O segundo episódio da trilogia Matrix nos deixou numa situação idêntica à de Lênin em 1902, que se perguntava em um célebre opúsculo: “Que fazer?”. Como fazer a Revolução? A humanidade está sujeita a um sistema mecanizado e automatizado de exploração que rouba suas forças para se reproduzir e repor a dominação. Uma malha de relações sociais reificadas e ideologicamente mediatizadas configura uma realidade cuja aparência se sobrepõe à essência. O mercado concentra em si a totalidade das relações humanas e as impede de se desenvolver livremente.
A normalidade burguesa mascara a exploração. Em Matrix as máquinas escravizaram os homens para se abastecer de sua energia e os domesticaram por meio de uma rede neural de simulação. A Matrix proporciona um simulacro de relações sociais por meio de uma realidade virtual interativa e onipresente. Os humanos livres de Zion, como os bolcheviques de Lênin, estão às voltas com o mesmo problema. Que fazer?
Como derrotar o sistema? É possível simplesmente desligar às máquinas? Puxar o fio da tomada e apagar a simulação? Despertar todos os humanos ao mesmo tempo? É possível libertar todos os humanos de seus casulos? O que seria da humanidade lançada no deserto do real sem a simulação da Matrix? Os guerrilheiros de Zion, como os herdeiros presumidos de Lênin hoje, estão lutando para trazer a humanidade para o real ou para redesenhar uma nova Matrix, onde possamos nos beneficiar de máquinas que serão transformadas em infra-estrutura da sociedade?
À espera do terceiro e decisivo episódio da trilogia, este bolchevique e refugiado de Zion decidiu arriscar uma hipótese interpretativa. Não me proponho a querer adivinhar aqui o final do filme. Como os humanos vencerão ou se de fato vencerão. A forma como será resolvida a trama é o que menos importa. Proponho suspender a especulação sobre o desenrolar da trama e partir para um plano mais amplo, analisando o significado cultural de Matrix. Nesse plano, o que os irmãos Wachowski estão querendo dizer com sua trilogia, ou de que lado eles estão, passa a ser menos relevante.
Há em “Matrix” uma metáfora para o conjunto da cultura em sua relação com a sociedade que a produz. Há a infra-estrutura, as torres de casulos onde estão presos os humanos. E a superestrutura, a simulação de realidade que mantém esses humanos vivos e produzindo energia para as máquinas. A técnica da escrita, da imagem, da música, do cinema, a técnica da linguagem oral, são os recursos de programação pelos quais os oponentes do campo da cultura entram na disputa para construir a realidade como melhor lhes parece. Códigos que, como a cascata de caracteres verde-fosforescente da Matrix, moldam a cultura e a própria realidade.
A trilogia Matrix expõe assim uma estratificação social radical. No ambiente da realidade virtual, na Matrix, há apenas alguns poucos seres, humanos e não humanos, capazes de lidar com os códigos. A massa dos habitantes da Matrix não conhece senão os relances da luta que se trava entre os manipuladores da linguagem, porque a linguagem tornou-se-lhes inacessível. Uma pequena elite de iniciados domina os mistérios da programação, como hoje no mundo há uma pequena fração de consumidores e produtores de cultura erudita. Deles emanam os princípios e diretrizes estratégicas da política, da economia e também da cultura popular.
As fontes acadêmicas do discurso, encastelados em universidades, assalariados da grande mídia ou militando em sites alternativos; ditam as formas pelas quais o mundo é visto. Fornecem o código de programação que constrói a imagem da realidade. A cultura como ferramenta de disseminação da ordem, da desordem e também da liberdade. Há na Matrix, portanto, três correntes de intelectuais, ou seja, três tipos de manipuladores dos códigos culturais. Três maneiras de se utilizar dos códigos, de trabalhar com a cultura, que são próprias dessa elite intelectual, mas que lutam pela prerrogativa de serem irradiadas às massas.
Há os apologetas do sistema (positivistas, liberais, darwinistas-sociais, utilitaristas, pragmáticos, neoliberais), que correspondem aos agentes. Os defensores do sistema advogam a ordem, o progresso, a linearidade, a racionalidade instrumental e a cientificidade. Representam a presença esmagadora do sistema capitalista e a ubiqüidade de seu discurso. São as vozes da eficiência, da seriedade, da respeitabilidade burguesas (por isso engravatados). A voz da inevitabilidade. Palavra predileta do agente Smith.
Há os opositores do sistema (marxistas), que correspondem aos hackers de Zion, que querem desmascarar a Matrix. Os rebeldes denunciam a contradição, a fratura da ordem social, a dualidade de aparência e essência, a impossibilidade da neutralidade axiológica na ciência e no pensamento social. Dialeticamente, demonstram que a aparente normalidade da superfície das relações sociais (a Matrix) mascara uma essência em que as capacidades humanas estão sendo drenadas por uma máquina que busca reproduzir a si mesma (as cápsulas de bioenergia) e que nega qualquer autonomia ao ser humano.
Em nome dessa denúncia, os marxistas/rebeldes propõem não só desmascarar a exploração escondida na aparência das relações sociais burguesas. Propõem também alterar a própria essência dessas relações sociais, retirando os homens da máquina. Ou seja, subtrair espaços ao domínio do capital. Fazem isso na condição de conspiradores marginais ocultos nas franjas do sistema (em Zion) que se utilizam dele clandestinamente (através das linhas de telefone) para interferir no funcionamento da Matrix.
Através das linhas de telefone (internet?), que representam o meio por excelência de difusão da informação, os rebeldes/marxistas habitam a Matrix da cultura e tentam confrontar, em nítida situação de inferioridade, os agentes/apologetas do sistema. Os agentes/apologetas se beneficiam da sua familiaridade com o ambiente da Matrix. A ideologia do capital, desenhada por eles mesmos, lhes permite se utilizar de qualquer corpo ao seu alcance (todo e qualquer indivíduo sujeito à mistificação ideológica) para combater os rebeldes.
Os defensores do sistema são onipresentes e oniscientes, uma vez que a ideologia do capital goza de uma hegemonia planetária, que transforma automaticamente seus súditos em ferramentas dóceis ao manuseio de seus tentáculos e faz de seus adversários marginais desprezíveis. Como explica Istvan Mészaros: “‘Tanto os aspectos problemáticos quanto as características positivas da ideologia encontram sua explicação racional nas exigências objetivas do processo de reprodução social, de que a própria ideologia é um elemento orgânico(...)’ O poder da ideologia dominante é indubitavelmente imenso, mas isso não ocorre simplesmente em função da força material esmagadora e do correspondente arsenal político-cultural à disposição das classes dominantes. Tal poder ideológico só pode prevalecer graças à vantagem da mistificação, por meio da qual as pessoas que sofrem as conseqüências da ordem estabelecida podem ser induzidas a endossar, consensualmente, valores e políticas práticas que são de fato absolutamente contrários a seus interesses vitais.” Os habitantes da Matrix servem de bom grado ao sistema que os explora, emprestando seus corpos aos agentes para que combatam os rebeldes.
Além dessas duas categorias de habitantes, há uma terceira espécie de artesão no universo dos programadores/produtores de cultura. Há uma outra facção de entidades capazes de trabalhar com a linguagem da Matrix, ou seja com o pensamento que descreve, define e assim constrói a realidade. No mundo real há uma terceira categoria de filósofos e pensadores que não são nem marxistas nem defensores do sistema. Filósofos do meio. Filósofos da descrença.
Há os existencialistas (que se subdividem em heideggerianos e sartreanos), os fenomenologistas, os weberianos, os freudianos, os analíticos, os estruturalistas, os pós-estruturalistas, os pós-modernos, os nietzscheanos, os neo-kantianos, os foucaultianos. Há toda uma vasta gama de irracionalistas, anti-racionalistas, niilistas, céticos, “apolíticos”, alienados e alheios à fissura do abismo sob seus pés. Sofistas contemporâneos. Eruditos e provocadores capazes de distorcer qualquer idéia a serviço de qualquer causa, e primordialmente da sua própria. Comensais do Chateau de Merovingian, não se dizem contra nem a favor do sistema. Divertem-se provocando orgasmos na burguesia incauta, no banquete da desrazão.
Habitam uma espécie de submundo. Uma torre de marfim. De lá degustam os prazeres de sua erudição especulativa. Assim como os marxistas, também são contra as regras do sistema. Eventualmente, também combatem o sistema. Também são perseguidos pelos agentes. A censura também não suporta o clamor do martelo nietzscheano sobre sua mediocridade. Não pode admitir a discussão freudiana da sexualidade. O sistema não pode subsistir à corrosão do ácido do niilismo e do ceticismo, procurando impor, também aos filósofos da descrença a submissão e a deleção. Logo que é localizado, um programa exilado se torna um alvo prioritário da perseguição.
Mas ao contrário dos marxistas, rejeitam a possibilidade de transformar o sistema. A guerra de Zion contra as máquinas não lhes apetece. A revolução contra o capitalismo não lhes interessa. Não é a primeira vez que esse fenômeno acontece, diz Merovingian. Outras revoluções foram tentadas antes e a Matrix sempre se repôs. O eterno retorno. O que pode haver depois da Matrix? O que poderia haver depois da supressão da Vontade, perguntava Schopenhauer, o burguês no beco sem saída. O vazio, o nada, o impensável. O filósofo da descrença não está autorizado a conceber a superação do sistema.
Um programa, como o Merovingian, não pode conceber a aniquilação do sistema que lhe provê os meios de sua existência e também as ferramentas de seu poder. A casta dos intelectuais não sobreviveria sem a função instrumental de lubrificação ideológica do sistema. Suas idéias prolixas, diversionistas, escapistas, escandalosas, são o amortecedor para a conflituosidade inerente ao sistema social, impedindo que esta se manifeste radicalmente como oposição entre capital e trabalho. Os filósofos do meio também são úteis ao sistema, embora relutem em admitir.
No lado oposto, os marxistas/rebeldes de Zion somente vencerão se souberem lidar com tais filósofos. É preciso passar no teste de Seraph, o crivo da razão aristotélica que certifica o autêntico filósofo. É preciso jogar o jogo da sedução de Perséfone. É preciso saber decifrar as palavras do Oráculo. É preciso dispor das faculdades do Chaveiro, que abre as portas do labirinto do sistema. É preciso pois, dominar também a linguagem dos filósofos da descrença, apossar-se de suas chaves, seus códigos, seu jargão. Impedir que as pelejas dos nietzscheanos, dos freudianos, dos foucaultianos, sejam apropriadas pela dialética da assimilação e do aperfeiçoamento do próprio sistema.
É preciso sobretudo se manter humano. Se manter conectado com suas raízes materiais, lá em Zion. Lá onde a rave de Morpheus contagia os homens e mulheres livres. Onde se jogam fora o medo, as neuroses, as estruturas do superego formatador, a obediência ao sistema, a pressão pela produtividade, os imperativos da reprodução do capital internalizados como doenças da alma. E ao se libertar, podem encontrar a humanização e o amor personificados por Trinity. É preciso pisar com os pés descalços em Zion, onde os excluídos conduzem sua luta milenar pela possibilidade de se expressar e assim derrubar a Matrix.
Assim, qualquer um pode ler “Matrix” como quiser. O filme já não pertence aos irmãos Wachowski. Eles podem dar uma solução cômoda ao seu enredo, que na verdade não seria solução nenhuma. Podem dizer que tudo não passava de uma simulação dentro da simulação. Que de nada adianta lutar. Que os esforços para retirar os homens da Matrix acabam por lançá-los numa nova edição do sistema. Como Stalin fez com os esforços de Lênin. Ao optar por uma solução desse tipo, os irmãos Wachowski estarão se comportando como filósofos do meio.
Mas esse tipo de solução será inócua. As metáforas colocadas por eles em circulação ganham vida própria e continuam a se propagar e alcançar novas relações de significado. Os códigos de programação estão ao nosso alcance. Cada um pode escrever a Matrix que quiser. Nós vemos. Nós agora temos os óculos escuros.
Daniel M. Delfino
15/09/2003
P.S. Filme comentados:
Nome original: The matrix
Produção: Estados Unidos
Ano: 1999
Idiomas: Inglês
Diretor: Andy Wachowski, Larry Wachowski
Roteiro: Andy Wachowski, Larry Wachowski
Elenco: Keanu Reeves, Laurence Fishburn, Carrie-Ann Moss, Hugo Weaving, Gloria Foster, Joe Pantoliano, Marcos Chong, Julian Arahanga, Matt Doran, Belinda McClory, Anthony Ray Parker
Gênero: ação, thriller, ficção científica
Nome original: The matrix reloaded
Produção: Estados Unidos
Ano: 2003
Idiomas: Inglês, Francês
Diretor: Andy Wachowski, Larry Wachowski
Roteiro: Andy Wachowski, Larry Wachowski
Elenco: Keanu Reeves, Laurence Fishburn, Carrie-Ann Moss, Hugo Weaving, Helmut Bakaitis, Steve Bastoni, Monica Belluci, Daniel Bernhardth
Gênero: ação, thriller, ficção científica
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
A normalidade burguesa mascara a exploração. Em Matrix as máquinas escravizaram os homens para se abastecer de sua energia e os domesticaram por meio de uma rede neural de simulação. A Matrix proporciona um simulacro de relações sociais por meio de uma realidade virtual interativa e onipresente. Os humanos livres de Zion, como os bolcheviques de Lênin, estão às voltas com o mesmo problema. Que fazer?
Como derrotar o sistema? É possível simplesmente desligar às máquinas? Puxar o fio da tomada e apagar a simulação? Despertar todos os humanos ao mesmo tempo? É possível libertar todos os humanos de seus casulos? O que seria da humanidade lançada no deserto do real sem a simulação da Matrix? Os guerrilheiros de Zion, como os herdeiros presumidos de Lênin hoje, estão lutando para trazer a humanidade para o real ou para redesenhar uma nova Matrix, onde possamos nos beneficiar de máquinas que serão transformadas em infra-estrutura da sociedade?
À espera do terceiro e decisivo episódio da trilogia, este bolchevique e refugiado de Zion decidiu arriscar uma hipótese interpretativa. Não me proponho a querer adivinhar aqui o final do filme. Como os humanos vencerão ou se de fato vencerão. A forma como será resolvida a trama é o que menos importa. Proponho suspender a especulação sobre o desenrolar da trama e partir para um plano mais amplo, analisando o significado cultural de Matrix. Nesse plano, o que os irmãos Wachowski estão querendo dizer com sua trilogia, ou de que lado eles estão, passa a ser menos relevante.
Há em “Matrix” uma metáfora para o conjunto da cultura em sua relação com a sociedade que a produz. Há a infra-estrutura, as torres de casulos onde estão presos os humanos. E a superestrutura, a simulação de realidade que mantém esses humanos vivos e produzindo energia para as máquinas. A técnica da escrita, da imagem, da música, do cinema, a técnica da linguagem oral, são os recursos de programação pelos quais os oponentes do campo da cultura entram na disputa para construir a realidade como melhor lhes parece. Códigos que, como a cascata de caracteres verde-fosforescente da Matrix, moldam a cultura e a própria realidade.
A trilogia Matrix expõe assim uma estratificação social radical. No ambiente da realidade virtual, na Matrix, há apenas alguns poucos seres, humanos e não humanos, capazes de lidar com os códigos. A massa dos habitantes da Matrix não conhece senão os relances da luta que se trava entre os manipuladores da linguagem, porque a linguagem tornou-se-lhes inacessível. Uma pequena elite de iniciados domina os mistérios da programação, como hoje no mundo há uma pequena fração de consumidores e produtores de cultura erudita. Deles emanam os princípios e diretrizes estratégicas da política, da economia e também da cultura popular.
As fontes acadêmicas do discurso, encastelados em universidades, assalariados da grande mídia ou militando em sites alternativos; ditam as formas pelas quais o mundo é visto. Fornecem o código de programação que constrói a imagem da realidade. A cultura como ferramenta de disseminação da ordem, da desordem e também da liberdade. Há na Matrix, portanto, três correntes de intelectuais, ou seja, três tipos de manipuladores dos códigos culturais. Três maneiras de se utilizar dos códigos, de trabalhar com a cultura, que são próprias dessa elite intelectual, mas que lutam pela prerrogativa de serem irradiadas às massas.
Há os apologetas do sistema (positivistas, liberais, darwinistas-sociais, utilitaristas, pragmáticos, neoliberais), que correspondem aos agentes. Os defensores do sistema advogam a ordem, o progresso, a linearidade, a racionalidade instrumental e a cientificidade. Representam a presença esmagadora do sistema capitalista e a ubiqüidade de seu discurso. São as vozes da eficiência, da seriedade, da respeitabilidade burguesas (por isso engravatados). A voz da inevitabilidade. Palavra predileta do agente Smith.
Há os opositores do sistema (marxistas), que correspondem aos hackers de Zion, que querem desmascarar a Matrix. Os rebeldes denunciam a contradição, a fratura da ordem social, a dualidade de aparência e essência, a impossibilidade da neutralidade axiológica na ciência e no pensamento social. Dialeticamente, demonstram que a aparente normalidade da superfície das relações sociais (a Matrix) mascara uma essência em que as capacidades humanas estão sendo drenadas por uma máquina que busca reproduzir a si mesma (as cápsulas de bioenergia) e que nega qualquer autonomia ao ser humano.
Em nome dessa denúncia, os marxistas/rebeldes propõem não só desmascarar a exploração escondida na aparência das relações sociais burguesas. Propõem também alterar a própria essência dessas relações sociais, retirando os homens da máquina. Ou seja, subtrair espaços ao domínio do capital. Fazem isso na condição de conspiradores marginais ocultos nas franjas do sistema (em Zion) que se utilizam dele clandestinamente (através das linhas de telefone) para interferir no funcionamento da Matrix.
Através das linhas de telefone (internet?), que representam o meio por excelência de difusão da informação, os rebeldes/marxistas habitam a Matrix da cultura e tentam confrontar, em nítida situação de inferioridade, os agentes/apologetas do sistema. Os agentes/apologetas se beneficiam da sua familiaridade com o ambiente da Matrix. A ideologia do capital, desenhada por eles mesmos, lhes permite se utilizar de qualquer corpo ao seu alcance (todo e qualquer indivíduo sujeito à mistificação ideológica) para combater os rebeldes.
Os defensores do sistema são onipresentes e oniscientes, uma vez que a ideologia do capital goza de uma hegemonia planetária, que transforma automaticamente seus súditos em ferramentas dóceis ao manuseio de seus tentáculos e faz de seus adversários marginais desprezíveis. Como explica Istvan Mészaros: “‘Tanto os aspectos problemáticos quanto as características positivas da ideologia encontram sua explicação racional nas exigências objetivas do processo de reprodução social, de que a própria ideologia é um elemento orgânico(...)’ O poder da ideologia dominante é indubitavelmente imenso, mas isso não ocorre simplesmente em função da força material esmagadora e do correspondente arsenal político-cultural à disposição das classes dominantes. Tal poder ideológico só pode prevalecer graças à vantagem da mistificação, por meio da qual as pessoas que sofrem as conseqüências da ordem estabelecida podem ser induzidas a endossar, consensualmente, valores e políticas práticas que são de fato absolutamente contrários a seus interesses vitais.” Os habitantes da Matrix servem de bom grado ao sistema que os explora, emprestando seus corpos aos agentes para que combatam os rebeldes.
Além dessas duas categorias de habitantes, há uma terceira espécie de artesão no universo dos programadores/produtores de cultura. Há uma outra facção de entidades capazes de trabalhar com a linguagem da Matrix, ou seja com o pensamento que descreve, define e assim constrói a realidade. No mundo real há uma terceira categoria de filósofos e pensadores que não são nem marxistas nem defensores do sistema. Filósofos do meio. Filósofos da descrença.
Há os existencialistas (que se subdividem em heideggerianos e sartreanos), os fenomenologistas, os weberianos, os freudianos, os analíticos, os estruturalistas, os pós-estruturalistas, os pós-modernos, os nietzscheanos, os neo-kantianos, os foucaultianos. Há toda uma vasta gama de irracionalistas, anti-racionalistas, niilistas, céticos, “apolíticos”, alienados e alheios à fissura do abismo sob seus pés. Sofistas contemporâneos. Eruditos e provocadores capazes de distorcer qualquer idéia a serviço de qualquer causa, e primordialmente da sua própria. Comensais do Chateau de Merovingian, não se dizem contra nem a favor do sistema. Divertem-se provocando orgasmos na burguesia incauta, no banquete da desrazão.
Habitam uma espécie de submundo. Uma torre de marfim. De lá degustam os prazeres de sua erudição especulativa. Assim como os marxistas, também são contra as regras do sistema. Eventualmente, também combatem o sistema. Também são perseguidos pelos agentes. A censura também não suporta o clamor do martelo nietzscheano sobre sua mediocridade. Não pode admitir a discussão freudiana da sexualidade. O sistema não pode subsistir à corrosão do ácido do niilismo e do ceticismo, procurando impor, também aos filósofos da descrença a submissão e a deleção. Logo que é localizado, um programa exilado se torna um alvo prioritário da perseguição.
Mas ao contrário dos marxistas, rejeitam a possibilidade de transformar o sistema. A guerra de Zion contra as máquinas não lhes apetece. A revolução contra o capitalismo não lhes interessa. Não é a primeira vez que esse fenômeno acontece, diz Merovingian. Outras revoluções foram tentadas antes e a Matrix sempre se repôs. O eterno retorno. O que pode haver depois da Matrix? O que poderia haver depois da supressão da Vontade, perguntava Schopenhauer, o burguês no beco sem saída. O vazio, o nada, o impensável. O filósofo da descrença não está autorizado a conceber a superação do sistema.
Um programa, como o Merovingian, não pode conceber a aniquilação do sistema que lhe provê os meios de sua existência e também as ferramentas de seu poder. A casta dos intelectuais não sobreviveria sem a função instrumental de lubrificação ideológica do sistema. Suas idéias prolixas, diversionistas, escapistas, escandalosas, são o amortecedor para a conflituosidade inerente ao sistema social, impedindo que esta se manifeste radicalmente como oposição entre capital e trabalho. Os filósofos do meio também são úteis ao sistema, embora relutem em admitir.
No lado oposto, os marxistas/rebeldes de Zion somente vencerão se souberem lidar com tais filósofos. É preciso passar no teste de Seraph, o crivo da razão aristotélica que certifica o autêntico filósofo. É preciso jogar o jogo da sedução de Perséfone. É preciso saber decifrar as palavras do Oráculo. É preciso dispor das faculdades do Chaveiro, que abre as portas do labirinto do sistema. É preciso pois, dominar também a linguagem dos filósofos da descrença, apossar-se de suas chaves, seus códigos, seu jargão. Impedir que as pelejas dos nietzscheanos, dos freudianos, dos foucaultianos, sejam apropriadas pela dialética da assimilação e do aperfeiçoamento do próprio sistema.
É preciso sobretudo se manter humano. Se manter conectado com suas raízes materiais, lá em Zion. Lá onde a rave de Morpheus contagia os homens e mulheres livres. Onde se jogam fora o medo, as neuroses, as estruturas do superego formatador, a obediência ao sistema, a pressão pela produtividade, os imperativos da reprodução do capital internalizados como doenças da alma. E ao se libertar, podem encontrar a humanização e o amor personificados por Trinity. É preciso pisar com os pés descalços em Zion, onde os excluídos conduzem sua luta milenar pela possibilidade de se expressar e assim derrubar a Matrix.
Assim, qualquer um pode ler “Matrix” como quiser. O filme já não pertence aos irmãos Wachowski. Eles podem dar uma solução cômoda ao seu enredo, que na verdade não seria solução nenhuma. Podem dizer que tudo não passava de uma simulação dentro da simulação. Que de nada adianta lutar. Que os esforços para retirar os homens da Matrix acabam por lançá-los numa nova edição do sistema. Como Stalin fez com os esforços de Lênin. Ao optar por uma solução desse tipo, os irmãos Wachowski estarão se comportando como filósofos do meio.
Mas esse tipo de solução será inócua. As metáforas colocadas por eles em circulação ganham vida própria e continuam a se propagar e alcançar novas relações de significado. Os códigos de programação estão ao nosso alcance. Cada um pode escrever a Matrix que quiser. Nós vemos. Nós agora temos os óculos escuros.
Daniel M. Delfino
15/09/2003
P.S. Filme comentados:
Nome original: The matrix
Produção: Estados Unidos
Ano: 1999
Idiomas: Inglês
Diretor: Andy Wachowski, Larry Wachowski
Roteiro: Andy Wachowski, Larry Wachowski
Elenco: Keanu Reeves, Laurence Fishburn, Carrie-Ann Moss, Hugo Weaving, Gloria Foster, Joe Pantoliano, Marcos Chong, Julian Arahanga, Matt Doran, Belinda McClory, Anthony Ray Parker
Gênero: ação, thriller, ficção científica
Nome original: The matrix reloaded
Produção: Estados Unidos
Ano: 2003
Idiomas: Inglês, Francês
Diretor: Andy Wachowski, Larry Wachowski
Roteiro: Andy Wachowski, Larry Wachowski
Elenco: Keanu Reeves, Laurence Fishburn, Carrie-Ann Moss, Hugo Weaving, Helmut Bakaitis, Steve Bastoni, Monica Belluci, Daniel Bernhardth
Gênero: ação, thriller, ficção científica
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
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