30.4.07

“O último samurai” e o golpe quase perfeito


(Comentário sobre o filme “O último samurai”)



Nome original: The last samurai
Produção: Estados Unidos
Ano: 2003
Idiomas: Inglês, Japonês, Francês
Diretor: Edward Zwick
Roteiro: John Logan
Elenco: Ken Watanabe, Tom Cruise, William Atherton, Chad Lindberg, Ray Godschall Sr., Billy Conolly, Tony Goldwyn, Timothy Spall, John Koyama, Togo Igawa
Gênero: ação, aventura, drama, guerra
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

Suemono-giri é o nome em japonês para “corte de objeto estacionário.” Esse nome é dado para um golpe perfeito executado com a espada, capaz de cortar qualquer objeto, seja um corpo humano, uma viga de madeira, uma coluna de pedra, etc.. Esse golpe é executado num só movimento, começando com a espada ainda embainhada, a qual é retirada de uma só vez, e desse gesto se segue sem descontinuidade o corte do alvo, pelo qual a lâmina passa sem se deter, como se houvesse cortado apenas o ar, ininterruptamente, sendo sustada ao final com pleno controle, como uma mera extensão do braço.

A concentração do espadachim antes do golpe; a energia contida prestes a explodir; o movimento rápido, certeiro, fatal; a perfeição da lâmina capaz de cortar qualquer objeto; a tempestade desencadeada em uma única rajada de vento, acompanhada de um grito; o retorno ao repouso como se nada houvesse existido; a alternância de movimento e repouso, tensão e distensão, máximo de mobilidade e de imobilidade, típicos da arte marcial japonesa; todo o ritual está permeado por uma elevada consciência estética.

O golpe perfeito é uma obra de arte, assim como a vida de um samurai é uma performance que busca um ideal de beleza moral. Ética e estética estão fundidos na filosofia samurai, como em toda verdadeira ética e em toda verdadeira estética. O golpe perfeito representa o estágio mais alto da técnica japonesa de uso da espada, distintivo dos grandes mestres dessa arte marcial. Por sua simplicidade e precisão, pelo nível de concentração, auto-controle e adestramento, representa a síntese da cultura militar japonesa e de seu projeto civilizatório, configurado na sociedade samurai.

O filme “O último samurai” é uma superprodução hollywoodiana protagonizada pelo mega-astro Tom Cruise, talhada para concorrer em várias categorias do Oscar, que pretende retratar o ocaso dessa sociedade samurai. O filme se baseia num episódio real, acontecido em 1877, em que o moderno exército japonês enfrentava a rebelião de guerreiros da Escola antiga que se recusavam a aderir aos métodos contemporâneos. O personagem de Tom Cruise, um oficial estadunidense contratado para trasmitir o “know how” militar ocidental aos “bárbaros”, foi inserido romanescamente na história. O curioso é que tal personagem acabou seduzido pelo modo de vida dos antigos guerreiros japoneses, justamente aqueles contra os quais fora contratado para combater.

O último samurai do título não é na verdade Nathan Algren, o personagem de Tom Cruise, mas sim Katsumoto Moritsugu (interpretado por Ken Watanabe, desde já meu favorito para o Oscar de coadjuvante). A publicidade do filme, naturalmente, apresenta Tom Cruise em primeiro plano, em pôsteres gigantes, como se ele fosse o samurai do título. Mais do que propaganda enganosa, trata-se de um erro conceitual. Nathan Algren não chega de fato a ser um samurai. Nem que ele quisesse, não poderia. Não porque é um estrangeiro, o que não constitui um obstáculo definitivo. O obstáculo é a própria estrutura da narrativa, a função que a história lhe reserva. Explicaremos esse detalhe mais adiante.

Katsumoto é o verdadeiro samurai do título. Ele é um nobre, senhor de uma província, equivalente a um senhor feudal do ocidente. Como nobre, ele está no topo da hierarquia social. Seus guerreiros e seu povo lhe devem obediência total, até a própria morte. Katsumoto, por sua vez, deve obediência ao Imperador, de quem é vassalo. O Imperador, na religião xintoísta, é um deus vivo, descendente da deusa do sol, criadora do mundo. Na época retratada pelo filme, o Imperador Meiji estava promovendo a modernização do país.

Meiji era na verdade um jovem fraco, sem personalidade, manipulado por ministros ambiciosos, entre os quais se sobressai um certo sr. Omura. Simultaneamente ministro e empresário, ele próprio tem interesses pessoais e empresariais na modernização do Japão. Dono de ferrovias e provavelmente de outros negócios a elas ligados, deseja ver o país inteiro unido e modernizado, pronto para entrar na disputa de mercados com as potências da época: Inglaterra, Alemanha, França e Estados Unidos. A posse feudal da terra, estabelecida por laços de tradição e lealdade pessoal, deve ser substituída pela propriedade privada capitalista acessível pelo dinheiro. O uso de armas (espadas) por particulares deve ser suprimido em nome do monopólio do uso da força (fuzis) pelo Estado burguês.

Uma e outra tarefa da revolução burguesa no Japão pressupõem a remoção do nobre Katsumoto Moritsugu e sua fidelidade aos princípios morais da tradição. Para modernizar o país, Omura traz ao Japão especialistas de todos os ramos da atividade econômica moderna, de diversas nacionalidades. Algren se encaixa nesse plano como o especialista em técnicas militares modernas, com seu currículo de exterminador de tribos indígenas a serviço do exército estadunidense.

É contra Omura que Katsumoto se insurge, não contra o Imperador. De acordo com o código de ética dos samurais, o suserano é dono da vida de seus vassalos. Se o Imperador lhe ordenasse, Katsumoto cometeria o sepukku, o suicídio ritual, e o faria de bom grado. Ele admite isso várias vezes no filme e é preciso crer no que o samurai diz. Ele considera que sua rebelião está a serviço do Imperador e não contra ele. Contra o Imperador e contra o povo japonês estão na verdade Omura e seus sequazes corruptos. Se o Imperador não se dissuadir de seu engano, Katsumoto está disposto a dar a vida por isso. Ele está preso ao seu sentido de honra e segue seu dever até a morte. Sua tragédia contém um inescapável conteúdo de estupidez, conseqüência direta do absurdo inerente ao regime absolutista, pelo qual um homem de valor deve sua vida a um monarca que não passa de um fantoche inexpressivo.

Antes de prosseguir nos detalhes do filme, é preciso dar o cenário histórico da transformação da sociedade japonesa. As transformações que Katsumoto tenta deter para preservar a integridade do Império foram desencadeadas pelo próprio Imperador, há não mais do que uma década então. A contradição se aprofunda até se tornar irreconciliável. Trata-se de uma contradição inerente ao modo japonês de transição do feudalismo para o capitalismo. O Japão seguiu o mesmo esquema da Alemanha, que Lukács chamou de “via prussiana” para o capitalismo.

Na via prussiana a classe dos aristocratas feudais, proprietários de terra, os “junkers” alemães, que era simultaneamente a massa da oficialidade do exército, realizou de maneira autoritária a transição do feudalismo para o capitalismo, sem ceder o poder à burguesia e mantendo a classe trabalhadora sob o pesado tacão do Estado policial bismarckiano. Os junkers passaram diretamente de senhores feudais proprietários de terra para donos de empresas capitalistas. Não houve uma revolução burguesa na Alemanha. A burguesia alemã sempre foi débil e a democracia nunca criou raízes no país. Desse solo nasceria o nazismo.

O processo japonês seguiu o mesmo esquema, mas com pequenas diferenças. O Japão sempre teve uma mesma dinastia imperial, que se perpetuou em uma linha de sucessão direta desde seus ancestrais semilendários na pré-história até seu descendente no século XXI, o atual Imperador Akihito. Mas essa dinastia não esteve sempre no governo. No século XII o poder do Imperador foi ofuscado pela ditadura militar dos shoguns. A linhagem imperial não foi extinta, mas manteve apenas um poder formal, derivado de suas funções religiosas.

Desde o século XII as famílias tradicionais de senhores feudais guerreiros disputaram o cargo de shogun. A pacificação foi alcançada sob o shogunato Tokugawa, que se instalou em 1600. Tokugawa proibiu o intercâmbio com o exterior. Comerciantes e missionários estrangeiros foram banidos do Japão entre 1635 e 1853. Ao contrário do império chinês, que desmoronou sob o assédio das potências imperialistas ocidentais, o Japão se manteve unido. Foi na Era Tokugawa que se desenvolveu a sociedade samurai, com uma legislação formal e rigorosa sobre todos os aspectos da vida social. O país foi dividido em algumas centenas de províncias governadas por senhores feudais hereditários, cada um com seu pequeno exército de samurais, mas todos vassalos do poder central em Edo (Tóquio).

A sociedade foi dividida em castas hereditárias rígidas. Os guerreiros foram proibidos de trabalhar para seu sustento, os camponeses foram proibidos de usar armas. A nobreza militar separou-se como uma classe social superior, acima do clero, do campesinato e dos artesãos e comerciantes. O feudalismo japonês se cristalizou. A condição de samurai tornou-se hereditária. O privilégio de usar armas tornou-se seu dever e desenvolveu-se aí o Bushido, o “modo de vida do guerreiro”. Isso é bastante paradoxal, pois justamente quando acabaram as guerras civis, a função do guerreiro ganha uma formalização definitiva. Os guerreiros se tornam guerreiros no sentido pleno e simultaneamente se tornam inúteis. Muitos senhores feudais se revoltam contra o governo central, mas em vão. Isoladamente, não podem resistir ao shogunato e são exterminados.

Não é à toa que nesse período se desenvolve o culto do suicídio. Guerreiros se suicidam por lealdade a seus mestres, oprimidos pelo poder central. Monges se suicidam por sua fé. Amantes se suicidam por seu amor impossível, proibido pelas famílias, etc.. o sentido trágico da vida, o fatalismo e a coragem diante da morte se tornam valores permanentes da sociedade japonesa. A rigidez da Era Tokugawa manteve o Japão unido e permitiu um grande desenvolvimento de sua cultura. Os samurais, além da arte da espada, da qual se tornaram mestres inigualáveis, desenvolveram também a poesia, a pintura, a cerimônia do chá, etc.. O estudo e a arte, assim como a luta, também era seu privilégio e seu dever.

Mas essa situação era insustentável. A roda da História não parava de se mover no ocidente. Os países europeus passavam por uma revolução industrial e logo voltam a se expandir pelo mundo em busca de mercados. O mesmo aconteceu com os Estados Unidos. Em 1853 uma frota estadunidense ameaçou bombardear Tóquio caso o país não se abrisse para o comércio. A abertura que sobreveio foi um desastre para o Japão. No curto espaço de uma década, a economia feudal se desintegrou.

Na tentativa de remediar o desastre, a aristocracia japonesa promoveu um levante e derrubou o governo do último shogun Tokugawa, em 1868. O Imperador foi reinstalado no trono, no que foi chamado de Revolução Meiji. O pensamento dos autores dessa revolução era de que o Japão deveria se igualar em poder às potências ocidentais para não ser dominado por elas. O resultado dessa revolução seria a transformação das tradicionais famílias nobres em proprietários de grandes grupos empresariais, os zaibatsus. Honda, Toyota, Mazda, Mitsubishi, Matsushita, etc., são todos nomes de antigas famílias da aristocracia japonesa, que como os junkers alemães, se tornaram empresários modernos.

Katsumoto, o personagem de “O último samurai”, com seu tradicionalismo, foi pego no olho do furacão por essa transformação. Ao mesmo tempo que via no Imperador a salvação do país, contra a degradação que os estrangeiros trouxeram, ele não podia aceitar que os japoneses se rebaixassem a usar os mesmos métodos que os ocidentais, ou seja, armas de fogo. O problema prático é que qualquer guerra contra os estrangeiros somente poderia ser vencida com o uso de armas de fogo. Mas isso, para um samurai como Katsumoto, é apenas um detalhe. Como explicou Graham a Algren, a espada de um samurai é sua própria alma. Mais do que a degradação da técnica militar, o que revoltava Katsumoto era a degradação moral sob o capitalismo.

É nesse cenário que entra Nathan Algren. A trajetória deste personagem é praticamente idêntica à de John Dunbar, o protagonista de “Dança com lobos”. Tão idêntica que “O último samurai” pode até ser acusado de plágio. Mas ninguém acusou “Dança com lobos” de ser plágio de “Um homem chamado cavalo” e “Pequeno-grande homem”, dois “westerns” clássicos dos anos 70, portanto ficamos por isso mesmo. Assim como Dunbar, Algren é um oficial do exército estadunidense que se desilude com as promessas da carreira militar e decide experimentar uma vida diferente em outra forma de sociedade. As circunstâncias os levam a combater contra o exército estadunidense de onde saíram, pois compreendem que o modo de vida que adotaram, e que o exército estadunidense vem destruir, é mais humano do que a vida na sociedade burguesa.

Para cada personagem chave de “O último samurai”, há um equivalente no seu modelo “Dança com lobos”. Ambos os protagonistas, Algren e Dunbar, que correspondem um ao outro, estão cercados de uma série de figuras que também são correspondentes simétricos nas duas narrativas. Algren/Dunbar têm uma figura que funciona como guia nos estágios iniciais da viagem, na figura de Graham/Timons, um mestre na figura de Katsumoto/Pássaro esperneante, um rival que se torna amigo na figura de Ujio/Vento no cabelo, um garoto que o admira em Higen/Grande sorriso, um interesse romântico em Taka/De pé com punhos, um rival dentro do exército em Bagley/Spivey, um grupo de inimigos tribais nos ninjas/pawnees, etc..

O esquematismo desse modelo é evidente. Mas “O último samurai” é inferior na comparação com “Dança com lobos”. O início do filme é burocrático e apressado. A sociedade estadunidense de onde emerge Algren, na função de vendedor de armas, é explicitamente apresentada como degradada. O maniqueísmo explícito nunca é um bom começo para qualquer narrativa. Da mesma forma, a sociedade japonesa onde Algren se integra é um pastiche da estadunidense, um velho oeste em rápida mutação rumo ao capitalismo selvagem. Fica evidente que o exército de Omura e a passagem de Algren por ele são meros expedientes para que o protagonista encontre seu destino. O final do filme, por sua vez, é arrastado e também esquemático. Sobre os problemas do final, falaremos adiante.

O que interessa realmente é o miolo do filme, a viagem de Algren para a vila de Katsumoto e sua transformação em samurai. É essa viagem existencial que dá o pretexto para a observação que nos interessa. É lá que Algren encontra o alívio de sua consciência culpada pelo massacre de inocentes que perpetrou no passado. O processo de sua cura mental é quase uma psicanálise realizada por Katsumoto, que entretanto não se completa. O processo de psicanálise coincide com o processo de treinamento de Algren na arte da espada, trabalho do mestre Ujio. O ocidental aprende com Nobutada que deve abandonar suas preocupações, usar seus instintos, desapegar-se.

O problema inerente a um filme como este é que a filosofia samurai se dissolve numa mera técnica de relaxamento. Como se Tom Cruise tivesse resolvido ir a um “spa”. O filme serve como veículo para a busca de paz espiritual do astro, recém-saído de um casamento com Nicole Kidman. A ex- de Cruise já foi reconhecida como atriz competente e agraciada com um Oscar, prêmio que o astro ainda cobiça. “O último samurai” é sua mais nova tentativa de abocanhar o prêmio. A aposta é na sedução que o oriente exerce. Desde que os Beatles adotaram um guru indiano nos anos 1960, os astros da cultura pop ocidental tem buscado novidades milenares (sic) a serem exploradas: ora o Dalai Lama, ora Buda, ora o mosteiro Shao Lin; e agora o Japão.

Para esse fim Tom Cruise contratou dois gabaritados especialistas do ramo de filmes épicos, o diretor Edward Zwick, de “Lendas da paixão” e o roteirista John Logan, de “Gladiador”. Os dois são artesãos competentes. “O último samurai” é uma produção suntuosa e visualmente impecável. Estão lá as indefectíveis batalhas de samurais, no estilo de Akira Kurosawa. O seu problema neste particular é concorrer com “O Retorno do rei”. As batalhas em “O último samurai” são até mais selvagens, mas no geral perdem na comparação com o filme de Peter Jackson, que é disparado o favorito da temporada de épicos. Teremos ainda este ano “O mestre dos mares” e “Tróia”; e mais adiante, “Crusade”, de Ridley Scott e “Alexander”, de Oliver Stone. Quando Hollywood adere a uma moda, não brinca em serviço. Com a recente onda de filmes épicos, o sangue vai jorrar das telas.

A viagem turística de Tom Cruise/Algren pelo menos serve de pretexto para o que realmente interessa a este escriba, a exploração do modo de vida de uma vila japonesa tradicional. No país outrora governado pelos samurais, toda a sociedade era samurai. O ciclo da vida é encarado com extrema naturalidade e simplicidade. Os homens nascem, os homens morrem. A morte não é um problema para os orientais em geral, ao contrário do que é para os cristãos. Os ocidentais cristãos valorizam a vida, os japoneses valorizam a morte. Para os samurais, a morte é o próprio objetivo da vida. Vive-se para alcançar uma morte honrada.

A morte é tão mais honrada quanto tiver sido a vida. A vida deve ser dedicada à perfeição, em busca dessa morte honrada. Perfeição na luta, perfeição na arte, perfeição nos gestos, na fala, na conduta. Essa busca obsessiva e ascética pela perfeição se casa com o desapego. Não esqueçamos que no Japão a religião animista do xintoísmo combinou-se à filosofia budista, que prega exatamente o desapego como caminho para a felicidade. A harmonia dos camponeses com seu universo, com seu destino, sua natureza circundante, é quase utópica. É aí que está toda profundidade do filme, toda sua beleza e poesia. É por esta parte que o filme vale à pena ser visto, portanto não pretendo estragá-la com uma descrição detalhada.

Katsumoto, o líder dessa utopia, sabe que seu modo de vida está condenado. A contradição na qual sua ética o arremessa é na verdade irresolúvel. A integridade de seu modo de vida contrasta frontalmente com a indignidade da sociedade capitalista em que está se tornando o Japão. O contraste conceitual se transforma em confronto físico quando a cavalaria samurai arremete contra as metralhadoras do exército de Omura. Esse confronto físico exemplifica à perfeição o contraste entre dois tipos de sociedade, que cabe aos filósofos explicar. A favor das metralhadoras e canhões se coloca o filósofo alemão Hegel, quando diz que:

“ ‘O princípio do mundo moderno – o pensamento e o universal – deu à coragem uma forma superior, porque sua manifestação agora parece mais mecânica, não ato deste indivíduo particular, mas do membro de um conjunto. Além do mais, parece ter-se voltado não contra um único indivíduo, mas contra um grupo hostil, daí a bravura pessoal parecer impessoal. É por essa razão que o pensamento inventou o canhão, e a invenção desta arma, que transformou a forma da valentia exclusivamente pessoal em uma bravura mais abstrata, não é acidental’ ”.1

Ou seja, segundo o filósofo, o uso do canhão representa a forma mais elevada de coragem. Hegel é o representante ideológico máximo do Estado burguês. A ele cabe racionalizar as transformações que a sociedade capitalista traz a todos os aspectos da vida. Assim como o empresário industrial tirou ao trabalhador a posse dos seus meios de produção, o exército moderno tira ao guerreiro a posse de suas armas. Não mais samurais com espadas e sim soldados com fuzis. Tudo mais racional e moderno, conforme o espírito do mundo do capitalismo.

Mészaros desmistifica a absurda tentativa de Hegel de justificar o injustificável:

“O poder do capital de derrubar tudo – eliminando seu ancoradouro humano com a universalização da produção fetichista de mercadorias – é aqui espelhado na filosofia, virando de cabeça para baixo os valores humanos, em nome do ‘pensamento e do universal’.(...) Em última análise a lógica oculta da tendência atual do armamento moderno (...) não é a ‘bravura impessoal’, mas a destruição verdadeiramente impessoal de toda a humanidade: Holocausto e Hiroshima combinados em escala global.”2

Assim como o trabalho e a vida em geral, a arte da guerra também perde o sentido, quando é substituída pela indústria da destruição em massa. É por esse motivo que o estilo de vida samurai é humanamente superior ao militarismo moderno, apesar de ser uma forma militar arcaica. O Bushido envolve auto-aperfeiçoamento, cultura, ética, honra; o militarismo moderno consiste em apertar botões para destruir o inimigo á distância.

Em uma primeira análise, a cultura militar samurai não é melhor do que qualquer outro militarismo. Ou seja, uma cultura repressiva e reacionária, que muito facilmente se coloca a serviço da ordem estabelecida. Especialmente no caso dos samurais, o ofício militar se reveste de um orgulho aristocrático de classe. Esse orgulho elitista de uma casta ciosa de seus privilégios e seu poder de vida e morte sobre os plebeus dificilmente pode se tornar simpático. Isso só acontece quando os soldados, ao invés de oprimir seu povo, se colocam como defensores dos valores dessa sociedade, de sua cultura e sua honra, como Katsumoto. Para o samurai dedicado exclusivamente à arte da luta, a causa é na verdade irrelevante. O mais importante é o modo como se morre.

Para Katsumoto, um facínora como Custer, que massacrou os índios na conquista imperialista do oeste estadunidense, é tão heróico quanto Leônidas e seus trezentos homens, que nas Termópilas salvaram a Grécia da invasão persa. Deve-se perdoar Katsumoto por desconhecer a história estadunidense. Mas não se pode perdoar Algren, pois para ele Custer é um vilão apenas por ter levado seus soldados à morte e não pela causa em favor da qual lutava. Se é que se pode chamar o massacre dos nativos e o roubo de suas terras de causa. Do ponto de vista do soldado, porém, a causa é indiferente. O que importa é o heroísmo da luta. Por isso, para Katsumoto, Custer foi um herói. Mas isso não passa de um gracejo. Pois Custer era feito da mesma matéria de Bagley, o superior de Algren, que veio destruir os samurais.

O problema surge pois quando o próprio modo de vida samurai está em jogo. É esse o dilema do líder Katsumoto. Com o advento das armas de fogo, os samurais se tornam militarmente obsoletos. Contra a concorrência das metralhadoras, os samurais empreendem um ataque puramente ludita. A causa dos samurais somente se torna simpática porque, no caso presente, se coloca contra o avanço da degradação capitalista. Nem mesmo um filme estadunidense pode esconder isso. O seu sacrifício acaba sendo inútil e estúpido, mas sua mensagem ecoa até hoje.

O filme tenta transformar o significado dessa morte numa mensagem de superioridade moral, sem questionar o conteúdo das escolhas ideológicas de Katsumoto. Ademais, esse questionamento seria bastante problemático. O desenvolvimento posterior das relações EUA/Japão é embaraçoso, indo de Pearl Harbor a Hiroshima. O espectador sabe que o Japão moderno se tornou uma potência imperialista, entrando em guerra contra os próprios Estados Unidos de Algren. Assim, de certo modo, a mensagem de Katsumoto foi ouvida pelo Imperador, ainda que distorcida.

As espadas usadas pelos soldados do exército imperialista do Japão moderno ainda eram fabricadas de acordo com os métodos arcaicos da Era Tokugawa. O teste de qualidade das espadas japonesas era chamado de o-tameshi. O o-tameshi consiste num ritual em que se corta ao meio um cadáver humano deitado, com um golpe de espada, um golpe suemono-giri. As melhores espadas eram capazes de cortar dois ou três corpos empilhados, ou até cinco corpos. Consta que todas as espadas usadas pelo exército japonês na guerra russo-japonesa de 1904 passaram pelo teste o-tameshi cortando cinco corpos. Talvez isso explique porque o Império russo sofreu uma derrota tão acachapante, cuja crise subseqüente inclusive precipitou uma primeira tentativa fracassada de Revolução Russa em 1905. O exército imperialista japonês conservou muito da ética de sacrifício dos samurais. Dela deriva o impulso suicida dos “kamikaze”, os pilotos que arremessavam seus aviões carregados de explosivos sobre os navios estadunidenses nas batalhas da Segunda Guerra Mundial.

A causa de Katsumoto encontrou assim uma espécie de sobrevivência, mas não fica muito bem num filme feito para o público estadunidense se estender a respeito disso. Já é até ousadia demais mostrar o Imperador Meiji dizer ao embaixador estadunidense que seu tratado não interessa ao Japão. Dizer isso é bastante perigoso da parte de qualquer governante dos dias de hoje. Infelizmente, não há mais samurais à moda antiga para lembrar aos nossos governantes do dever de fazê-lo. O sacrifício de Katsumoto serviu pois para despertar o Imperador e subtrair o Japão da órbita do imperialismo estadunidense. Bom para o Japão, pior para os países que décadas depois foram vítimas do imperialismo japonês. No final das contas, o espírito de Omura, com seus interesses comerciais, acabou triunfando sobre a grandeza dos samurais. Os heróis morrem e submergimos todos no nível da mediocridade.

Esses desenvolvimentos no plano da História estão contidos em embrião no conflito dramático do cinema. Na impossibilidade de desenvolver concretamente as implicações ideológicas do conflito Omura/Katsumoto, o filme se contenta em apresentar um embate moral entre duas personalidades. Nessa restrição está a fraqueza do filme, a sua submissão aos cânones da narrativa cinematográfica estadunidense tradicional, com sua tendência para as conciliações que consolam o espectador.

Ao mostrar a morte de Katsumoto, “O último samurai” não se limita a uma mensagem puramente fatalista, ao estilo japonês, e insiste em conseguir a reabilitação moral póstuma do herói, ao estilo hollywoodiano. O público de cinema hollywoodiano está acostumado a ver o sacrifício do herói, como aconteceu por exemplo em “Matrix”, ou, para não fugir do mesmo registro épico, em “Coração Valente”. Mas o público aceita essas mortes porque é imediatamente consolado pela notícia de que o herói se saiu moralmente vencedor e sua causa de alguma forma triunfou, o que para a estética samurai é supérfluo. O esquema dramático de “O último samurai” permanece assim irremediavelmente cristão. Por isso não alcança a profundidade trágica dos verdadeiros filmes de samurai, como os de Akira Kurosawa.

A incompletude trágica do filme está expressa na falta de música japonesa tradicional na trilha sonora. A música em “O último samurai” não diz muito do espírito japonês, ao contrário do que acontece em “O tigre e o dragão”, por exemplo, cuja trilha sonora expressa musicalmente o espírito chinês. A música japonesa tradicional é triste, trágica, quase angustiante, mas sempre severa e serena, fatalista. A música ocidental usada em “O último samurai” não foge ao padrão hollywoodiano de violinos pesados e melosos, para induzir uma sensação forçada de triunfo, pois a estrutura narrativa do filme, com sua tentativa de produzir artificialmente um triunfo da causa do herói, assim o exige.

Nathan Algren se reduz a um portador da mensagem de Katsumoto. Por isso dissemos que ele não pode ser considerado um verdadeiro samurai. O destino do personagem não lhe concedeu essa honra. Por mais que Katsumoto tenha dito que o estadunidense recuperou sua honra na batalha, e que o próprio Algren tenha dito ao Imperador que se mataria, se ele assim o ordenasse, conforme manda a ética samurai; apesar disso fica no ar uma insatisfação com a sobrevivência de Algren. Para ser um verdadeiro samurai, deveria ter morrido no campo de batalha. Sobreviver é para os fracos. Mais do que sobreviver, o filme insinua que Algren voltou para a aldeia samurai, o que deve servir de consolação para aquela metade do público que foi ao cinema com interesses românticos.

Tom Cruise tentou o seu golpe perfeito, mas não conseguiu. Por um triz, por um pequeno detalhe, ele falhou. A fidelidade aos cânones da narrativa cinematográfica estadunidense tradicional o impede de ser um samurai de verdade, pois insiste em um final moralista como prêmio de consolação. O golpe perfeito deve ser dado com um só movimento, do desembainhar da espada à queda do objeto fendido. Sem hesitações, sem segunda tentativa, sem epílogo, sem consolação, sem remorso. “O último samurai”, por conta de suas hesitações, idas e vindas, finais duvidosos, não alcança essa perfeição. Não se trata de um verdadeiro suemono-giri.

Notas:
1. Istvan Mészaros, “Para além do capital”, Ed. Boitempo, SP 2002, pg. 186.
2. idem, pg 187.

Daniel M. Delfino

23/01/2004

Um comentário:

Alexandre disse...

Muito boa a tua análise do filme e de todas as implicações. Acho que vou rever o filme com outros olhos.
Parabens!