse caso, provavelmente alguns dos membros das frentes que se propõem a participar desse debate sob o pretexto de estarem discutindo a melhor maneira de lutar contra o crime mudariam de lado. O desarmamento é tradicionalmente visto como uma causa “de esquerda”. O direito ao uso de armas pelo cidadão é tradicionalmente uma bandeira da direita. Ambos os lados passam longe de se envolver numa discussão como a da legalização das drogas. Mas é mais razoável supor que uma tal proposta fere mais profundamente a sensibilidade da direita.
O projeto de sociedade da direita pressupõe a tutela moral do indivíduo pelo Estado. Não se pode permitir que o indivíduo destrua seu próprio corpo por meio do uso de drogas, ou que adote qualquer outro tipo de comportamento autodestrutivo, ou desviante. Práticas sexuais heterodoxas, tatuagens e piercings, etc., tudo isso deveria ser banido. Esses tipos de comportamento ofendem o ideal humano da direita, especialmente o ideal fundamentado na religião.
Curiosamente, a direita que se ofende com sexo, drogas e rock n’ roll não se ofende com o assassinato, pois reivindica o direito de usar armas de fogo em defesa da propriedade. Nessa visão de mundo estruturada em torno de uma cruzada moralista, o maniqueísmo campeia desenfreado. O mal está à espreita por toda parte. Seja o mal provocado pelos vícios que corrompem os bons costumes, seja o mal social materializado na existência do crime. Mas ainda aqui a abordagem não é social e sim individual. Discute-se a questão em termos de um confronto entre os “cidadãos de bem” de um lado e os “bandidos” do outro, como se se tratasse de categorias naturais absolutas. Como se ambos não fossem produtos sociais.
Nessa visão maniqueísta, a maldade faz parte da “natureza humana”. Não são todos os que conseguem conter seus “maus instintos”. E contra os que não conseguem, o cidadão de bem, este ente moralmente superior, deve ter o direito de andar armado. Por via das dúvidas, pois nunca se sabe quando aqueles seres malignos, tarados e drogados vão atacar. É neste ambiente psicológico paranóico que muitos dos defensores do “não” bebem seus argumentos.
Este escriba adianta aqui que também votará pelo “não”, mas não em nome de argumentos como os que foram apresentados acima. Ao se expor aqui essa tentativa de caracterização dos argumentos, isso se fez em busca de uma delimitação política precisa, que supere a forma bidimensional como o debate é apresentado. Se dissemos que o problema é mais complexo do que supõe a simplicidade da pergunta (“sim” ou “não”?), é preciso apresentar os vários aspectos dessa complexidade.
Não se pode por exemplo lidar com a discussão como se fosse uma questão de ser contra ou a favor das armas de fogo em si, enquanto objetos. Em se tratando de princípios, é realmente impossível ser a favor da existência de armas de fogo. A humanidade precisa de ciência, de arte, de amor, não de armas. A existência de um instrumento fabricado com a única exclusividade de matar constitui uma inequívoca expressão da barbárie em que ainda vivemos, não só no Brasil, mas no mundo. É claro que as armas só matam se houver alguém para empunhá-las com disposição assassina. E que se pode matar um ser humano de diversas maneiras, até mesmo com as mãos nuas. Mas nem por isso a existência de uma bilionária indústria global de instrumentos de morte deixa de ser absurda, em face do quadro calamitoso das reais necessidades humanas.
Ainda mais quando consideramos a situação de continentes inteiros, como a África, ou regiões como a periferia das grandes cidades brasileiras, onde a existência de armas constitui o sustentáculo principal para a vigência de uma ordem social bárbara baseada na violência e no medo, monopolizados por bandos armados, opostos ao restante da sociedade em aberto desafio ao Estado.
O contraste se mostra mais aberrante quando, para além das armas de uso pessoal dos traficantes de drogas brasileiros, ou das milícias de contrabandistas de diamantes africanos, observamos a existência de uma produção bélica que tem como clientes os exércitos nacionais: tanques de guerra, aviões de caça, mísseis, etc. Centenas de bilhões de dólares por ano são desperdiçados em instrumentos de destruição. Países armam seus exércitos para guerras que nunca serão travadas. Não serão devido às milhares de armas de destruição em massa, nos arsenais nucleares de algumas dezenas de países, capazes de destruir o planeta centenas de vezes. Armas de destruição em massa que funcionam como uma paradoxal garantia para uma paz precária.
Na ordem internacional, ainda não superamos aquilo que os filósofos liberais chamam de “estado de natureza”, ou seja, um regime em que vigora a força bruta pura e simples. Não há lei alguma acima dos Estados nacionais. Reina o mais puro arbítrio. Mas se por um lado as confrontações do tipo das Guerras Mundiais do século XX se tornaram impossíveis devido à dissuasão nuclear, por outro o fantasma da guerra convencional está mais presente do que nunca. Alguns países, como os Estados Unidos, podem invadir outros sem um pretexto razoável, sem que haja qualquer instância superior que possa impedí-los.
Para entender melhor a questão é preciso deixar o plano dos princípios e passar para o da realidade concreta. Os Estados nacionais não vivem num hipotético estado de natureza contra o qual se poderia opor um “estado civil” global racionalmente constituído. Os Estados nacionais são a expressão política de uma determinada forma histórica de existência social, que vem a ser o capitalismo. O capitalismo global é um sistema estruturado de forma hierárquica e conflitiva. Ou seja, existem, as classes e países dominantes, em conflito com classes e países dominados. É nesse quadro concreto que se movem as forças materiais em ação na realidade, sejam armadas ou não.
Numa sociedade dividida em classes, o desarmamento teria um sentido preciso de aprofundamento da dominação. O Estado moderno não é uma realidade que paira acima da sociedade. Ele existe para proteger interesses determinados. Na medida em que existe para proteger a propriedade privada, o Estado é um instrumento da classe burguesa. Ao contrário do que aprende todo estudante de direito no primeiro ano da faculdade, o bem mais precioso protegido pela lei não é a vida, mas a propriedade privada. Em nome da defesa da propriedade, os agentes armados do Estado usam a força e matam.
No caso do Estado brasileiro, na sua condição de país subordinado, a sua força não é exercida para defender os interesses nacionais contra a opressão do capital global, mas para esmagar a população local. Em nome da continuidade dos negócios em bons termos com a rapinagem globalizada, o Estado brasileiro, por meio de sua polícia, mata trabalhadores sem-terra, prende manifestantes, reprime grevistas, etc. Quando não oprime por ação, o faz por omissão, permitindo que jagunços assassinem lideranças comunitárias, e em seguida acobertando e inocentando agentes (às vezes policiais) e mandantes desses crimes (geralmente grileiros e políticos).
Na atual voga imperialista da globalização, a idéia de projeto nacional foi desfeita e o país foi obrigado a entregar sua administração às forças cegas do mercado. Privatizaram a Amazônia, o subsolo, o petróleo, os minérios, a água, a eletricidade, o Banco Central, as escolas, os hospitais, as estradas, etc. Agora, é a vez de privatizar a polícia. Na pseudo-lógica neoliberal em vigor, quem quiser segurança que pague por ela às empresas privadas que se apressarão em oferecer o serviço. Estamos diante do Estado mínimo, que sabe ter o máximo de eficiência como elemento de repressão.
A única presença do Estado entre os setores mais pobres da população é a da polícia. Trata-se de uma presença extremamente hostil. A polícia entra nas favelas atirando, torturando, espancando, agredindo, humilhando, achacando, abusando da força, matando primeiro e perguntando depois, plantando provas falsas, etc. Para uma imensa maioria da população, isso é o Estado brasileiro. A polícia é inimiga do povo. A relação está envenenada por medo, ódio e desconfiança mútuos.
As raízes dessa relação deturpada estão na estrutura de classes da sociedade brasileira, que determina o caráter do nosso Estado. Mais uma vez, não há como prescindir da História para esclarecer o caso. O aparato de segurança do Estado, desde as Forças Armadas até a PM, foi construído com fins repressivos. O patrono do Exército, Duque de Caxias, foi um carrasco que afogou em sangue as revoltas populares de meados do século passado. De Caxias até hoje, passando por Canudos, revolta da Armada, guerra do Contestado, etc., o exército e a polícia foram treinados e doutrinados para agir contra os pobres, o que em geral significa os negros.
Objetivamente, do ponto de vista dessa população oprimida, a polícia é só mais uma das quadrilhas que atormentam sua existência. Uma quadrilha uniformizada dotada da prerrogativa muito especial de agir com o beneplácito da Justiça, num espúrio conluio com a classe dominante. A polícia pode fazer o que quiser com os negros, pobres e favelados; pode extorquir, torturar, matar, desde que as aparências sejam mantidas, ou seja, desde que os abusos aconteçam na periferia e não contaminem o ambiente da sociedade “respeitável”. Admite-se inclusive que alguns policiais vão a julgamentos de fachada de vez em quando, para mostrar que há repressão aos elementos da “banda podre” da instituição.
Com a possível aprovação do desarmamento, o desequilíbrio de forças será agravado. A população civil não poderá usar armas, mas as empresas de segurança estarão autorizadas a fazê-lo. Logo, o primeiro passo dos grileiros para assegurar o roubo da terra que usurparam será transformar suas milícias particulares de jagunços mercenários em “empresas de segurança” devidamente legalizadas. O Estado terceiriza a repressão. Os sem-terra poderão ser legalmente mortos por agentes particulares, sem que a PM precise se envolver nessa sujeira. E se os sem-terra reclamarem o direito à autodefesa armada que lhes assiste do mesmo modo que aos grileiros, vão ser enquadrados como criminosos.
Indo ainda mais longe, considere-se a realidade da luta de classes mundial e a ofensiva imperialista de recolonização das periferias do sistema. Quando um governo genuinamente popular decidir pela via da democracia direta o não-pagamento da dívida externa, esse governo será prontamente atacado por um golpe da burguesia vendida e escorada no apoio dos marines. Afinal, a “democracia” só vale quando os “respeitáveis” candidatos pré-fabricados do sistema são eleitos com seus programas de governo “responsáveis”. Sobrevindo o golpe anti-popular, fará bastante diferença o fato da população estar armada ou não. Que o diga a resistência iraquiana.
As lutas sociais recrudescem na América Latina e o império está vigilante. Cioso de seus interesses, plantou estrategicamente suas bases militares ao redor do nosso território. Agora, espera receber de presente a boa notícia de que a população do Brasil cogita desarmar-se. Uma dor de cabeça a menos para o Dr. Fantástico da Casa Branca. Nesse cenário de pesadelo, de nada adianta ser contra ou a favor das armas em si. A arma da qual este escriba não abre mão é a independência de pensamento. E o pensamento, já dizia Marx se torna uma força material quando se apodera das massas: a arma da crítica se associa à crítica das armas. Essa é a razão final do voto pelo “não”.
Daniel M. Delfino
23/08/2005
Nenhum comentário:
Postar um comentário