30.4.07

Antiestadunidismo




A questão do antiestadunidismo é de certo modo um falso problema. Ela transforma o problema da luta pela emancipação humana, contra o capitalismo, contra o imperialismo e contra a globalização numa luta contra um país. A colocação da questão nestes termos é idêntica ao modo de pensar do presidente Bush sobre o 11 de Setembro, quando disse: “quem não está conosco está contra nós!”. Essa dicotomia radical entre pró-“americanos” de um lado e antiestadunidense/antiimperialistas/anticapitalistas/terroristas do outro tem o efeito de transformar a questão numa querela irracional e emocional.

A mídia, com seu ritmo vertiginoso e fragmentário e seu modo superficial e imediato de apresentar as questões, moldou aquilo que se convencionou chamar de “sociedade do espetáculo”. Nessa sociedade movida por imagens espetaculares (descontextualizadas e dessignificadas) todas as oposições e contradições ganham a aparência de uma oposição de tipo “futebolístico”. Ou você torce para um time ou para o outro.

Não há meio termo possível. Não há matizes, nuances, gradações, mediações, articulações e conexões entre os dois pólos. As cores opostas se negam reciprocamente, de maneira inexorável. A oposição de tipo futebolístico é irracional, religiosa, fanática. Não admite a convivência, nem sequer a simples existência de adversários e preferências opostas. O ato de torcer para um time de futebol é quase uma histeria fascista pela aniquilação total do “inimigo”. Este escriba, como torcedor fanático de um time, fala de cátedra. Conheço os elementos da paixão futebolística e por isso mesmo entendo que não se pode permitir que eles extrapolem do ato de torcer para o plano da análise da realidade político-social.

Não faz sentido odiar os Estados Unidos. Como se pode odiar um país? O que é um país? Há qualquer país que seja um monobloco? Um monólito sem contradições, sem classes e frações de classe, sem interesses opostos, sem tendências e contra-tendências, sem processos e situações? É possível passar por cima de toda a diversidade, por força de um ódio cego e fanático, em nome de quaisquer ideais elevados que sejam?

Não faz sentido odiar os Estados Unidos, embora seja inevitável. O ódio é sempre a primeira reação diante daquilo que é moralmente inaceitável. Como é radicalmente inaceitável o estado de coisas do mundo atual, produto direto da hegemonia estadunidense. O ódio é uma reação imediata e profundamente humana. Mas a primeira resposta não pode ser também a última. É preciso passar a um outro nível, sob pena de ficarmos eternamente circulando no ódio e no fanatismo.

Analisar o significado da presença estadunidense no mundo atual deve ir além da simples atitude do “gringo go home!”. O momento dos “slogans” faz parte de determinada fase da luta política, mas não pode resumí-la inteira. Não basta bater de frente com o adversário. O risco de quem não conhece o seu opositor, o seu par dialético numa contradição, é tornar-se idêntico a ele. As suas ações tornam-se assim uma cópia invertida daquelas que tentava combater. O antiestadunidismo burro corre o risco de se tornar mais um elo na correia de transmissão dos interesses de aparelhos partidários sectários.

Um pouco de independência não faz mal a ninguém. Rejeitar o antiestadunidismo burro não pode servir, porém, como desculpa para aderir ao pró-estadunidismo espertinho. Deve servir apenas como primeiro passo para uma análise lúcida. O anti-estadunidismo”, como diz a partícula “anti” no seu nome, é um movimento de resposta. Uma resposta ao crescimento exagerado do poderio estadunidense sobre o mundo, especialmente a partir da década de 1990, período que se convencionou chamar de “globalização”. É preciso perguntar qual é o conteúdo dessa globalização. Trata-se de uma globalização de quê?

Voltemos um pouco mais no tempo. No início do século XX o desenvolvimento do imperialismo levou ao choque entre as principais potências da época. Inglaterra, França e Alemanha se chocaram em duas guerras mundiais, arrastando consigo alguns impérios decadentes e outros ascendentes, como Áustria, Rússia, Japão e Estados Unidos. O choque entre as grandes potências imperialistas propiciou a oportunidade para o rompimento de um dos elos da cadeia internacional do capital, no episódio da Revolução Russa.

O fenômeno do socialismo real, isolado em sete décadas do século XX, representou um hiato no desenvolvimento do imperialismo. Houve o imperialismo antes desse intervalo e há agora depois dele, numa nova fase, chamada de globalização. Nesse período intermediário entre as duas eclosões imperialistas, as grandes potências do passado criaram um bloco mais ou menos unificado, o do chamado “mundo livre”, sob a liderança dos Estados Unidos. Que eram a única das potências imperialistas capaz de suportar a corrida armamentista contra a U.R.S.S. Enquanto os Estados Unidos multiplicavam suas intervenções armadas no tabuleiro de xadrez global da Guerra Fria (Coréia, Irã, Vietnã, Chile, Nicarágua, etc.), os países europeus e o Japão iriam encontrar alternativas próprias para administrar as contradições de seus sistemas econômicos.

As soluções encontradas resultaram no chamado estado do bem-estar social europeu, que constituiu uma espécie de versão européia ou social-democrata do capitalismo. Os Estados Unidos, enquanto isso, na ânsia messiânica para vencer a Guerra Fria, produziram a ofensiva do neoliberalismo. O neoliberalismo consistiu numa operação política para desregulamentar os mercados financeiros internacionais, propiciando uma expansão indefinida dos déficits comerciais e fiscais dos Estados Unidos. Déficits que são a forma do capital administrar suas contradições no estágio de sua crise estrutural manifesta. A dominação do mundo pelos Estados Unidos seria o resultado direto e conseqüente do capital atuando livremente e deixado a si mesmo para desenvolver toda a virulência de suas contradições.

Num processo que vem desde o rompimento do padrão dólar-ouro nos anos setenta, passando pela “reaganomics” dos anos 80 e pela década de Clinton, os Estados Unidos redesenharam a divisão internacional do trabalho. A economia estadunidense transformou-se numa economia de serviços, cujo consumo passaria a absorver as exportações de commodities dos países subdesenvolvidos e de manufaturados do Japão e dos Tigres Asiáticos. Caberia à Europa financiar o déficit público estadunidense com investimentos em títulos do governo e fusões com as grandes empresas estadunidenses.

Como emissor da moeda-padrão internacional, os Estados Unidos passariam com isso a arrastar a economia mundial a reboque da sua necessidade de financiar seus déficits. A prerrogativa do F.E.D. de arbitrar via taxa de juros o valor do dólar face às outras moedas tornou o sistema econômico internacional escravo dos movimentos de capitais em busca de retornos financeiros. O setor produtivo de dezenas de países, como o Brasil, foi dissolvido em nome do modelo de atração de capitais, que como agora se tornou óbvio, só é viável para os próprios Estados Unidos.

A atração dos capitais pela “segurança” dos títulos públicos e acionários estadunidenses passou a sustentar o poder de compra do dólar, permitindo a continuidade do consumismo estadunidense, que por sua vez permite a continuidade das exportações dos demais centros capitalistas para os Estado Unidos, que por sua vez tornou-se a única perspectiva de crescimento das economias “normais” ainda ancoradas em sistemas produtivos (Europa, Japão e tigres asiáticos). A economia mundial tornou-se, com a globalização, refém da capacidade de consumo interno dos Estados Unidos. A perda da competitividade do setor produtivo estadunidense, sacrificado em nome da opção pela hegemonia financeira, tornou o país por sua vez dependente de exportações do restante do mundo (o caso do petróleo é apenas o exemplo mais crítico).

A necessidade de garantir a continuidade desses fluxos comerciais e financeiros em direção aos Estados Unidos o obrigaram a adotar uma postura imperialista agressiva, resguardando seus interesses de maneira protecionista e unilateral em instituições como a O.M.C, o F.M.I. e a ONU. Os Estados Unidos se reservam o direito de intervir em outros países para garantir o fornecimento de petróleo (Afeganistão, Iraque), se eximem de participar dos acordos internacionais de regulamentação (Protocolo de Kyoto) para escapar dos custos que ela representa, e ainda querem forçar os países mais fracos (ALCA) a lhe abrir os mercados.

A coincidência dessa hegemonia financeira do dólar com a queda do socialismo real criou o cenário de uma vitória “definitiva” do capitalismo sobre o socialismo, através da ideologia do “Fim da História”. A embriaguez capitalista dos fluxos financeiros nos anos 90, o advento da internet, a mundialização dos gostos e costumes via indústria cultural, o advento de uma filosofia e de uma ideologia da “pós-modernidade”, criaram a imagem da globalização como uma utopia de liberdade e possibilidades. Quando na verdade tratava-se de uma concentração do poder financeiro em escala mundial sob a égide do dólar. A máscara dessa globalização caiu com o estouro da Nasdaq e os ataques do 11 de setembro. O modelo estadunidense não era viável nem para os Estados Unidos, nem para o resto do mundo.

Esse é o pano de fundo histórico do antiestadunidismo. A necessidade de responder às posturas unilaterais do imperialismo estadunidense agressivo forçou o surgimento de uma nova consciência oposicionista nos chamados movimentos “antiglobalização”. Esses movimentos estão apenas na infância de uma verdadeira tomada de consciência. Uma nova consciência global deve surgir urgentemente para servir de contraponto a essa hegemonia financeira-ideológica-militar que projeta no limite a dominação global. Quer se chame “neo-socialismo” ou “neo-humanismo”, essa nova consciência terá como pressuposto o reconhecimento de que, no atual momento histórico, a solução dos problemas humanos só pode ser uma solução global.

Evidentemente, isso mostrará que se trata de uma solução que terá que ser construída por meio de um trabalho árduo que se arrastará por décadas. Os problemas humanos se tornaram globais, mas as respostas a eles ainda não. Chamamos de problemas humanos, por exemplo, a degradação das condições ambientais, ameaçando a própria sobrevivência da espécie. A articulação de uma tentativa de contenção, por meio do Protocolo de Kyoto, com toda sua precariedade e dificuldade para impor-se, dá uma idéia da dificuldade inerente ao projeto de encontrar uma solução global.

Não será possível qualquer solução global enquanto, no interior de cada país, o poder de decisão estiver entregue a elites comprometidas com o mecanismo e a ideologia daquilo que chamamos acima de “hegemonia do dólar”. Os governos nacionais se transformaram em instâncias burocráticas de administração dos interesses dessa hegemonia, respondendo antes aos vigilantes dessa nova ordem mundial (F.M.I., O.M.C., etc), do que aos seus próprios povos. Logo, a solução terá que passar necessariamente por cima dos governos, contra os governos, apesar dos governos ou também transformando os governos.

Como brasileiros, temos o privilégio de assistir de camarote (e também de participar) o momento em que se ensaia a emergência de uma alternativa nacional à hegemonia globalitária, por meio de um projeto de governo popular que pode efetivamente se consolidar como portador de seculares aspirações populares. Ou não. Assistimos no Brasil, no momento, à continuidade de uma política rigorosamente neoliberal por parte de um governo de índole e origem inegavelmente populares.

Não se trata mais da era FHC, em que o requinte intelectual do príncipe somente serviu para mistificar aquilo que sempre foi um projeto de direita e anti-nacional. A traição de suas origens pelo PT seria isso sim de fato uma tragédia histórica. Se esse governo se tornará apenas mais um executor de políticas pró-mercado financeiro, adiando indefinidamente a questão do resgate da dívida social brasileira, ou se dará início a um verdadeiro despertamento do potencial ativo e criador do povo brasileiro (e com isso, de vários outros povos), só o tempo irá dizer. Reformas e protestos acontecem enquanto escrevo.

As dificuldades para que se possa ao menos vislumbrar a instauração de uma sociabilidade mais humana em um só país que seja, no caso o Brasil, mesmo num governo com origem de esquerda, dão uma dimensão do que significa pensar em resolver globalmente os problemas humanos. Dão também uma dimensão da barbárie em que ainda se encontra mergulhado o mundo no alvorecer do século XXI. Se na América Latina o quadro é de deterioração e asfixia de projetos nacionais, na África e na Ásia falamos ainda de um negrume medieval. Ditaduras grotescas de narcotraficantes, regimes tribais, tiranias de xeques corrompidos por petrodólares, teocracias obscurantistas, etc.. O quadro do mundo atual é desolador.

Faria vergonha aos iluministas do século XVIII descobrir que a Razão ainda não chegou a imensos rincões miseráveis onde vive a maioria da humanidade. Razão, democracia, direitos humanos, liberdade de crença, liberdade de opinião e de expressão, tolerância civil, elementos básicos, primários, fundamentais de uma sociedade minimamente civilizada tal como a entendem os europeus e como nós aspiramos, são ainda conquistas longínquas, sonhos distantes para a imensa massa da humanidade. São também piadas de humor negro quando usadas como pretexto pelos dominadores de hoje.

A Razão também não chegou ao Texas, de onde o cowboy George W. Bush lança sua cruzada fundamentalista pelo estilo de vida estadunidense. Falemos então dos Estados Unidos. Pois para muita gente não há o menor problema em aceitar a hegemonia estadunidense. Aplicando o cinismo e a “realpolitik” à história, há quem diga que, desde os assírios, sempre houve impérios e sempre haverão. O que podemos fazer hoje é, no máximo, encontrar a melhor maneira de conviver com eles.

Há quem encontre consolo no fato de que os Estados Unidos pelo menos não são tão bárbaros quanto foram outros formadores de impérios, como Salmanasar, Átila ou Gêngis Khan. Podemos acrescentar que os Estados Unidos pelo menos oferecem Coca-Cola e Big Macs em troca. Para quem não se contenta com isso, resta a tarefa de desmistificar a esfinge, antes que ela nos devore. Que são, afinal de contas, os Estados Unidos? Um simples império como os outros, que se impõe pela força das armas? Um invasor alienígena que não tem nada em comum com qualquer outro povo? Uma bandeira, uma cor, que se pode bloquear, rejeitar, negar, em nome de outra qualquer? Uma idéia que se possa combater pela força da censura, como tentam fazer os aiatolás e também os patrulheiros de outros grupelhos e partidos não menos autoritários?

Seriam os Estados Unidos uma força que age a esmo, desvinculada de contextos e processos históricos, como se pudesse existir fora de uma totalidade articulada, dentro da qual todos estamos? Tenho defendido a idéia de que os Estados Unidos, mais do que um país, são o pólo irradiador da ideologia capitalista. Entendemos por ideologia capitalista a ideologia da competição entre os homens no mercado como instância única, definitiva e mais elevada de sociedade. Os Estados Unidos são o espaço onde essa ideologia encontrou sua concretização mais pura e acabada. São um país sem ser propriamente um país, pois como seu nome diz, trata-se de uma união de Estados. Estados com autonomia legislativa para decidir sobre impostos ou sobre pena de morte. O que os une é a religião comum do individualismo e da busca pelo sucesso a qualquer preço.

Os Estados Unidos são uma sociedade anti-social. São a negação da sociedade entendida como sociabilidade, comunidade e humanidade comum. O espaço por excelência do indivíduo abstrato, dessocializado, desvinculado, sem raízes e sem lealdades outras que não o próprio interesse egoísta. São a terra do cada um por si e do salve-se quem puder. Analisamos em outro texto (“Os bons comunistas/Gangues de Nova York”) o modo específico como se dá a consolidação dessa ideologia no território estadunidense, por meio daquilo que chamamos de “dialética da assimilação”. Os Estados Unidos se constituíram historicamente como um mito em torno da estadunidade comum que une os migrantes que construíram o país, estadunidade que não é nada mais do que a aceitação de que todos os cidadãos são meros átomos do mercado, e de que o mercado é o local da competição, onde todos podem se realizar por meio de suas capacidades.

Você pode ser branco, negro, índio, mexicano, irlandês, chinês, italiano, judeu, russo, como são de fato as muitas comunidades raciais que constituem o mosaico estadunidense. O deus universal, o dólar, como Zeus no trono do Olimpo, ordena aos demais deuses particulares das diversas comunidades étnicas a obediência e a convivência pacífica, ainda que hipócrita, a fim de que os mercados possam continuar trabalhando em paz. As etnias e culturas se dobram ao mercado, mas o mercado, como entidade suprema nunca é ameaçado por elas, muito menos modificado em sua essência. Disso resulta uma aparência de respeito à diversidade, um respeito tão zeloso quanto forçado e patrulhado pelos heróicos idealistas dos direitos civis. Uma aparência que faz com que os estadunidenses possam ver a si mesmos como o supra-sumo da civilidade, quando escondem as mais desvairadas patologias anti-sociais. A respeito dessas patologias, recomendamos o excelente documentário de Michael Moore, “Tiros em Columbine”, sobre o qual também escrevemos recentemente.

No que resulta aquilo que chamamos de “capitalismo bandido” como variedade específica do sistema capitalista nos Estados Unidos. Um capital que não reconhece limites diante dos lucros, nem lei, nem religião, nem moral, admitindo passar por cima de qualquer regulamentação trabalhista, ambiental, contábil, fiscal, policial, em nome do lucro a qualquer preço, recorrendo a suborno de autoridades, compra de políticos e bancas de advogados caríssimos como defesa indispensável e natural de quem quer “jogar duro” no mercado, como toda grande corporação faz.

Lembramos que na Europa e mesmo no Japão o capitalismo somente se impôs após uma série duríssima de lutas contra as aristocracias reacionárias, mas também contra a subterrânea, lenta e massiva resistência popular à perda de suas raízes comunitárias, culturais, artesanais e medievais. As sociedades resistiram o quanto puderam ao projeto de dessocializá-las. Nos Estados Unidos, ao contrário, a sociedade surgiu com a proposta de ser o espaço onde o indivíduo estaria “livre”, ou seja, dessocializado. Lembramos também que em nome da transformação do capitalismo em um estágio superior de sociabilidade o movimento socialista obrigou a Europa a aceitar uma série de concessões, resultando naquilo que chamamos de estilo europeu de capitalismo, o Estado do bem-estar social.

Nesse cenário, diferentemente daquele do capitalismo bandido estadunidense, o mercado teve que dobrar-se em parte ao seu opositor, sob pena de ser destruído pela própria irracionalidade (as duas guerras mundiais começaram na Europa). A Europa parece ter aprendido a lição. O projeto de sociabilidade que subjaz à idéia da União Européia é o de uma sociedade “pró-social”, que tem como diferencial, em oposição à competição pura e simples oferecida pelos Estados Unidos, as salvaguardas do Estado do bem-estar. O qual, por sua vez, no contexto da ofensiva neoliberal, está enfrentando uma tentativa de desmonte.

A título de comentário a respeito da oposição que se desenha entre essas duas possíveis hegemonias concorrentes, temos a guerra do Iraque. O Iraque estava exangue após mais de uma década de sanções e bombardeios, mas os falcões de Bush somente decidiram destronar o patético Saddam Hussein depois que o governo iraquiano decidiu que iria cotar o petróleo em euros e não mais em dólar. Nesse momento soou o alarme para o pecado supremo do mundo contemporâneo. Heresia, blasfêmia contra o deus-dólar. A idéia de um sistema financeiro internacional ancorado no euro seria fatal para a economia estadunidense, cuja competitividade foi sacrificada em nome da continuidade do império financeiro mundial do dólar. Em nome da continuidade desse império os falcões desfecharam a guerra e “recolocaram as coisas nos seus devidos lugares”.

De quebra, lograram infringir divisões na frágil unidade da União Européia, graças ao servilismo ridículo e ultrajante de Blair. Ainda está para ser explicado como um primeiro-ministro trabalhista aceitou curvar-se tão baixo. Ou talvez o deus dólar saiba a resposta. De qualquer maneira, a União Européia ainda é muito amorfa para ser capaz de articular uma prática política e estratégica comum de longo prazo. Nem dispõe de força política, muito menos militar, para respaldar a constituição da “contra-hegemonia” do euro. Formou-se então o patético circo da guerra, com os cowboys de um lado e os recém-convertidos pacifistas Chirac e Shroeder do outro. Uns tentando garantir o seu, ao arrepio da lei e da O.N.U.; outros (França e Rússia), lamentando a perda dos contratos que suas empresas tinham no Iraque.

A diferença entre Europa e Estados Unidos é basicamente essa: enquanto os europeus ainda aceitam pautar-se por um mínimo de legalidade no espaço internacional, os americanos sacam suas armas. Atiram primeiro e bradam depois: “a lei sou eu!”, com a mesma arrogância do Rei Sol, mas sem o mínimo de charme, sem uma partícula infinitesimal sequer. Sobre atirar primeiro e argumentar depois, remetemos novamente a “Tiros em Columbine”.

Sobre a falta de charme, acrescentamos, para finalizar, que o grande charme dos Estados Unidos, aquilo que permite seduzir colaboradores, adoradores e basbaques em geral, é a força de sua indústria cultural. Além de ser uma máquina econômica em si, é um ativo estratégico dos mais valiosos. Permite fazer alhures a propaganda do estilo de vida estadunidense. E a propaganda é a alma do negócio. O negócio é, mais uma vez, o mercado. O espaço dos iguais, dos indivíduos, dos átomos sociais. Dos competidores. E para que a competição continue, é preciso que todos acreditem que podem chegar lá.

Fazer com que todos continuem partilhando da mesma crença é o papel dos mitos. E mitos é o que Hollywood fabrica. O eterno mito de Davi contra Golias. O mito do homem comum que enfrenta o sistema. O mito do romance, da paixão que triunfa contra todos os obstáculos, de indivíduos que superam a si mesmos e encontram a redenção do final feliz, o roteiro básico dos filmes estadunidenses. A fraqueza desse argumento em face do contexto social concreto é simultaneamente a causa de sua força como irradiação de esperanças e ilusões. A ilusão do bom-mocismo ingênuo que transforma brucutus inocentes do Kansas em aspirantes a Rambo na guerra do Iraque é feita da mesma matéria-prima da esperança que nós temos, do lado de baixo do Equador, de que Luke Skywalker possa derrotar o Império. Ou para ser mais moderno, de que Neo e Morpheus possam nos libertar da “Matrix”.

Em outras palavras, o que estamos dizendo aqui é que os mitos também estão globalizados. Os mitos são as armas dos sacerdotes para governar as massas. Mas são também as armas dos revolucionários para levantar as massas. Desde que saibam decifrar as esfinges. Usemos pois os mitos contra seus próprios fabricantes. Não se trata de uma operação inédita na história, mas de uma inversão amparada em precedentes. O projeto do Império Napoleônico no século XIX sucumbiu diante da contradição básica que significava levar a Revolução Francesa a outros povos sob a forma de uma conquista. Liberdade, igualdade, fraternidade e balas de canhão. Os povos invadidos pela França descobriram que poderiam ser libertados em nome das idéias contidas na própria bandeira da França.

Deve haver algo que os Estados Unidos tenham criado que possa ser usado contra eles mesmos, em favor do resto do mundo. Do contrário, teríamos que pensar em termos de uma negatividade absoluta, o que é filosoficamente impossível. Todo negativo é o degrau oposto para a positividade que dialeticamente deverá surgir depois dele. As idéias de liberdade e democracia, por exemplo, são as bandeiras com as quais os Estados Unidos se lançam em suas ofensivas imperialistas. Mas é preciso levar a liberdade ainda aos próprios Estados Unidos. A democracia é apenas uma fachada no estado policial de Bush e Cia..

Os estadunidenses são só mais um povo que tem que ser salvo de sua própria estadunidade alienada. Discursos e contra-discursos se enfrentam. Heróis e vilões se embaralham. Lobos vestem peles de cordeiro e vice-versa. É cada vez mais urgente duplipensar. “Welcome to the real world!”

Daniel M. Delfino

01/06/2003

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