Na série “Darth Vader: a realidade e a fé em Star Wars”, o autor Danilo José Figueiredo faz uma comparação entre os personagens da saga de George Lucas e os personagens da mitologia religiosa ocidental, ou seja, do cristianismo. Para cada personagem da nossa tradição religiosa-cultural corresponderia um personagem de “Star Wars”. De modo geral, considero válidas e penetrantes as comparações estabelecidas. Mas me parece haver um problema justamente na comparação principal. Nessa correspondência, Anakin Skywalker/Darth Vader corresponde a Jesus Cristo. E isso me parece no mínimo problemático.
Antes de mais nada, preciso dizer que o problema não é para mim comparar Jesus à um personagem maligno. Não estou escrevendo para defender Jesus de um sacrilégio. Não sou cristão, não falo em nome de nenhuma igreja, não tenho nenhum afeto especial pela figura de Jesus e não considero ofensiva à minha pessoa a comparação de Jesus com quem quer que seja. Isto posto, o que me interessa é a validade e a precisão conceitual da comparação no que diz respeito à figura de Jesus. Trata-se de um personagem fundamental da cultura ocidental e, portanto, também da minha cultura.
Anakin Skywalker/Darth Vader é de fato o personagem principal da série. Isso está fora de questão. “Star Wars”, episódios I a VI, é a saga de sua queda no mal e de sua redenção. Sendo Jesus de Nazaré, segundo a mitologia cristã, o redentor da humanidade, aquele que lava todos os nossos pecados, a comparação se torna aparentemente válida. Jesus, com seu sacrifício, redime os pecados do mundo, assim como Anakin/Darth Vader, com o seu, restaura o equilíbrio da força.
Dissemos que a comparação é aparentemente válida porque, a nosso ver, ela só se sustenta com o auxílio de algumas distinções fundamentais. Entendemos que o significado atribuído a Jesus não ficou suficientemente claro. Proponho as seguintes distinções como um pilar adicional que julgo necessário para ajudar a sustentar o argumento:
– Distinção entre o Messias judaico e a figura histórica de Jesus.
– Distinção entre a figura de Jesus e o ídolo cristão.
– Semelhanças entre o Messias cristão e o judeu.
Nos dois primeiros itens, faremos uma descrição histórico-conceitual do monoteísmo, do judaísmo, do cristianismo e da figura de Jesus. No terceiro ítem, relacionamos esses conceitos histórico-religiosos com o conteúdo ficcional de Star Wars. E na conclusão, estabelecemos a comparação entre “Anakin/Darth Vader” e “Jesus” no patamar que julgamos adequada.
1. Distinção entre o Messias judaico e a figura histórica de Jesus.
1.1 Características do monoteísmo judeu.
Os judeus foram o primeiro povo monoteísta da Antiguidade (houve a experiência de Akenaton no Egito, mas não prosperou). No monoteísmo judaico, a figura do Deus único não pode ser representada, nem em estátuas, nem em pinturas, nem por palavras. Não se pode sequer saber o nome de Deus. Tudo o que se sabe é o que Ele diz a seu povo sobre si mesmo: “Eu sou Aquele que É”. Essa frase “O que É”, no alfabeto hebraico, se escreve com caracteres equivalentes a YHWH. Era com essa frase que os judeus trabalhavam para se referir a Deus. A pronúncia aproximada desse nome, no alfabeto latino, seria “Javé”. Daí vem, por corruptela, o nome “Jeová” que alguns lhe dão.
O que importa é que o Deus único dos judeus é um deus sem imagem, sem rosto, sem nome. Uma abstração, um conceito mitológico-moral. O Deus judeu é uma idéia. Uma mera idéia. Algo que soava como vago e incompreensível para os demais povos. Dessa aparente fragilidade veio paradoxalmente a força do monoteísmo judeu. Uma idéia não pode ser destruída. As estátuas e imagens podem. No teste da história, o monoteísmo mostrou-se uma invenção genial, dotada de uma eficiência a toda prova.
Os povos politeístas da antiguidade oriental tiveram seus deuses destruídos. No turbilhão de guerras de conquista e reconquista, os ídolos pagãos tombaram esquecidos. O Deus judeu persistiu. Os judeus, um povo pouco numeroso, militarmente e politicamente fraco, enfrentaram em condições francamente desfavoráveis as mesmas peripécias dos outros povos do Oriente Médio. Tiveram seu reino e seu templo destruído e reconstruído mais de uma vez. Mas ao contrário dos demais povos, seu Deus persistiu. Os judeus puderam manter sua fé, porque esta não se baseava num receptáculo material suscetível de ser destruído. Foi relativamente fácil destruir as estátuas dos deuses pagãos, mas apagar uma idéia da mente das pessoas mostrou-se impraticável.
1.2 – Origem do messianismo.
Ninguém, a não ser os historiadores, se lembra de Dagon, de Baal ou de Marduk. Suas estátuas desapareceram. Mas todo mundo conhece Javé. Ou Jeová. Ele tem até testemunhas. Justamente porque ninguém nunca o viu. A idéia persistiu. O homem acredita mais naquilo que não pode ver, no que é um mistério, do que na realidade palpável.
O deus dos judeus não estava em lugar nenhum e estava simultaneamente em toda parte. Estava com eles onde quer que estivessem. O deus judeu, como idéia, manteve os judeus unidos, como povo. Os judeus não tinham um exército, como os assírios, a cultura, como os gregos, nem o direito, como os romanos. Tinham a religião, e apenas isso. Essa era a coluna e o eixo de sua civilização. Em nome dela se definiam, em sua arte e em sua lei. Graças à religião os judeus sobreviveram como civilização.
Paradoxalmente, o deus judeu era ainda um deus com a mesma determinação funcional dos deuses nacionais dos demais povos. Apesar de na essência ser o oposto dos ídolos pagãos, ainda assim era um deus nacional. O Deus único era o deus de um único povo. O deus do povo escolhido. O deus da nação judaica. A sua função, como a das estátuas dos pagãos, era lhes dar a vitória na guerra. Como todos os demais povos, os judeus oravam a seu deus para lhes dar vitórias e conquistas. A tal Terra Prometida é uma terra que, a despeito da promessa, deve ser tomada à força. A Bíblia é o relatório das façanhas desse deus contra os pagãos que oprimiam seu povo eleito. Se a sorte das guerras se mostrava desfavorável, isso acontecia porque o povo havia se afastado do verdadeiro Deus. Esse era o ensinamento dos profetas.
O povo judeu, na época de Jesus, era novamente um povo escravizado. A Judéia havia sido dominada pelos romanos havia quase um século. Na humilhação da escravidão romana, os judeus retomaram com fervor a leitura de seus profetas e neles encontraram a promessa de um Messias, descendente da casa real de Davi, que viria restabelecer o reino de Deus. Ou seja, o reino dos judeus como povo escolhido pelo Deus único, destinado a reinar sobre as demais nações.
O Messias seria um rei-guerreiro que expulsaria os romanos, reconstruiria o templo e submeteria os gentios. No desespero de sua condição colonial abjeta, os judeus construíram o messianismo como protótipo de uma esperança revolucionária capaz de inverter a ordem do mundo e dar tudo de volta aqueles que não tem nada. Quanto mais desesperada é uma situação, maior é a esperança embutida na inversão total dessa situação.
1.3 – Contraste entre Jesus de Nazaré e o Messias.
Os judeus viam a si mesmos como os herdeiros de direito do Deus único. O seu Deus era o único deus verdadeiro, criador de todas as coisas. Mas somente eles, os judeus, seriam abençoados com a posse desse mundo criado por Deus. O deus judeu é também chamado “o deus da aliança”, “o deus de Abraão, Isaac e Jacó”. A aliança é a promessa feita por Deus a esses patriarcas de que seus descendentes possuiriam o mundo. A arrogância desse exclusivismo é tamanha que só encontra paralelo na sua absoluta inviabilidade prática. Os judeus da antiguidade jamais dominariam o mundo, mas consideravam-se destinados a fazê-lo.
O Messias seria o executor desse mandato divino. É interessante que os judeus tivessem uma esperança tanto mais exacerbada pelo Messias quanto mais essa missão se mostrasse concretamente inexeqüível. Na época de Cristo pululavam os agitadores, os pretensos Messias querendo sublevar o povo contra a dominação romana. Tanto fizeram que os romanos, exasperados por essa rebeldia insana, acabaram destruindo Jerusalém, no ano 70 D.C., e impondo aos judeus a Diáspora, ou seja, a expulsão e o exílio de sua terra natal.
Nesse cenário de agitações constantes, os incidentes envolvendo Jesus, sua crucificação inclusive, passaram praticamente despercebidos. Seu impacto material nos primeiros anos e mesmo décadas imediatamente posteriores à crucificação foi praticamente nulo. Os romanos tiveram poucas notícias desse tal Jesus de Nazaré até que seus seguidores começassem a se multiplicar, a ponto de, séculos depois, o cristianismo se tornar a religião mais popular do Império. A classe dominante judaica, uma casta clerical corrompida pela função de administrar o templo, entregou Jesus de bom grado aos romanos, para evitar o risco de um profeta que lhes tirasse o pouco poder que ainda detinha. Esse cuidado acabou sendo inútil, pois os romanos acabaram de fato destruindo o que restava de sua nação.
Assim, Jesus ao mesmo tempo era e não era o Messias esperado. Não era, porque não foi um líder militar, não proclamou a independência da Judéia frente os romanos e não construiu um Império mundial. Mas era, porque sua pregação se estendeu a todo o mundo ocidental. E os seguidores do Deus único se tornaram de fato os dono do mundo.
2 – Contraste entre Jesus de Nazaré e o Cristo dos cristãos.
2.1 – Jesus entre os rabinos.
Jesus de Nazaré era um rabino. Um homem culto, um erudito, apesar de ser filho de um trabalhador braçal. Um judeu pobre podia estudar as escrituras, mas não podia ser sacerdote, pois esse era um privilégio hereditário que preservava o poder político da casta clerical. O clero era uma autoridade instituída distante do povo; os rabinos eram pregadores avulsos, que podiam ou não seguir a linha dos sacerdotes. Os rabinos eram os intérpretes da lei mosaica, escrita na Torá, as sagradas escrituras judaicas. Mas entre os rabinos, Jesus adotava uma postura diferente. Entre os demais rabinos, Jesus era como Sócrates entre os sofistas. Sua interpretação ia direto ao espírito dos textos sagrados, sem se perder em detalhes literais.
A religião judaica era inteiramente prisioneira desses detalhes literais. A observância ritual dos mandamentos era mais importante para a opinião pública do que a vida moral do indivíduo. Era mais importante observar o sábado, lavar as mãos antes das refeições, orar a Deus, sacrificar animais no templo, cumprir os deveres rituais; do que ser de fato um pessoa de bem. Por isso Jesus chamava os sacerdotes e doutores da lei, especialmente os da seita dos fariseus, de hipócritas. Sua moral era uma moral da autenticidade, em contraste com a moral de falsas aparências dos fariseus.
Esse esquema de religião ritualística se prestava a preservar o poder material dos sacerdotes judeus. Como em toda religião primitiva, o clero era a classe que detinha o monopólio do sagrado, daí extraindo seu poder político-econômico. Somente os sacerdotes podiam oficiar os infinitos ritos purificadores, através dos quais cada aspecto da vida cotidiana estava autorizado a fluir. E cobravam por esses ritos. A casta sacerdotal judia vivia da religião, devendo portanto zelar pela observância estrita dos deveres rituais que sua interpretação da lei impunha.
A pregação de Jesus subvertia totalmente esse esquema. Pois para Jesus a bondade de uma pessoa está em seus atos, não em suas palavras e gestos rituais. Para Jesus eram bons os publicanos (cobradores de impostos, a classe mais odiada pelos judeus), as prostitutas, os samaritanos, os leprosos, etc.; porque eram pessoas que agiam bem sem esperar recompensa. E eram maus os sacerdotes, que manipulavam a fé do povo e lhes impunham uma observância ritual vazia.
2.2 – Características da pregação de Jesus.
A fonte de inspiração de Jesus eram as escrituras judaicas. “Não vim destruir a lei”, ele disse, “mas dar-lhe cumprimento”. Jesus interpretava a si mesmo como aquele que iria restabelecer o sentido da lei mosaica e da pregação dos profetas. Moises foi o líder que tirou os judeus da escravidão do Egito (segundo a Bíblia) e recebeu de Deus no Monte Sinai as Tábuas da Lei contendo os Dez Mandamentos. Mandamentos como “não matar”, “não roubar”, “não cobiçar a mulher do próximo”, “não cobiçar a propriedade do próximo”, “não levantar falso testemunho”, etc.. Nada de muito extraordinário. Medidas legislativas básicas, sem as quais qualquer civilização é impossível.
Para Jesus o sentido dessas leis é de que o homem deve agir para com os outros como gostaria que os outros agissem para consigo. Surge daí uma ética do amor, da humildade, da compaixão, do perdão, da caridade. Sentimentos que são sinônimos de cristianismo no seu sentido estrito. O ascetismo moral com o qual Jesus colocou em prática sua própria pregação o tornaram uma figura extremamente simpática e capaz de atrair seguidores apaixonados.
O magnetismo pessoal de Jesus criou em torno de sua figura uma certa agitação. Muitos poderiam ler em sua pregação um chamamento a uma vida autêntica, sem preocupações materiais. “Meu reino não é deste mundo”, ele dizia. Uma vida coletiva sem propriedade e sem rituais era algo que os sacerdotes não poderiam admitir. Por isso condenaram Jesus com um ódio especial.
Mas Jesus vingou-se daqueles que o condenaram com sua ressurreição. Aqui não importa que ele não tenha ressuscitado de fato. Importa que, ao dar sua vida por suas idéias, (como Sócrates), Jesus alimentou a admiração de seus fiéis, que se tornaram mais fiéis após a crucificação (o exemplo de Pedro, que negou três vezes ser seguidor de Jesus, mas depois se tornou pregador e foi ele próprio martirizado). Assim como Jesus realizou metaforicamente a promessa do deus judeus de enviar um Messias; seus seguidores realizaram metaforicamente por meio da fé a promessa de sua ressurreição.
2.3 – Como Jesus se torna o Cristo.
O ato de dar a vida por suas idéias (coroado pelo pedido: “perdoai-os, eles não sabem o que fazem”) tornou Jesus uma figura exemplar da bondade levada ao extremo. O extremo da bondade é a materialização do próprio Deus na terra. Essa figura passou a seduzir a imaginação das camadas mais pobres da população romana. O nome “Cristo” que se lhe apôs é uma palavra grega que significa “o ungido”, ou “o enviado”, ou seja, o enviado por Deus. Jesus passou a ser visto como o Filho de Deus por ter miraculosamente nascido de uma virgem e ressuscitado após a morte; mais do que por sua pregação e exemplificação moral. O sentido mítico-miraculoso e o metafórico-conceitual não se distinguiam na Antiguidade.
O maior responsável pela difusão do mito de Cristo foi um judeu que a princípio perseguia os cristãos, chamado Paulo de Tarso, ou São Paulo. Segundo Paulo, a vinda de Jesus ao mundo passa a ser interpretada como um sinal inequívoco de que Deus existe e nos ama, e nos perdoa. Jesus livra o mundo de seus pecados. Com o seu sacrifício ele exemplifica o máximo de bondade num mundo corrompido. A bondade de Deus é tanta que ele nos envia seu próprio Filho, que dá sua vida por nós. Com isso mostra que o homem pode ser bom e pode ser salvo, e merecer a aprovação de Deus para entrar no reino dos céus.
Agostinho completa o raciocínio incorporando a ele o neo-Platonismo. Jesus realiza a mediação entre o mundo das idéias e o homem. Entre o infinito e o finito. A mediação só pode ser realizada por um ser divino, porém também humano. Um homem capaz de transcender a finitude. Por meio dessa mediação de Jesus, o homem pode se elevar acima de sua natureza degradada e aspirar ao reino dos céus. A natureza do homem é degradada porque o homem escolhe o mal. Deus faz o homem capaz de escolher entre o bem e o mal porque assim ele é mais perfeito do que se fosse criado diretamente propenso ao bem. O dever do homem é escolher o bem tendo a opção de escolher o mal. Assim ele se aproxima de Deus, que é o bem infinito, e se aproxima da superação de sua própria finitude.
Ao mesmo tempo que mantém esse significado moral elevado e abstrato, a promessa da ressurreição de Cristo guarda também um sentido de libertação imediata. Jesus prometeu que ressuscitaria, mas depois disso subiu aos céus. Essa primeira ressurreição serviu apenas para atiçar a esperança de seus seguidores de uma segunda vinda, definitiva, na qual o Salvador viesse para construir o Reino de Deus.
Muitos dos seguidores de Jesus esperavam essa sua segunda ressurreição definitiva logo nos primeiros anos que se seguiram à sua morte. Nas primeiras décadas. Nos primeiros séculos. Continuam esperando até hoje. O Apocalipse, o Fim dos Tempos, o Juízo Final, estavam marcados para acontecerem a qualquer momento, desde o século I. Nessa espera, os primeiros cristãos fundiram a espera messiânica judaica à promessa de Cristo de um reino de Deus.
2.4 – O cristianismo e a Idade das Trevas.
O mundo greco-romano era um mundo dominado por um sentimento trágico da vida. As tragédias gregas eram a forma máxima de arte não por acaso. Os deuses eram bons ou maus aleatoriamente, ao sabor de suas paixões. Eram volúveis e inconstantes. O destino era incerto, e o homem era seu prisioneiro irremediável. Não havia fugir ao destino; era mister consultar os oráculos para ao menos saber algo sobre o futuro que pudesse dar paz ao espírito. A vida humana não tinha sentido transcendente e a finitude material era seu limite intransponível.
Nesse cenário irrompe o cristianismo com a promessa de um deus benevolente que nos ama. Esse era o conteúdo da pregação dos apóstolos. Deus nos ama e enviou seu filho único para nos salvar. Exatamente por isso as pregações de Jesus a seus discípulos eram chamadas de “Evangelho”, palavra grega que significa “Boa Notícia”. A boa notícia que os pregadores espalhavam era a existência desse deus e de seu filho capaz de dar a vida por nós.
Essa boa notícia era extremamente sedutora, pois consolava os pobres de suas misérias e os ricos de seu vazio. O mundo passava a ter um sentido. A Encarnação do Verbo em Cristo passava a ser o marco fundador de uma História da humanidade entendida como uma narrativa. Um evento único em relação ao qual há um antes e um depois que são completamente diferentes. O passado, o presente e o futuro ganham um sentido referido ao plano de Deus para o homem.
Para chegar ao reino dos céus, o homem deve ser obediente aos seus representantes na terra. Daí vem o poder da Igreja. Aí começa a transformação do supremo bem no seu exato oposto. O cristianismo, que era uma promessa de libertação das dores do mundo (ainda que vaga e transcendente), se transforma na própria escravidão por obra da Igreja. A Igreja católica acaba procedendo para com o cristianismo da mesma forma que o clero judaico do tempo de Jesus procedeu com o ensinamento de Moisés. Ou seja, transformaram a religião numa observância exterior de ritos e sacramentos.
Em nome dessa religião exterior nominalmente cristã a Igreja e os governantes cristãos passaram a empreender a conquista do mundo pagão com as armas da força e da violência, pondo em prática o exato oposto daquilo que Jesus pregava.
3 – Semelhanças entre o messianismo cristão e o judeu.
Com Jesus o monoteísmo se torna transcendente. A promessa de felicidade fica adiada para um outro reino, o reino de Deus. Jesus falava de um mundo em que todos viveriam segundo as leis de Deus, tais como ele as entendia. A espera desse mundo se tornou a matéria prima para um outro tipo de messianismo. O cristianismo herdou a promessa do judaísmo de que o seu Deus governaria o mundo. A dinâmica do messianismo judaico transmutou-se em um novo messianismo cristão. O Messias foi e prossegue sendo a fonte de esperança de judeus e cristãos, assim como Anakin, antes de se tornar Darth Vader, era a esperança de que o equilíbrio fosse restaurado à força. E como, depois do Império, Luke Skywalker era a Nova Esperança de que a luz viesse a prevalecer.
Em nome do Messias, judeus e cristãos empreenderam guerras infinitas. O exclusivismo judeu, sua crença de serem o povo escolhido, os levou a intermináveis conflitos na Antiguidade. Levou-os a serem perseguidos, ironicamente, pelos próprios cristãos. Leva-os a se tornarem párias da comunidade internacional por sua política fascista contra os palestinos. Não envolveremos o islamismo nesse imbróglio, já suficientemente complexo, pois o islamismo não tem um Messias e sim um profeta.
O cristianismo, por sua vez, serviu de justificativa para inesgotáveis atos de barbárie ao longo da história. Podemos citar as Cruzadas, a Inquisição, a perseguição aos hereges, as guerras entre católicos e protestantes, a escravidão de negros, o genocídio dos índios, a conquista imperialista da África e da Ásia em nome da “civilização”, etc. Nesse aspecto, o cristianismo realizou no nosso mundo o que o Império realizou numa galáxia muito distante. E Darth Vader era a face desse império, assim como o crucificado era a imagem do Ocidente.
A Era Cristã fica assim correspondendo ao período intermediário entre as duas trilogias de Star Wars, entre o episódio III e o IV. Nesse período, o Império vigorou com toda força e a vitória dos rebeldes pendeu de um tênue fio de esperança. Assim como no nosso mundo, a semelhança entre os ideais cristãos e o mundo cristianizado desapareceu quase totalmente. A exceção ficou por conta da vivência prática de figuras isoladas. Como um Gandhi por exemplo, que não era cristão nominalmente, mas o era inegavelmente em sua vida prática.
Há quem diga que o socialismo foi uma secularização do messianismo cristão, com a sua esperança de um reino de abundância, paz e felicidade na Terra. Mas isso é assunto para uma outra série de artigos ainda a ser escrita... (não por mim...)
4 – Conclusão
O intervalo entre a ascensão de Anakin Skywalker e a de seu filho corresponde ao intervalo entre a primeira vinda de Cristo e a segunda, que ainda não se concretizou, salvo engano meu. Ou seja, o intervalo histórico inteiro conhecido como Era Cristã. Os últimos dois mil anos da história da Humanidade. George Lucas menciona uma profecia a respeito da necessidade de um Jedi especial trazer o equilíbrio à força. Algo como uma união entre os opostos. Essa profecia corresponde à interpretação de Hegel da história e da função do cristianismo. Para Hegel a encarnação do Verbo em Cristo era a própria imagem do Espírito Absoluto vindo ao mundo como carne para conhecer a si mesmo. A Encarnação do Verbo completa a síntese dialética dos opostos, assim como a trajetória de Anakin/Darth Vader.
O Espírito habita a matéria, de um lado; do outro, o lado negro e o lado luminoso da força se misturam. A ascensão de Darth Vader parece ter sido um passo necessário na fenomenologia dialética da força. O lado negro e o luminoso conviveram numa mesma pessoa, que assim realizou em si uma espécie de síntese concreta da totalidade do processo. A trajetória de Anakin/Darth Vader é rica em peripécias dramáticas, que constituem o próprio conteúdo da saga.
As trajetória de Jesus e de sua figura messiânica dentro da história do cristianismo se dissolvem num lento submergir e ressurgir históricos, no qual o equilíbrio ainda está a espera de ser encontrado. A imagem do Messias/Salvador surge a partir do Jesus histórico, mas torna-se a própria imagem do mal pelas mãos de seus seguidores. Ainda esperamos uma segunda vinda de Cristo para colocar as coisas no lugar. Anakin Skywalker surge como discípulo do lado luminoso da força, mas passa para o lado negro e se torna seu maior agente. No universo de Star Wars, foi o filho de Anakin que restabeleceu as coisas no lugar.
Assim, Anakin/Darth Vader corresponde a Jesus, se este for definido mais em relação à uma imagem abrangente e totalizadora do Messias Judaico-Cristão e menos em relação à figura histórica de Jesus de Nazaré.
P.S. Em tempo: não sou judeu, nem cristão, nem muçulmano, nem budista, nem umbandista. Nem Jedi. Sou corintiano.
Daniel M. Delfino
13/11/2003
P.S. Filmes comentados:
Nome original: Star wars: episode I – the phantom menace
Produção: Estados Unidos
Ano: 1999
Idiomas: Inglês
Diretor: George Lucas
Roteiro: Goerge Lucas
Elenco: Liam Neeson, Ewan McGregor, Natalie Portman, Jake Lloyd, Pernilla August, Frank Oz, Ian McDiarmid, Jimmy Smits, Oliver Ford Davies, Ray Park, Ahmed Best
Gênero: ação, aventura, fantasia, ficção científica
Nome original: Star wars: episode II – attack of the clones
Produção: Estados Unidos
Ano: 2002
Idiomas: Inglês
Diretor: George Lucas
Roteiro: George Lucas
Elenco: Ewan McGregor, Natalie Portman, Hayden Christensen, Christopher Lee, Samuel L. Jackson, Frank Oz, Jimmy Smits, Ian McDiarmid, Pernilla August, Ahmed Best
Gênero: ação, aventura, mistério, romance, fantasia, ficção científica
Nome original: Star wars: episode III – revenge of the Sith
Produção: Estados Unidos
Ano: 2005
Idiomas: Inglês
Diretor: George Lucas
Roteiro: George Lucas
Elenco: Ewan McGregor, Natalie Portman, Hayden Christensen, Ian McDiarmid, Samuel L. Jackson, Jimmy Smits, Frank Oz, Christopher Lee, Keisha Castle-Hughes
Gênero: ação, aventura, fantasia, ficção científica
Nome original: Star wars: episode IV – a new hope
Produção: Estados Unidos
Ano: 1977
Idiomas: Inglês
Diretor: George Lucas
Roteiro: George Lucas
Elenco: Mark Hamill, Harrison Ford, Carrie Fisher, Peter Cushing, Alec Guinness, Anthony Daniels, Kenny Baker, Peter Mayhew, David Prowse e James Earl Jones como Dath Vader, Phil Brown
Gênero: ação, aventura, família, fantasia, ficção científica
Nome original: Star wars: episode V – the empire strikes back
Produção: Estados Unidos
Ano: 1980
Idiomas: Inglês
Diretor: Irvin Kershner
Roteiro: George Lucas, Leigh Brackett
Elenco: Mark Hamill, Harison Ford, Carrie Fisher, Billy Dee Williams, Anthony Daniels, Kenny Baker, David Prowse, Peter Mayhew, Frank Oz, Alec Guinnes, Jeremy Bulloch, John Hollis, Jack Purvis, Des Webb, Clive Revill
Gênero: ação, aventura, fantasia, ficção científica
Nome original: Star wars: episode VI – the return of the jedi
Produção: Estados Unidos
Ano: 1983
Idiomas: Inglês
Diretor: Richard Marquand
Roteiro: George Lucas, Lawrence Kasdan
Elenco: Mark Hamill, Harison Ford, Carrie Fisher, Billy Dee Williams, Anthony Daniels, Kenny Baker, David Prowse, Peter Mayhew, Sebastian Shaw, Ian McDiarmid, Frank Oz, James Earl Jones, Alec Guinnes, Michael Pennington, Kenneth Colley
Gênero: ação, aventura, fantasia, ficção científica
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
Antes de mais nada, preciso dizer que o problema não é para mim comparar Jesus à um personagem maligno. Não estou escrevendo para defender Jesus de um sacrilégio. Não sou cristão, não falo em nome de nenhuma igreja, não tenho nenhum afeto especial pela figura de Jesus e não considero ofensiva à minha pessoa a comparação de Jesus com quem quer que seja. Isto posto, o que me interessa é a validade e a precisão conceitual da comparação no que diz respeito à figura de Jesus. Trata-se de um personagem fundamental da cultura ocidental e, portanto, também da minha cultura.
Anakin Skywalker/Darth Vader é de fato o personagem principal da série. Isso está fora de questão. “Star Wars”, episódios I a VI, é a saga de sua queda no mal e de sua redenção. Sendo Jesus de Nazaré, segundo a mitologia cristã, o redentor da humanidade, aquele que lava todos os nossos pecados, a comparação se torna aparentemente válida. Jesus, com seu sacrifício, redime os pecados do mundo, assim como Anakin/Darth Vader, com o seu, restaura o equilíbrio da força.
Dissemos que a comparação é aparentemente válida porque, a nosso ver, ela só se sustenta com o auxílio de algumas distinções fundamentais. Entendemos que o significado atribuído a Jesus não ficou suficientemente claro. Proponho as seguintes distinções como um pilar adicional que julgo necessário para ajudar a sustentar o argumento:
– Distinção entre o Messias judaico e a figura histórica de Jesus.
– Distinção entre a figura de Jesus e o ídolo cristão.
– Semelhanças entre o Messias cristão e o judeu.
Nos dois primeiros itens, faremos uma descrição histórico-conceitual do monoteísmo, do judaísmo, do cristianismo e da figura de Jesus. No terceiro ítem, relacionamos esses conceitos histórico-religiosos com o conteúdo ficcional de Star Wars. E na conclusão, estabelecemos a comparação entre “Anakin/Darth Vader” e “Jesus” no patamar que julgamos adequada.
1. Distinção entre o Messias judaico e a figura histórica de Jesus.
1.1 Características do monoteísmo judeu.
Os judeus foram o primeiro povo monoteísta da Antiguidade (houve a experiência de Akenaton no Egito, mas não prosperou). No monoteísmo judaico, a figura do Deus único não pode ser representada, nem em estátuas, nem em pinturas, nem por palavras. Não se pode sequer saber o nome de Deus. Tudo o que se sabe é o que Ele diz a seu povo sobre si mesmo: “Eu sou Aquele que É”. Essa frase “O que É”, no alfabeto hebraico, se escreve com caracteres equivalentes a YHWH. Era com essa frase que os judeus trabalhavam para se referir a Deus. A pronúncia aproximada desse nome, no alfabeto latino, seria “Javé”. Daí vem, por corruptela, o nome “Jeová” que alguns lhe dão.
O que importa é que o Deus único dos judeus é um deus sem imagem, sem rosto, sem nome. Uma abstração, um conceito mitológico-moral. O Deus judeu é uma idéia. Uma mera idéia. Algo que soava como vago e incompreensível para os demais povos. Dessa aparente fragilidade veio paradoxalmente a força do monoteísmo judeu. Uma idéia não pode ser destruída. As estátuas e imagens podem. No teste da história, o monoteísmo mostrou-se uma invenção genial, dotada de uma eficiência a toda prova.
Os povos politeístas da antiguidade oriental tiveram seus deuses destruídos. No turbilhão de guerras de conquista e reconquista, os ídolos pagãos tombaram esquecidos. O Deus judeu persistiu. Os judeus, um povo pouco numeroso, militarmente e politicamente fraco, enfrentaram em condições francamente desfavoráveis as mesmas peripécias dos outros povos do Oriente Médio. Tiveram seu reino e seu templo destruído e reconstruído mais de uma vez. Mas ao contrário dos demais povos, seu Deus persistiu. Os judeus puderam manter sua fé, porque esta não se baseava num receptáculo material suscetível de ser destruído. Foi relativamente fácil destruir as estátuas dos deuses pagãos, mas apagar uma idéia da mente das pessoas mostrou-se impraticável.
1.2 – Origem do messianismo.
Ninguém, a não ser os historiadores, se lembra de Dagon, de Baal ou de Marduk. Suas estátuas desapareceram. Mas todo mundo conhece Javé. Ou Jeová. Ele tem até testemunhas. Justamente porque ninguém nunca o viu. A idéia persistiu. O homem acredita mais naquilo que não pode ver, no que é um mistério, do que na realidade palpável.
O deus dos judeus não estava em lugar nenhum e estava simultaneamente em toda parte. Estava com eles onde quer que estivessem. O deus judeu, como idéia, manteve os judeus unidos, como povo. Os judeus não tinham um exército, como os assírios, a cultura, como os gregos, nem o direito, como os romanos. Tinham a religião, e apenas isso. Essa era a coluna e o eixo de sua civilização. Em nome dela se definiam, em sua arte e em sua lei. Graças à religião os judeus sobreviveram como civilização.
Paradoxalmente, o deus judeu era ainda um deus com a mesma determinação funcional dos deuses nacionais dos demais povos. Apesar de na essência ser o oposto dos ídolos pagãos, ainda assim era um deus nacional. O Deus único era o deus de um único povo. O deus do povo escolhido. O deus da nação judaica. A sua função, como a das estátuas dos pagãos, era lhes dar a vitória na guerra. Como todos os demais povos, os judeus oravam a seu deus para lhes dar vitórias e conquistas. A tal Terra Prometida é uma terra que, a despeito da promessa, deve ser tomada à força. A Bíblia é o relatório das façanhas desse deus contra os pagãos que oprimiam seu povo eleito. Se a sorte das guerras se mostrava desfavorável, isso acontecia porque o povo havia se afastado do verdadeiro Deus. Esse era o ensinamento dos profetas.
O povo judeu, na época de Jesus, era novamente um povo escravizado. A Judéia havia sido dominada pelos romanos havia quase um século. Na humilhação da escravidão romana, os judeus retomaram com fervor a leitura de seus profetas e neles encontraram a promessa de um Messias, descendente da casa real de Davi, que viria restabelecer o reino de Deus. Ou seja, o reino dos judeus como povo escolhido pelo Deus único, destinado a reinar sobre as demais nações.
O Messias seria um rei-guerreiro que expulsaria os romanos, reconstruiria o templo e submeteria os gentios. No desespero de sua condição colonial abjeta, os judeus construíram o messianismo como protótipo de uma esperança revolucionária capaz de inverter a ordem do mundo e dar tudo de volta aqueles que não tem nada. Quanto mais desesperada é uma situação, maior é a esperança embutida na inversão total dessa situação.
1.3 – Contraste entre Jesus de Nazaré e o Messias.
Os judeus viam a si mesmos como os herdeiros de direito do Deus único. O seu Deus era o único deus verdadeiro, criador de todas as coisas. Mas somente eles, os judeus, seriam abençoados com a posse desse mundo criado por Deus. O deus judeu é também chamado “o deus da aliança”, “o deus de Abraão, Isaac e Jacó”. A aliança é a promessa feita por Deus a esses patriarcas de que seus descendentes possuiriam o mundo. A arrogância desse exclusivismo é tamanha que só encontra paralelo na sua absoluta inviabilidade prática. Os judeus da antiguidade jamais dominariam o mundo, mas consideravam-se destinados a fazê-lo.
O Messias seria o executor desse mandato divino. É interessante que os judeus tivessem uma esperança tanto mais exacerbada pelo Messias quanto mais essa missão se mostrasse concretamente inexeqüível. Na época de Cristo pululavam os agitadores, os pretensos Messias querendo sublevar o povo contra a dominação romana. Tanto fizeram que os romanos, exasperados por essa rebeldia insana, acabaram destruindo Jerusalém, no ano 70 D.C., e impondo aos judeus a Diáspora, ou seja, a expulsão e o exílio de sua terra natal.
Nesse cenário de agitações constantes, os incidentes envolvendo Jesus, sua crucificação inclusive, passaram praticamente despercebidos. Seu impacto material nos primeiros anos e mesmo décadas imediatamente posteriores à crucificação foi praticamente nulo. Os romanos tiveram poucas notícias desse tal Jesus de Nazaré até que seus seguidores começassem a se multiplicar, a ponto de, séculos depois, o cristianismo se tornar a religião mais popular do Império. A classe dominante judaica, uma casta clerical corrompida pela função de administrar o templo, entregou Jesus de bom grado aos romanos, para evitar o risco de um profeta que lhes tirasse o pouco poder que ainda detinha. Esse cuidado acabou sendo inútil, pois os romanos acabaram de fato destruindo o que restava de sua nação.
Assim, Jesus ao mesmo tempo era e não era o Messias esperado. Não era, porque não foi um líder militar, não proclamou a independência da Judéia frente os romanos e não construiu um Império mundial. Mas era, porque sua pregação se estendeu a todo o mundo ocidental. E os seguidores do Deus único se tornaram de fato os dono do mundo.
2 – Contraste entre Jesus de Nazaré e o Cristo dos cristãos.
2.1 – Jesus entre os rabinos.
Jesus de Nazaré era um rabino. Um homem culto, um erudito, apesar de ser filho de um trabalhador braçal. Um judeu pobre podia estudar as escrituras, mas não podia ser sacerdote, pois esse era um privilégio hereditário que preservava o poder político da casta clerical. O clero era uma autoridade instituída distante do povo; os rabinos eram pregadores avulsos, que podiam ou não seguir a linha dos sacerdotes. Os rabinos eram os intérpretes da lei mosaica, escrita na Torá, as sagradas escrituras judaicas. Mas entre os rabinos, Jesus adotava uma postura diferente. Entre os demais rabinos, Jesus era como Sócrates entre os sofistas. Sua interpretação ia direto ao espírito dos textos sagrados, sem se perder em detalhes literais.
A religião judaica era inteiramente prisioneira desses detalhes literais. A observância ritual dos mandamentos era mais importante para a opinião pública do que a vida moral do indivíduo. Era mais importante observar o sábado, lavar as mãos antes das refeições, orar a Deus, sacrificar animais no templo, cumprir os deveres rituais; do que ser de fato um pessoa de bem. Por isso Jesus chamava os sacerdotes e doutores da lei, especialmente os da seita dos fariseus, de hipócritas. Sua moral era uma moral da autenticidade, em contraste com a moral de falsas aparências dos fariseus.
Esse esquema de religião ritualística se prestava a preservar o poder material dos sacerdotes judeus. Como em toda religião primitiva, o clero era a classe que detinha o monopólio do sagrado, daí extraindo seu poder político-econômico. Somente os sacerdotes podiam oficiar os infinitos ritos purificadores, através dos quais cada aspecto da vida cotidiana estava autorizado a fluir. E cobravam por esses ritos. A casta sacerdotal judia vivia da religião, devendo portanto zelar pela observância estrita dos deveres rituais que sua interpretação da lei impunha.
A pregação de Jesus subvertia totalmente esse esquema. Pois para Jesus a bondade de uma pessoa está em seus atos, não em suas palavras e gestos rituais. Para Jesus eram bons os publicanos (cobradores de impostos, a classe mais odiada pelos judeus), as prostitutas, os samaritanos, os leprosos, etc.; porque eram pessoas que agiam bem sem esperar recompensa. E eram maus os sacerdotes, que manipulavam a fé do povo e lhes impunham uma observância ritual vazia.
2.2 – Características da pregação de Jesus.
A fonte de inspiração de Jesus eram as escrituras judaicas. “Não vim destruir a lei”, ele disse, “mas dar-lhe cumprimento”. Jesus interpretava a si mesmo como aquele que iria restabelecer o sentido da lei mosaica e da pregação dos profetas. Moises foi o líder que tirou os judeus da escravidão do Egito (segundo a Bíblia) e recebeu de Deus no Monte Sinai as Tábuas da Lei contendo os Dez Mandamentos. Mandamentos como “não matar”, “não roubar”, “não cobiçar a mulher do próximo”, “não cobiçar a propriedade do próximo”, “não levantar falso testemunho”, etc.. Nada de muito extraordinário. Medidas legislativas básicas, sem as quais qualquer civilização é impossível.
Para Jesus o sentido dessas leis é de que o homem deve agir para com os outros como gostaria que os outros agissem para consigo. Surge daí uma ética do amor, da humildade, da compaixão, do perdão, da caridade. Sentimentos que são sinônimos de cristianismo no seu sentido estrito. O ascetismo moral com o qual Jesus colocou em prática sua própria pregação o tornaram uma figura extremamente simpática e capaz de atrair seguidores apaixonados.
O magnetismo pessoal de Jesus criou em torno de sua figura uma certa agitação. Muitos poderiam ler em sua pregação um chamamento a uma vida autêntica, sem preocupações materiais. “Meu reino não é deste mundo”, ele dizia. Uma vida coletiva sem propriedade e sem rituais era algo que os sacerdotes não poderiam admitir. Por isso condenaram Jesus com um ódio especial.
Mas Jesus vingou-se daqueles que o condenaram com sua ressurreição. Aqui não importa que ele não tenha ressuscitado de fato. Importa que, ao dar sua vida por suas idéias, (como Sócrates), Jesus alimentou a admiração de seus fiéis, que se tornaram mais fiéis após a crucificação (o exemplo de Pedro, que negou três vezes ser seguidor de Jesus, mas depois se tornou pregador e foi ele próprio martirizado). Assim como Jesus realizou metaforicamente a promessa do deus judeus de enviar um Messias; seus seguidores realizaram metaforicamente por meio da fé a promessa de sua ressurreição.
2.3 – Como Jesus se torna o Cristo.
O ato de dar a vida por suas idéias (coroado pelo pedido: “perdoai-os, eles não sabem o que fazem”) tornou Jesus uma figura exemplar da bondade levada ao extremo. O extremo da bondade é a materialização do próprio Deus na terra. Essa figura passou a seduzir a imaginação das camadas mais pobres da população romana. O nome “Cristo” que se lhe apôs é uma palavra grega que significa “o ungido”, ou “o enviado”, ou seja, o enviado por Deus. Jesus passou a ser visto como o Filho de Deus por ter miraculosamente nascido de uma virgem e ressuscitado após a morte; mais do que por sua pregação e exemplificação moral. O sentido mítico-miraculoso e o metafórico-conceitual não se distinguiam na Antiguidade.
O maior responsável pela difusão do mito de Cristo foi um judeu que a princípio perseguia os cristãos, chamado Paulo de Tarso, ou São Paulo. Segundo Paulo, a vinda de Jesus ao mundo passa a ser interpretada como um sinal inequívoco de que Deus existe e nos ama, e nos perdoa. Jesus livra o mundo de seus pecados. Com o seu sacrifício ele exemplifica o máximo de bondade num mundo corrompido. A bondade de Deus é tanta que ele nos envia seu próprio Filho, que dá sua vida por nós. Com isso mostra que o homem pode ser bom e pode ser salvo, e merecer a aprovação de Deus para entrar no reino dos céus.
Agostinho completa o raciocínio incorporando a ele o neo-Platonismo. Jesus realiza a mediação entre o mundo das idéias e o homem. Entre o infinito e o finito. A mediação só pode ser realizada por um ser divino, porém também humano. Um homem capaz de transcender a finitude. Por meio dessa mediação de Jesus, o homem pode se elevar acima de sua natureza degradada e aspirar ao reino dos céus. A natureza do homem é degradada porque o homem escolhe o mal. Deus faz o homem capaz de escolher entre o bem e o mal porque assim ele é mais perfeito do que se fosse criado diretamente propenso ao bem. O dever do homem é escolher o bem tendo a opção de escolher o mal. Assim ele se aproxima de Deus, que é o bem infinito, e se aproxima da superação de sua própria finitude.
Ao mesmo tempo que mantém esse significado moral elevado e abstrato, a promessa da ressurreição de Cristo guarda também um sentido de libertação imediata. Jesus prometeu que ressuscitaria, mas depois disso subiu aos céus. Essa primeira ressurreição serviu apenas para atiçar a esperança de seus seguidores de uma segunda vinda, definitiva, na qual o Salvador viesse para construir o Reino de Deus.
Muitos dos seguidores de Jesus esperavam essa sua segunda ressurreição definitiva logo nos primeiros anos que se seguiram à sua morte. Nas primeiras décadas. Nos primeiros séculos. Continuam esperando até hoje. O Apocalipse, o Fim dos Tempos, o Juízo Final, estavam marcados para acontecerem a qualquer momento, desde o século I. Nessa espera, os primeiros cristãos fundiram a espera messiânica judaica à promessa de Cristo de um reino de Deus.
2.4 – O cristianismo e a Idade das Trevas.
O mundo greco-romano era um mundo dominado por um sentimento trágico da vida. As tragédias gregas eram a forma máxima de arte não por acaso. Os deuses eram bons ou maus aleatoriamente, ao sabor de suas paixões. Eram volúveis e inconstantes. O destino era incerto, e o homem era seu prisioneiro irremediável. Não havia fugir ao destino; era mister consultar os oráculos para ao menos saber algo sobre o futuro que pudesse dar paz ao espírito. A vida humana não tinha sentido transcendente e a finitude material era seu limite intransponível.
Nesse cenário irrompe o cristianismo com a promessa de um deus benevolente que nos ama. Esse era o conteúdo da pregação dos apóstolos. Deus nos ama e enviou seu filho único para nos salvar. Exatamente por isso as pregações de Jesus a seus discípulos eram chamadas de “Evangelho”, palavra grega que significa “Boa Notícia”. A boa notícia que os pregadores espalhavam era a existência desse deus e de seu filho capaz de dar a vida por nós.
Essa boa notícia era extremamente sedutora, pois consolava os pobres de suas misérias e os ricos de seu vazio. O mundo passava a ter um sentido. A Encarnação do Verbo em Cristo passava a ser o marco fundador de uma História da humanidade entendida como uma narrativa. Um evento único em relação ao qual há um antes e um depois que são completamente diferentes. O passado, o presente e o futuro ganham um sentido referido ao plano de Deus para o homem.
Para chegar ao reino dos céus, o homem deve ser obediente aos seus representantes na terra. Daí vem o poder da Igreja. Aí começa a transformação do supremo bem no seu exato oposto. O cristianismo, que era uma promessa de libertação das dores do mundo (ainda que vaga e transcendente), se transforma na própria escravidão por obra da Igreja. A Igreja católica acaba procedendo para com o cristianismo da mesma forma que o clero judaico do tempo de Jesus procedeu com o ensinamento de Moisés. Ou seja, transformaram a religião numa observância exterior de ritos e sacramentos.
Em nome dessa religião exterior nominalmente cristã a Igreja e os governantes cristãos passaram a empreender a conquista do mundo pagão com as armas da força e da violência, pondo em prática o exato oposto daquilo que Jesus pregava.
3 – Semelhanças entre o messianismo cristão e o judeu.
Com Jesus o monoteísmo se torna transcendente. A promessa de felicidade fica adiada para um outro reino, o reino de Deus. Jesus falava de um mundo em que todos viveriam segundo as leis de Deus, tais como ele as entendia. A espera desse mundo se tornou a matéria prima para um outro tipo de messianismo. O cristianismo herdou a promessa do judaísmo de que o seu Deus governaria o mundo. A dinâmica do messianismo judaico transmutou-se em um novo messianismo cristão. O Messias foi e prossegue sendo a fonte de esperança de judeus e cristãos, assim como Anakin, antes de se tornar Darth Vader, era a esperança de que o equilíbrio fosse restaurado à força. E como, depois do Império, Luke Skywalker era a Nova Esperança de que a luz viesse a prevalecer.
Em nome do Messias, judeus e cristãos empreenderam guerras infinitas. O exclusivismo judeu, sua crença de serem o povo escolhido, os levou a intermináveis conflitos na Antiguidade. Levou-os a serem perseguidos, ironicamente, pelos próprios cristãos. Leva-os a se tornarem párias da comunidade internacional por sua política fascista contra os palestinos. Não envolveremos o islamismo nesse imbróglio, já suficientemente complexo, pois o islamismo não tem um Messias e sim um profeta.
O cristianismo, por sua vez, serviu de justificativa para inesgotáveis atos de barbárie ao longo da história. Podemos citar as Cruzadas, a Inquisição, a perseguição aos hereges, as guerras entre católicos e protestantes, a escravidão de negros, o genocídio dos índios, a conquista imperialista da África e da Ásia em nome da “civilização”, etc. Nesse aspecto, o cristianismo realizou no nosso mundo o que o Império realizou numa galáxia muito distante. E Darth Vader era a face desse império, assim como o crucificado era a imagem do Ocidente.
A Era Cristã fica assim correspondendo ao período intermediário entre as duas trilogias de Star Wars, entre o episódio III e o IV. Nesse período, o Império vigorou com toda força e a vitória dos rebeldes pendeu de um tênue fio de esperança. Assim como no nosso mundo, a semelhança entre os ideais cristãos e o mundo cristianizado desapareceu quase totalmente. A exceção ficou por conta da vivência prática de figuras isoladas. Como um Gandhi por exemplo, que não era cristão nominalmente, mas o era inegavelmente em sua vida prática.
Há quem diga que o socialismo foi uma secularização do messianismo cristão, com a sua esperança de um reino de abundância, paz e felicidade na Terra. Mas isso é assunto para uma outra série de artigos ainda a ser escrita... (não por mim...)
4 – Conclusão
O intervalo entre a ascensão de Anakin Skywalker e a de seu filho corresponde ao intervalo entre a primeira vinda de Cristo e a segunda, que ainda não se concretizou, salvo engano meu. Ou seja, o intervalo histórico inteiro conhecido como Era Cristã. Os últimos dois mil anos da história da Humanidade. George Lucas menciona uma profecia a respeito da necessidade de um Jedi especial trazer o equilíbrio à força. Algo como uma união entre os opostos. Essa profecia corresponde à interpretação de Hegel da história e da função do cristianismo. Para Hegel a encarnação do Verbo em Cristo era a própria imagem do Espírito Absoluto vindo ao mundo como carne para conhecer a si mesmo. A Encarnação do Verbo completa a síntese dialética dos opostos, assim como a trajetória de Anakin/Darth Vader.
O Espírito habita a matéria, de um lado; do outro, o lado negro e o lado luminoso da força se misturam. A ascensão de Darth Vader parece ter sido um passo necessário na fenomenologia dialética da força. O lado negro e o luminoso conviveram numa mesma pessoa, que assim realizou em si uma espécie de síntese concreta da totalidade do processo. A trajetória de Anakin/Darth Vader é rica em peripécias dramáticas, que constituem o próprio conteúdo da saga.
As trajetória de Jesus e de sua figura messiânica dentro da história do cristianismo se dissolvem num lento submergir e ressurgir históricos, no qual o equilíbrio ainda está a espera de ser encontrado. A imagem do Messias/Salvador surge a partir do Jesus histórico, mas torna-se a própria imagem do mal pelas mãos de seus seguidores. Ainda esperamos uma segunda vinda de Cristo para colocar as coisas no lugar. Anakin Skywalker surge como discípulo do lado luminoso da força, mas passa para o lado negro e se torna seu maior agente. No universo de Star Wars, foi o filho de Anakin que restabeleceu as coisas no lugar.
Assim, Anakin/Darth Vader corresponde a Jesus, se este for definido mais em relação à uma imagem abrangente e totalizadora do Messias Judaico-Cristão e menos em relação à figura histórica de Jesus de Nazaré.
P.S. Em tempo: não sou judeu, nem cristão, nem muçulmano, nem budista, nem umbandista. Nem Jedi. Sou corintiano.
Daniel M. Delfino
13/11/2003
P.S. Filmes comentados:
Nome original: Star wars: episode I – the phantom menace
Produção: Estados Unidos
Ano: 1999
Idiomas: Inglês
Diretor: George Lucas
Roteiro: Goerge Lucas
Elenco: Liam Neeson, Ewan McGregor, Natalie Portman, Jake Lloyd, Pernilla August, Frank Oz, Ian McDiarmid, Jimmy Smits, Oliver Ford Davies, Ray Park, Ahmed Best
Gênero: ação, aventura, fantasia, ficção científica
Nome original: Star wars: episode II – attack of the clones
Produção: Estados Unidos
Ano: 2002
Idiomas: Inglês
Diretor: George Lucas
Roteiro: George Lucas
Elenco: Ewan McGregor, Natalie Portman, Hayden Christensen, Christopher Lee, Samuel L. Jackson, Frank Oz, Jimmy Smits, Ian McDiarmid, Pernilla August, Ahmed Best
Gênero: ação, aventura, mistério, romance, fantasia, ficção científica
Nome original: Star wars: episode III – revenge of the Sith
Produção: Estados Unidos
Ano: 2005
Idiomas: Inglês
Diretor: George Lucas
Roteiro: George Lucas
Elenco: Ewan McGregor, Natalie Portman, Hayden Christensen, Ian McDiarmid, Samuel L. Jackson, Jimmy Smits, Frank Oz, Christopher Lee, Keisha Castle-Hughes
Gênero: ação, aventura, fantasia, ficção científica
Nome original: Star wars: episode IV – a new hope
Produção: Estados Unidos
Ano: 1977
Idiomas: Inglês
Diretor: George Lucas
Roteiro: George Lucas
Elenco: Mark Hamill, Harrison Ford, Carrie Fisher, Peter Cushing, Alec Guinness, Anthony Daniels, Kenny Baker, Peter Mayhew, David Prowse e James Earl Jones como Dath Vader, Phil Brown
Gênero: ação, aventura, família, fantasia, ficção científica
Nome original: Star wars: episode V – the empire strikes back
Produção: Estados Unidos
Ano: 1980
Idiomas: Inglês
Diretor: Irvin Kershner
Roteiro: George Lucas, Leigh Brackett
Elenco: Mark Hamill, Harison Ford, Carrie Fisher, Billy Dee Williams, Anthony Daniels, Kenny Baker, David Prowse, Peter Mayhew, Frank Oz, Alec Guinnes, Jeremy Bulloch, John Hollis, Jack Purvis, Des Webb, Clive Revill
Gênero: ação, aventura, fantasia, ficção científica
Nome original: Star wars: episode VI – the return of the jedi
Produção: Estados Unidos
Ano: 1983
Idiomas: Inglês
Diretor: Richard Marquand
Roteiro: George Lucas, Lawrence Kasdan
Elenco: Mark Hamill, Harison Ford, Carrie Fisher, Billy Dee Williams, Anthony Daniels, Kenny Baker, David Prowse, Peter Mayhew, Sebastian Shaw, Ian McDiarmid, Frank Oz, James Earl Jones, Alec Guinnes, Michael Pennington, Kenneth Colley
Gênero: ação, aventura, fantasia, ficção científica
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
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