Os Estados Unidos são um país sem nome. A sua denominação oficial em inglês é U.S.A., sigla de “United States of América”. Mas o que é a “América”? Uma expressão geográfica ou política? Como expressão geográfica, a América designa um continente, ou seja, uma das cinco grandes massas de terras emersas do globo, que abriga em seu interior uma vasta gama de realidades políticas, isto é, de Estados Nacionais. Como expressão política, portanto, a “América” é uma fraude.
O termo “América” no nome dos Estados Unidos tem o dom providencial de obscurecer a distinção entre o geográfico e o político, a serviço da ideologia estadunidista. A América deixa de ser um local definido e passa a ter uma conotação vaga, abstrata, ideal e ideológica. A “América” é uma ideologia. A ideologia estadunidista é a do individualismo e do liberalismo vulgares. A “América” é a terra das oportunidades, onde todo mundo tem vez, qualquer um pode enriquecer, qualquer negócio é negócio (business as usual), tudo se vende e tudo se compra. A fachada reluzente e a vitrine opulenta do mundo capitalista.
Ao proferir a célebre frase “a América para os americanos”, o Presidente dos Estados Unidos James Monroe estava assim reivindicando para o capital estadunidense as antigas possessões coloniais européias no continente, da Patagônia ao Estreito de Bering. O projeto da ALCA estava prefigurado na doutrina Monroe. A ambigüidade geográfico-política na denominação dos Estados Unidos da “América” estabelece um campo simbólico no qual a ideologia do capitalismo estadunidense pode transitar com total liberdade de movimentos e beneficiar-se de uma ilimitada elasticidade conceitual.
Sob o guarda-chuva terminológico do nome “América” em seu sentido mais amplo e mais ambíguo, prospera a ideologia dos Estados Unidos como modelo civilizacional. Os Estados Unidos da América dão esse nome a si mesmos porque consideram natural que o seu modelo de economia, de sociedade e de política seja estendido ao resto do continente. Ou do mundo. Quem poderia não querer ser “americano”?
A “América” é uma federação de 50 Estados. Cada um deles conserva autonomia legislativa e orçamentária. Um mínimo de instituições nacionais, como FED, FBI, FDA, etc., busca estabelecer um conjunto de normas aos quais o capital estadunidense tem de se adequar (embora, é claro, esteja sempre tentando burlar). Essa estrutura é a realização mais aproximada do ideal do Estado mínimo: um mínimo de proteção social e um mínimo de restrições para o capital.
Dentro de cada Estado estadunidense vale tudo. O governador de cada Estado tem poder até sobre a pena de morte (inclusive Schwarzenegger, o Exterminador, para terror da Califórnia). Há Estados que admitem inclusive a poligamia dentro de certas seitas religiosas. Há criminosos que são procurados em um Estado, mas estão livres ao fugir para outro. As obrigações recíprocas são as mínimas possíveis. Os Estados Unidos são uma franquia. Qualquer país pode se associar e se tornar o 51o. Estado. A auto-imagem que os estadunidenses cultivam é mais ou menos a seguinte: “nós somos os melhores porque nos organizamos dessa maneira. Nosso modo de ser é o único natural. Se os outros não são assim, o azar é deles.”
É evidente porém que ninguém mais pode se associar aos Estados Unidos. A ALCA não é a União Européia. No projeto da União Européia está explícita a idéia de criar um gigantesco país artificial. Dentro desse país unificado, as condições sociais tem que ser tanto mais iguais quanto possíveis. Para alcançar essa faixa próxima da igualdade, foram postas em prática políticas redistributivas. Regiões atrasadas como Irlanda, Portugal, Espanha, Grécia, sul da Itália (e até em certa medida a antiga Alemanha Oriental, como parte da Alemanha unificada) receberam grande impulso econômico ao se tornarem parte da União Européia.
Na ALCA não há nenhum projeto desse tipo. Há a proposta de que se aceite a competição econômica com os Estados Unidos, sem nenhuma das garantias que os estadunidenses reservam para si mesmos. A idéia de Livre Comércio é uma fraude escandalosa num continente onde o PIB de um dos países é maior do que o de todos os demais somados. A ALCA é um projeto de anexação econômica e destruição da soberania política. O projeto estadunidense de hegemonia exige a formatação do continente, com a passagem de um rolo compressor institucional.
Pretende-se transformar todos os países em mercados dóceis ao capital estadunidense sem a contrapartida política de uma representatividade nas instituições regulatórias, todas desenhadas segundo o modelo do império. Diz-se que se os países latino-americanos quiserem ser ricos como os Estados Unidos, devem abrir seus mercados aos Estados Unidos. E há quem acredite. Façam o que eu digo, mas não façam o que eu faço. Todos devem ser iguais a eles, ter as mesmas instituições liberais, mas ninguém pode ser realmente igual a eles, ter o mesmo poder de voto. Alguns são sempre mais iguais que os outros.
A ALCA, repita-se, representa tão somente a conclusão do impulso enunciado na doutrina Monroe. Para se contrapor à essa proposta da “América para os americanos”, a palavra “americanos” foi aqui colocada entre aspas, de maneira a acentuar o caráter impróprio dessa denominação. Os habitantes dos Estados Unidos podem ser mais apropriadamente designados como estadunidenses. Americanos, sem aspas, são todos os nativos do continente americano. Se o Brasil faz parte da América, nós somos americanos. Somos tão americanos quanto os habitantes dos Estados Unidos. Se tanto nós como eles somos americanos, como diferenciar uns dos outros? Chamando a eles de estadunidenses e a nós de brasileiros. Não é para isso que servem as palavras? Para dar a cada coisa o seu nome mais exato? Porque nos privar de usar um nome mais apropriado em favor de um nome ambíguo?
O uso abusivo do nome Estados Unidos da “América” e do epíteto de “americanos” para seus habitantes fornece o campo de ambigüidade semântica onde o projeto imperialista encontra legitimidade conceitual. “A América para os americanos” é a América para os Estados Unidos, já que eles mesmos se denominam Estados Unidos da América. Todo habitante dos Estados Unidos é americano, mas nem todo americano é habitante dos Estados Unidos. O uso abusivo do termo “americano” escamoteia essa distinção fundamental. Os americanos que não são habitantes dos Estados Unidos são pseudo-americanos, semi-americanos, americanos “de segunda classe”.
Nega-se assim a nós todos americanos, brasileiros inclusive, o direito de usarmos o nome de americanos. “Americanos” são só eles, os estadunidenses. Mas para que serve ser chamado de americano? Para nós, não serve para nada. Não nos acrescenta nada de mais sermos chamados de americanos. Não adiciona um átomo sequer à nossa dignidade nacional. Mas acrescenta algo aos Estados Unidos. Porque eles, dentre todos os povos do continente, merecem o privilégio de serem chamados de americanos? Porque eles e não qualquer outro povo?
Se é apropriado lhes negar o uso do título de americanos, como este escriba postula aqui, não é para que ganhemos algo reivindicando o título para nós, mas para recusar a eles o ganho de que desfrutam ao usá-lo para si. E porque considero apropriado lhes negar esse título? Por uma questão de reciprocidade. Pelo mesmo motivo em razão do qual foi estabelecida a reciprocidade no tratamento aos turistas estadunidenses no Brasil. Se nós somos fichados ao entrar lá, eles devem ser fichados ao entrar aqui.
Não se trata de uma simples bravata ou de patriotada, mas de uma questão de auto-estima nacional e geopolítica. Se na União Européia as alemães fossem os únicos a se chamar de europeus, isso seria uma União Alemã e não Européia. Coisa que nenhum francês aceitaria, uma vez que a França tem respeito próprio e exercita sua auto-estima nacional. Por que nós brasileiros aceitamos que os estadunidenses se chamem de americanos? Que tipo de mentalidade subalterna admite esse abuso terminológico?
O uso abusivo do título de “americanos” pelos estadunidenses, tal como já se tornou corrente na linguagem coloquial e também na comunicação, lhes dá uma inegável vantagem lingüístico-psicológica, por mais subterrânea que seja. Os estadunidenses já tem muitas vantagens sobre nós. Vantagens econômicas, tecnológicas, militares, diplomáticas, culturais. Não é apropriado conceder-lhes mais essa.
Daniel M. Delfino
21/04/2004
O termo “América” no nome dos Estados Unidos tem o dom providencial de obscurecer a distinção entre o geográfico e o político, a serviço da ideologia estadunidista. A América deixa de ser um local definido e passa a ter uma conotação vaga, abstrata, ideal e ideológica. A “América” é uma ideologia. A ideologia estadunidista é a do individualismo e do liberalismo vulgares. A “América” é a terra das oportunidades, onde todo mundo tem vez, qualquer um pode enriquecer, qualquer negócio é negócio (business as usual), tudo se vende e tudo se compra. A fachada reluzente e a vitrine opulenta do mundo capitalista.
Ao proferir a célebre frase “a América para os americanos”, o Presidente dos Estados Unidos James Monroe estava assim reivindicando para o capital estadunidense as antigas possessões coloniais européias no continente, da Patagônia ao Estreito de Bering. O projeto da ALCA estava prefigurado na doutrina Monroe. A ambigüidade geográfico-política na denominação dos Estados Unidos da “América” estabelece um campo simbólico no qual a ideologia do capitalismo estadunidense pode transitar com total liberdade de movimentos e beneficiar-se de uma ilimitada elasticidade conceitual.
Sob o guarda-chuva terminológico do nome “América” em seu sentido mais amplo e mais ambíguo, prospera a ideologia dos Estados Unidos como modelo civilizacional. Os Estados Unidos da América dão esse nome a si mesmos porque consideram natural que o seu modelo de economia, de sociedade e de política seja estendido ao resto do continente. Ou do mundo. Quem poderia não querer ser “americano”?
A “América” é uma federação de 50 Estados. Cada um deles conserva autonomia legislativa e orçamentária. Um mínimo de instituições nacionais, como FED, FBI, FDA, etc., busca estabelecer um conjunto de normas aos quais o capital estadunidense tem de se adequar (embora, é claro, esteja sempre tentando burlar). Essa estrutura é a realização mais aproximada do ideal do Estado mínimo: um mínimo de proteção social e um mínimo de restrições para o capital.
Dentro de cada Estado estadunidense vale tudo. O governador de cada Estado tem poder até sobre a pena de morte (inclusive Schwarzenegger, o Exterminador, para terror da Califórnia). Há Estados que admitem inclusive a poligamia dentro de certas seitas religiosas. Há criminosos que são procurados em um Estado, mas estão livres ao fugir para outro. As obrigações recíprocas são as mínimas possíveis. Os Estados Unidos são uma franquia. Qualquer país pode se associar e se tornar o 51o. Estado. A auto-imagem que os estadunidenses cultivam é mais ou menos a seguinte: “nós somos os melhores porque nos organizamos dessa maneira. Nosso modo de ser é o único natural. Se os outros não são assim, o azar é deles.”
É evidente porém que ninguém mais pode se associar aos Estados Unidos. A ALCA não é a União Européia. No projeto da União Européia está explícita a idéia de criar um gigantesco país artificial. Dentro desse país unificado, as condições sociais tem que ser tanto mais iguais quanto possíveis. Para alcançar essa faixa próxima da igualdade, foram postas em prática políticas redistributivas. Regiões atrasadas como Irlanda, Portugal, Espanha, Grécia, sul da Itália (e até em certa medida a antiga Alemanha Oriental, como parte da Alemanha unificada) receberam grande impulso econômico ao se tornarem parte da União Européia.
Na ALCA não há nenhum projeto desse tipo. Há a proposta de que se aceite a competição econômica com os Estados Unidos, sem nenhuma das garantias que os estadunidenses reservam para si mesmos. A idéia de Livre Comércio é uma fraude escandalosa num continente onde o PIB de um dos países é maior do que o de todos os demais somados. A ALCA é um projeto de anexação econômica e destruição da soberania política. O projeto estadunidense de hegemonia exige a formatação do continente, com a passagem de um rolo compressor institucional.
Pretende-se transformar todos os países em mercados dóceis ao capital estadunidense sem a contrapartida política de uma representatividade nas instituições regulatórias, todas desenhadas segundo o modelo do império. Diz-se que se os países latino-americanos quiserem ser ricos como os Estados Unidos, devem abrir seus mercados aos Estados Unidos. E há quem acredite. Façam o que eu digo, mas não façam o que eu faço. Todos devem ser iguais a eles, ter as mesmas instituições liberais, mas ninguém pode ser realmente igual a eles, ter o mesmo poder de voto. Alguns são sempre mais iguais que os outros.
A ALCA, repita-se, representa tão somente a conclusão do impulso enunciado na doutrina Monroe. Para se contrapor à essa proposta da “América para os americanos”, a palavra “americanos” foi aqui colocada entre aspas, de maneira a acentuar o caráter impróprio dessa denominação. Os habitantes dos Estados Unidos podem ser mais apropriadamente designados como estadunidenses. Americanos, sem aspas, são todos os nativos do continente americano. Se o Brasil faz parte da América, nós somos americanos. Somos tão americanos quanto os habitantes dos Estados Unidos. Se tanto nós como eles somos americanos, como diferenciar uns dos outros? Chamando a eles de estadunidenses e a nós de brasileiros. Não é para isso que servem as palavras? Para dar a cada coisa o seu nome mais exato? Porque nos privar de usar um nome mais apropriado em favor de um nome ambíguo?
O uso abusivo do nome Estados Unidos da “América” e do epíteto de “americanos” para seus habitantes fornece o campo de ambigüidade semântica onde o projeto imperialista encontra legitimidade conceitual. “A América para os americanos” é a América para os Estados Unidos, já que eles mesmos se denominam Estados Unidos da América. Todo habitante dos Estados Unidos é americano, mas nem todo americano é habitante dos Estados Unidos. O uso abusivo do termo “americano” escamoteia essa distinção fundamental. Os americanos que não são habitantes dos Estados Unidos são pseudo-americanos, semi-americanos, americanos “de segunda classe”.
Nega-se assim a nós todos americanos, brasileiros inclusive, o direito de usarmos o nome de americanos. “Americanos” são só eles, os estadunidenses. Mas para que serve ser chamado de americano? Para nós, não serve para nada. Não nos acrescenta nada de mais sermos chamados de americanos. Não adiciona um átomo sequer à nossa dignidade nacional. Mas acrescenta algo aos Estados Unidos. Porque eles, dentre todos os povos do continente, merecem o privilégio de serem chamados de americanos? Porque eles e não qualquer outro povo?
Se é apropriado lhes negar o uso do título de americanos, como este escriba postula aqui, não é para que ganhemos algo reivindicando o título para nós, mas para recusar a eles o ganho de que desfrutam ao usá-lo para si. E porque considero apropriado lhes negar esse título? Por uma questão de reciprocidade. Pelo mesmo motivo em razão do qual foi estabelecida a reciprocidade no tratamento aos turistas estadunidenses no Brasil. Se nós somos fichados ao entrar lá, eles devem ser fichados ao entrar aqui.
Não se trata de uma simples bravata ou de patriotada, mas de uma questão de auto-estima nacional e geopolítica. Se na União Européia as alemães fossem os únicos a se chamar de europeus, isso seria uma União Alemã e não Européia. Coisa que nenhum francês aceitaria, uma vez que a França tem respeito próprio e exercita sua auto-estima nacional. Por que nós brasileiros aceitamos que os estadunidenses se chamem de americanos? Que tipo de mentalidade subalterna admite esse abuso terminológico?
O uso abusivo do título de “americanos” pelos estadunidenses, tal como já se tornou corrente na linguagem coloquial e também na comunicação, lhes dá uma inegável vantagem lingüístico-psicológica, por mais subterrânea que seja. Os estadunidenses já tem muitas vantagens sobre nós. Vantagens econômicas, tecnológicas, militares, diplomáticas, culturais. Não é apropriado conceder-lhes mais essa.
Daniel M. Delfino
21/04/2004
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