30.4.07

Matrix Reloaded




Nome original: The matrix reloaded
Produção: Estados Unidos
Ano: 2003
Idiomas: Inglês, Francês
Diretor: Andy Wachowski, Larry Wachowski
Roteiro: Andy Wachowski, Larry Wachowski
Elenco: Keanu Reeves, Laurence Fishburn, Carrie-Ann Moss, Hugo Weaving, Helmut Bakaitis, Steve Bastoni, Monica Belluci, Daniel Bernhardth
Gênero: ação, thriller, ficção científica
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

Quando os irmãos Wachowski lançaram o primeiro “Matrix” em 1999, muitos compararam o filme a “Blade Runner”. Assim como o clássico de Ridley Scott, de 1982, “Matrix” estaria destinado a se tornar referência obrigatória na ficção científica e no cinema em geral, por trazer novos conceitos de visual e cenas de ação, além de uma nova e radical visão da perdição da humanidade nas mãos das máquinas do futuro, mote de quase toda ficção científica. Agora, com o lançamento de “Matrix Reloaded” em 2003, a comparação mais próxima que surge no horizonte é a trilogia “Guerra nas Estrelas”, de George Lucas.

Assim como o primeiro episódio de “Guerra nas Estrelas”, o primeiro Matrix serviu para introduzir um certo universo fantástico e seus personagens. A história era fechada em si, com começo meio e fim, mas oferecia cenário para possíveis continuações, cuja realização seria viabilizada caso o filme fizesse sucesso. No segundo episódio, que corresponderia a “O Império Contra Ataca” (que é o preferido deste escriba), esses personagens são deixados na pior situação possível. E no terceiro episódio, os rebeldes vencem, o Império é destruído e todos se redimem no final. A estrutura é próxima à das trilogias clássicas da literatura e da tragédia grega.

Algo semelhante parece destinado a acontecer em “Reloaded” e “Revolutions”, o segundo e terceiro episódios da “trilogia” Matrix. A menos que os Wachowski nos surpreendam totalmente na conclusão da história. Devemos esperar até o lançamento de “Revolutions” para saber. Na verdade, tudo o que diremos aqui é provisório. Trata-se de impressões tiradas dos dois primeiros filmes, que podem ser alteradas ou invertidas completamente pelo terceiro. Essa ressalva é especialmente importante quando se trata do universo de Matrix, onde tudo pode ser radicalmente alterado.

Por enquanto, o que se pode dizer é que “Reloaded” é a primeira metade de um filme de quatro horas. Os dois filmes em conjunto contam uma mesma história, da qual ainda conhecemos apenas a metade. Propositadamente, algumas pontas são deixadas soltas, para serem amarradas no final. O filme termina com um “to be continued”, como os clássicos seriados de aventura dos anos 50 que inspiraram George Lucas.

Os Wachowski tiveram a tranqüilidade para usar esse recurso dramático, porque puderam se beneficiar de um certo tipo de efeito produzido por uma outra mega-trilogia cinematográfica. Graças a “O Senhor dos Anéis”, o público está acostumado a assistir um filme que não contém toda a história, que deve ser completada pela continuação. Isso representa um grande progresso, pois antigamente as continuações eram “remakes” oportunistas que apenas requentavam idéias do original. Agora temos trilogias conceituais que desenvolvem toda uma mitologia ao longo da série de episódios. O diferencial de qualidade dos filmes destinados a entrar para a história.

Mas vamos ficar apenas nas duas trilogias espaciais, para não complicar demais o cenário. Os irmãos Wachowski lançam mão do mesmo recurso dramático de George Lucas, de colocar em jogo a vitória ou a derrota final dos heróis. Ou tudo ou nada. No presente caso, as máquinas estão prestes a invadir a cidadela humana de Zion, enquanto Neo está prestes a chegar à Fonte da Matrix e conquistar a liberdade para a raça humana. O filme termina com os heróis diante dessa tarefa singular e inescapável: vencer a guerra em vinte e quatro horas ou assistir à destruição do que restava de seu mundo. Essas vinte e quatro horas decisivas serão o conteúdo de “Revolutions”.

Matrix também tem em comum com Guerra nas Estrelas o apelo místico. A Força, a Profecia, o Oráculo, os Jedi, os mestres e veteranos, a iniciação, o destino controlando a vida de todos, são elementos comuns e intercambiáveis nas duas trilogias. Em Matrix abundam as referências à mitologia e à história, em nomes como Morpheus, Zion, Níobe, Merovingian, Persephone, Nebuchadnezzar, Logos, Gnosis. Os mitos modernos do cinema reciclam as histórias clássicas de heroísmo e cavalaria, os mesmos mitos e estruturas dramáticas.

Para encerrar o assunto das comparações, é preciso dizer que, se George Lucas quer que sua segunda trilogia tenha qualquer espaço na memória cinematográfica, como tem a primeira, precisará contratar os Wachowski para realizar o terceiro episódio. De outro modo, esta segunda trilogia ficará condenada à irrelevância. George Lucas perdeu completamente a mão. A nova geração domina. Fãs de mangás, de kung fu, de videogame e filosofia, os Wachowski deixaram Lucas para trás com seu infantilismo e seus Jar Jar Binks. Como realização cinematográfica, “Reloaded” é uma proeza difícil de ser igualada. Os Wachowski levaram a coisa a um outro nível.

“Reloaded” é Matrix aumentado, multiplicado, enriquecido, ainda mais superproduzido do que o primeiro episódio. Na sala de cinema, o efeito é imbatível. Todos os adjetivos usados para definir um filme de ação ficam pequenos para falar deste “Reloaded”. As cenas são impressionantes, a ação é vertiginosa, as seqüências são de tirar o fôlego. Uma overdose de kung fu, de perseguições de carros, invasões em bunkers, escapadas, vôos, máquinas, cenários, efeitos. Enfim, “Reloaded” tem tudo o que faz um filme ficar grande, um filme feito para realmente encher uma tela de cinema, para transformar uma sessão numa experiência avassaladora.

Como dissemos, trata-se da primeira metade de um filme de quatro horas. Os episódios dois e três foram feitos para serem assistidos em seqüência. Por isso, o começo deixa uma certa sensação de lentidão, de cenas soltas, sem propósito, esperando que a coisa esquente. Se é que isso pode ser considerado um defeito, não é dos mais graves em face de certos outros. Por exemplo, Neo acaba sofrendo de uma espécie de “síndrome de Harry Potter”. Como o herói dos filmes infantis, o Predestinado parece em certos momentos passear pelo filme, envolvendo-se nas situações apenas porque é o Predestinado. Assim como Harry Potter resolve as coisas simplesmente porque é Harry Potter, sem experimentar nenhum conflito interior, sem sofrer nenhum drama real.

Além disso, o ator Keanu Reeves claramente não está à altura do papel. Como no primeiro filme, fica claro que Trinity é mulher demais para ele. E se Carrie Ann Moss é mulher demais para ele, que dizer então de Mônica Bellucci? Há uma cena para cada uma delas em que o herói vacila, mostrando o quanto é inapto. Mas é claro que Neo, por ser o herói da história, não pode ser um palerma, portanto ele tem cenas fortes no final que de certo modo o redimem. Especialmente as cenas de vôo são interessantes.

Diante do encolhimento de Neo, quem cresce é Morpheus. Para usar a expressão consagrada pela gíria, Morpheus “é o cara”. O discurso que faz diante do povo de Zion mostra que ele é o líder. Ninguém se iguala a Morpheus em carisma, convicção e capacidade de infundir confiança. O tal Comandante Lock é apenas um “sparing” sem graça usado para que se possa perceber o contraste com a personalidade dominante de Morpheus. As cenas do capitão da “Nebuchadnezzar” com uma espada samurai já nasceram clássicas.

A respeito de Zion salta à vista o aspecto importante de que a maioria da população é negra ou mestiça. O futuro dos Wachowski pertence à raça negra. No imaginário estadunidense, os negros parecem ser o estereótipo da raça que luta pela liberdade. Ao mesmo tempo, são o estereótipo do povo que sabe aproveitar a vida e se divertir. A cena da dança coletiva, uma cena bem envolvente pelo clima que consegue criar, ilustra o quanto os negros correspondem a esse ideal de “sex appeal”, força e liberdade. “Black is beautifull”.

Além dos heróis, há o Merovingian, personagem através do qual os Wachowski podem desfilar um pouco mais de sua filosofia. A filosofia parece ser para eles uma espécie de requinte. Algo refinado, mas inútil, como a língua francesa, que Merovingian diz que serve para dar a sensação de “limpar a bunda com seda”. Um luxo para esnobes. Esnobes entediados com ar de superioridade, rindo dos mortais ignorantes. É assim que os irmãos enxergam os intelectuais, ou provavelmente a si mesmos, de acordo com o preconceito típico dos estadunidenses em relação à filosofia ou à intelectualidade em geral.

Mas os irmãos são gente boa. Eles conduzem sua história corretamente, de acordo com o manual. Neo é o protótipo do herói ingênuo estadunidense. Ele deve partir numa viagem para descobrir quem realmente é (saindo da Matrix), orientado por um veterano mestre (Morpheus), que o apresentará a seu par romântico (Trinity), com quem retornará ao inferno (a Matrix) para se por à prova e mostrar se realmente é o Predestinado. O herói estadunidense típico nunca perde a “virgindade”. O mal nunca o afeta totalmente (nem ele nem Trinity podem morrer no final). O mal pode acontecer aos coadjuvantes, aos negros, aos amigos de outras raças, que sofrem perdas e tem que conviver com isso. Mas nunca acontece ao próprio herói, desenhado para se identificar com o tipo médio da audiência branca e puritana.

Em termos de filosofia, há em Matrix vários momentos que remetem ao empirismo irracionalista de Berkeley, para quem toda a realidade é aparência. Esse é o mote básico da história, presente nos três filmes. Mesmo quando estamos diante do mundo real, fora da Matrix, pode-se duvidar de que é mesmo real, como veremos logo adiante. Há outros em que estamos diante do materialismo grosseiro de Schopenhauer. Causa e efeito brutos a serviço da Vontade. Do Propósito. Toda sofisticação da cultura humana se reduz a expedientes da Vontade para sobreviver. Escrever um poema é como escrever um programa que leva uma mulher ao orgasmo.

Há outros ainda em que Leibniz poderia se sentir perfeitamente à vontade. De acordo com Leibniz, há respostas lógicas e razões suficientes para tudo o que acontece. Como programas previamente escritos. Todos os atos, até mesmo as escolhas humanas, já foram decididos previamente pelo Criador. Tudo o que existe materialmente é possível porque em primeiro lugar é possível logicamente. A lógica precede a realidade. O conceito é anterior aos atos. Está no conceito de cada homem agir como age e fazer o que faz. Portanto, suas escolhas já estão antecipadamente decididas em seu “programa”. Entender os porquês equivale a pensar o pensamento de Deus, que é a Razão suficiente de tudo. A Matrix em que vivemos.

Mas o que interessa mesmo aos irmãos não é desfilar conhecimentos de filosofia. A idéia é mesmo mostrar Neo salvando o mundo. E nesse particular descobrimos que a Matrix já está ciente de Neo. Ele é o resultado de uma anomalia resultante da imprevisibilidade inerente aos seres humanos inseridos na Matrix. Imprevisibilidade que as máquinas denominam imperfeição. O efeito da anomalia já é conhecido, por isso as máquinas se antecipam a ele. As máquinas já lidaram com Predestinados antes, em outras versões da Matrix. Daí deduzimos que já houve também outras versões de Zion e outras guerras de libertação. É algo que as máquinas já estão acostumadas a administrar, como agricultores que administram pragas insistentes em sua plantação. Basta soltar os Agentes, que são o mecanismo de controle das pragas, habitando o mesmo universo em que elas se desenvolvem, a Matrix. Quanto aos agentes, algum destino especial parece estar preparado para Smith, o arquiinimigo de Neo na Matrix (e ao que parece, também fora dela...).

Esse discurso das máquinas de que os seres humanos são imperfeitos, incompletos e inferiores porque se deixam levar por emoções e pelo amor (Neo opta por salvar Trinity) é um discurso tradicional da ficção científica. Sempre que a raça humana é confrontada por espécies tecnologicamente superiores, sejam robôs ou alienígenas, a salvação surge em função desse diferencial que é a tal imperfeição humana. Ressurge aqui a quintessência da idéia romântica do heroísmo e do amor. Idéia caríssima especialmente ao imaginário estadunidense, mas também universal, do destino especial e glorioso da humanidade, em linguagem do século XXI. A capacidade para amar desinteressadamente é algo que não pode ser deduzido racionalmente e torna o comportamento humano tão imprevisível e tão difícil de lidar. Como bem descobriu o Arquiteto encarregado pelas máquinas de administrar a Matrix.

Seja como for, não há muita filosofia nem conceitos novos em “Reloaded”. O que interessa agora é a diversão. Psicodelia total. Como na cena com dezenas de agentes Smith. Surge também em “Reloaded” toda uma nova metafísica para explicar o sobrenatural. Vampiros, lobisomens, alienígenas, são na verdade programas exilados da Matrix. O mundo tem falhas e brechas, denominadas “backdoors”, por entre as quais podem circular aqueles que tem as chaves apropriadas. A idéia é bizarra e o efeito é bastante curioso. Fica uma sensação de frustração por essas idéias não poderem ser exploradas mais a fundo. Talvez para compensar essa sensação de “quero mais” os Wachowski tenham liberado a criatividade de seus colaboradores nos episódios de “Animatrix”.

Os mais ranzinzas podem até reclamar da qualidade da história, não sem uma certa razão. A história é simples, linear, banal, um simples encadeamento de cenas. Mas é preciso repetir que essa é a idéia. O conceito da Matrix já foi suficientemente apresentado no primeiro filme, portanto, pouco restava a ser acrescentado. A guerra pela libertação final da humanidade é a oportunidade para realizar a apoteose das cenas de ação. Tudo que resta mesmo é a diversão. Os Wachowski realizaram sua vingança de nerds, depois de anos lendo gibis e assistindo obscuros filmes chineses e mangás japoneses. Mostraram tudo que sempre quiseram ver num filme, especialmente kung fu, muito kung fu. Mas muito mesmo! Kung fu com som “techno” de qualidade. Quem pode reclamar?

Do ponto de vista do roteiro, o objetivo era mesmo deixar dúvidas no ar. Dúvidas quanto à natureza de Neo, por exemplo. O Predestinado parece ter poderes também no mundo real. Os mais afoitos dirão que o chamado mundo real, onde fica Zion, também pode não ser real. Pode ser um outro nível de uma outra Matrix, na qual todos os que pensam que estão livres estão ainda imersos (de modo que retornamos a Berkeley). Isso pode até acontecer no terceiro filme, mas seria um truque barato dos Wachowski. É mais interessante pensar num outro problema: como exatamente Zion pretende libertar o restante da raça humana?

Essa questão se desdobra. O que fazer com milhões de mentes subitamente desplugadas da Matrix? É possível simplesmente apagar toda a realidade à qual uma pessoa está ligada ? Basta lembrar os cuidados e preparações que foram necessários para desplugar Neo no primeiro filme. Os humanos realmente sobreviveriam a isso? Mesmo que sobrevivessem, Zion estaria logisticamente preparada para receber toda a população da Terra? Se não, como os humanos iriam sobreviver num mundo destruído, fora de suas cápsulas?

Em face disso, é realmente possível simplesmente destruir a Matrix? Em caso contrário, o que os heróis farão com ela? O diálogo do conselheiro Hamann com Neo pode dar algumas pistas. Ali se insinua que os humanos também são dependentes das máquinas, assim como elas agora são em relação aos humanos. Talvez o futuro vislumbre alguma espécie simbiose entre máquinas e homens. Essa pode ser a proposta dos Wachowski para o terceiro filme. Seja o que for, os heróis parecem não ter a menor pista em “Reloaded”. É disso que Merovingian estava falando quando dizia que os heróis não sabiam porque estavam fazendo o que estavam. Não tinham o conhecimento do porquê de suas escolhas, portanto não tinham poder. Eles realmente não tinham pistas do que iriam fazer. Querem destruir a Matrix, mas o que isso significa?

A profecia dizia que bastava que o Predestinado chegasse à Fonte. Mas lá encontramos o Arquiteto, que diz que tudo está correndo conforme o planejado. As máquinas parecem também considerar o efeito que dá origem ao Predestinado como mais um defeito indicativo da inferioridade dos seres humanos. Para administrar esse efeito, é necessário um expediente mais requintado. A Profecia em nome da qual os humanos lutam é uma fraude, pois destina-se tão somente a levar o Predestinado de volta à Fonte e reiniciar o sistema. A luta pela liberdade é uma ilusão. Essa é a sacada mais inteligente da trama. Um lance completamente orwelliano. Todo o esquema envolvido na conspiração é apenas um meio do sistema localizar a anomalia e contornar a rebelião. O sistema é onisciente, onipresente e onipotente. Como o Grande Irmão.

A ar esnobe e o palavreado obscuro do Arquiteto podem ser também pura intimidação. A arrogância das máquinas pode ser resultado também de sua cegueira. A falha pode estar bem debaixo de seus pés, sem que percebam. Brincar com a imprevisibilidade dos seres humanos pode resultar em catástrofe para os construtores de impérios. A capacidade humana de criar respostas novas é um risco com o qual as máquinas aceitaram lidar, seguindo a sugestão do Oráculo. Era o único meio de nos fazer aceitar o sistema. Sobre esse risco se desenha a possibilidade da vitória da Revolução. E Revolução é comigo mesmo. O convite para a terceira parte está feito. “Free your mind!”

Daniel M. Delfino

12/06/2003

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