Na quarta-feira 17/09/2003, estiveram presentes ao auditório da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP) vários intelectuais e militantes históricos do PT para o lançamento de um “Manifesto pelo Resgate do PT”. Estive na platéia deste evento na qualidade de estudante do curso de filosofia da USP e colaborador do site Duplipensar.net. Adianto que assisti ao lançamento do manifesto (como assisto ao curso) na qualidade de estudante avulso, sem vínculo com o movimento estudantil ou qualquer movimento ou partido, como o próprio PT.
Aproveito para acrescentar que embora seja estudante na citada Universidade, comparecer ao campus não é uma tarefa fácil nem corriqueira para quem mora e trabalha na Zona Leste, do outro lado da cidade. Aos que não conhecem São Paulo, é preciso explicar que a USP se localiza nos extremos da cidade, longe dos bairros mais populares, isolada como uma torre de marfim, desenhada para servir de oásis peripatético dos filhos da elite paulistana, inacessível a intrusos como eu. Para um morador da Zona Leste, estudar na USP é uma operação de guerrilha urbana. Uma jornada épica pelo trânsito insano da megalópole. Uma viagem de mais de hora em pleno “rush”, que consome diariamente os recursos e o ânimo deste teimoso escriba. Estudar na USP não é de graça.
Faço essa digressão autocomiserativa para explicar com que espírito compareço à Universidade, seja para as aulas, seja para eventos como este. Ou seja, com espírito de guerrilha, de resistência, de quixotesco idealismo. O que me leva a considerar frustrante o impacto do evento. Naquele frio entardecer de quarta-feira, participei de uma fria platéia, talvez quente em entusiasmo, mas significativamente pequena em quantidade. Os militantes do PT não compareceram em massa ao manifesto. Considero essa ausência sintomática. Os militantes ainda estão em compasso de espera. Ainda tentam decifrar a esfinge barbuda do Planalto. Para onde vai Lula? Vai ainda nos surpreender e governar tal e qual seus eleitores esperavam? Ou vai continuar aplicando com eficiência um receituário rigorosamente neoliberal?
A inexpressividade numérica do público presente ao lançamento do manifesto expressa a gravidade da situação e a urgência do próprio manifesto. O PT, na figura de seus militantes, ainda não despertou, como de resto o país ainda não despertou. A ficha ainda não caiu. Estão todos anestesiados pela esperança despertada na campanha eleitoral e transformada em euforia pelo resultado eleitoral. Está tudo errado. O PT contou com a paixão e o entusiasmo de seus militantes e os esforços de duas ou três gerações de militantes e lutadores sociais para chegar ao governo, mas precisou acima de tudo do assentimento da direita.
Contou também com a complacência da mídia, financeiramente combalida e com o recuo estratégico da oligarquia partidária. A oligarquia avançou um passo para recuar dois. Apoiou o PT para se aninhar em seu governo. Mudou na aparência para não mudar nada na essência. A máquina social brasileira continua girando com o sangue dos oprimidos do campo e da cidade. Com a diferença de que agora é pilotada pelo PT, nominalmente o partido dos de baixo. Nominalmente e também historicamente, pois há setores do partido que não se conformam com essa rendição.
Os autores do manifesto fazem a denúncia. De minha parte interpreto essa denúncia como uma tentativa do partido de se recobrar do engano. Quando os militantes e simpatizantes imaginavam que o partido houvesse feito concessões à direita na campanha para galgar o poder, descobriram que o partido havia contado com o esforço e a credibilidade da esquerda para governar com o programa da direita. Pensava-se que o partido estivesse enganando a direita, durante a campanha, para emplacar um governo de esquerda. Essa era a esperança. O que aconteceu foi o inverso, uma campanha “de esquerda” que resultou num governo de direita. Um balde de água fria. Dormiu-se num sonho e acordou-se num pesadelo. Uma inversão difícil de digerir. A desilusão engasga como um remédio amargo. Estávamos todos lá para digerir nossa dose.
Também é amargo saber que o momento histórico é único e não pode ser desperdiçado. O acúmulo de forças progressistas concretizado na eleição de Lula é uma vitória que pode não se repetir novamente em décadas. Dito de outra forma, um fracasso clamoroso do governo Lula seria uma derrota da qual a esquerda levaria décadas para se recuperar. Logo, o governo Lula deve ser chamado à responsabilidade histórica do cumprimento de seu verdadeiro programa. Mas deve também, ao mesmo tempo, ser preservado e defendido. A situação é grave e urgente, a ação deve se rápida e certeira.
O manifesto se expressou nas falas de alguns palestrantes ilustres. Em quinze minutos por cabeça, cada um expressou sua visão da situação.
Markus Sokol considerou inaceitável que o PT cogite em expulsar a Senadora Heloísa Helena e os demais “rebeldes”. E lançou a provocação. No dia em que os rebeldes forem expulsos, o diretório paulista lhes oferecerá nova ficha de filiação. Um partido que prima pela democracia em sua história e seu programa não pode aceitar a expulsão sumária de militantes históricos. Um Congresso Extraordinário do partido deve ser convocado para apurar a percepção dos militantes sobre os rumos do governo Lula e as diretrizes a serem adotadas pelo partido.
Jorginho da CUT trouxe a perspectiva do militante sindical fiel às suas raízes operárias. Segundo ele, o núcleo do partido ora no governo realizou a sua “revolução pessoal” e com isso se desincumbiu da tarefa de completar a revolução social. Trabalhadores esqueceram que são trabalhadores. Cada um dá à própria consciência desculpas para se acomodar ao sistema. Na acomodação de muitos, o ímpeto revolucionário sucumbe.
Por falar em refluxo da revolução, Jorginho nos remete a Stalin. O Guia Genial dos Povos está morto. Mas alguém esqueceu de avisar José Dirceu e Genoíno em Brasília. Com métodos stalinistas de pressão e intimidação, os “condottiere” do partido censuram o debate, impõem a linha e forçam a obediência. Nada pode se colocar no caminho das diretrizes traçadas.
Plínio de Arruda Sampaio Jr. expôs a impossibilidade da superação da grave situação econômica do país por meio de um programa neoliberal. O neoliberalismo coloca o país na dependência dos humores do capital especulativo. E o capital quer sempre mais. Não há lição de casa que baste. Não há bom-mocismo que sacie o apetite de Wall Street por mais juros altos, mais superávits primários, mais ajuste fiscal.
FHC governou 8 anos enredado nessa armadilha. Lula ainda não se mostrou disposto a tentar romper com ela, como já se mostrou Kirchner na Argentina. Um empréstimo de U$ 40 bilhões do FMI se transforma numa dívida de U$ 120 bilhões. Qual é a vantagem de recorrer ao FMI? Dever para o FMI é como dever para um banco. O Brasil entrou feio no cheque especial, mas não consegue sair. Só faz sentido recorrer a um banco quando se tem a perspectiva de futuramente receber mais do que aquilo que se retirou em empréstimo. O Brasil está impedido de crescer e gerar mais riqueza, que permitiria pagar a dívida, pelas normas do próprio banco para o qual deve.
A dívida é espúria, insustentável, socialmente criminosa. Ela coloca frontalmente o problema da prioridade do governo. Ou se paga a dívida ou se reconstrói o Estado para a prática de políticas sociais urgentes. Não há como fazer as duas coisas. Continuaremos, como na era FHC, esperando “ad infinitum” a tal retomada do crescimento. E Lula foi eleito para fazer tudo diferente.
Américo Kerr, fundador do PT e representante da classe dos docentes da USP, ainda não se dá por vencido na batalha da Previdência. Insiste em que é possível barrar o projeto no Senado. E reitera aquilo que já se sabe. O alegado déficit da Previdência é uma fraude intelectual escandalosa. Só há déficit quando se contabiliza os gastos com seguridade social e assistência a saúde como gastos previdenciários. Gastos que na verdade contam com outra fonte de financiamento, quais sejam as contribuições sociais como PIS/PASEP e Cofins. Contribuições cuja arrecadação, juntamente com a da Previdência, é mais do que suficiente para cobrir os gastos com o conjunto da seguridade. Mas isso teoricamente, porque na prática a arrecadação é desviada para o serviço da dívida.
Chico de Oliveira, o último a falar, indignado, chama Aloísio Mercadante de cretino. O Senador do PT expõe, em seu discurso no Senado, a idéia de que através dos fundos de pensão, os trabalhadores podem se tornar donos das empresas em que trabalham. Donos dos meios de produção. Os fundos de pensão são a nova ferramenta revolucionária do proletariado contra o capital. “Trabalhadores de todo o mundo, uní-vos nos fundos de pensão!”, ironizou Chico de Oliveira.
Paulo Arantes, professor aposentado de Filosofia da USP, foi o mais contundente. Utilizando-se de uma metáfora balneária, disse que o PT é irresgatável. É possível resgatar o banhista incauto que está se afogando no mar revolto. É um contra-senso querer resgatar o surfista que passeia na crista da onda. O PT está na crista da onda. O núcleo do partido que ocupa a direção do Estão está empenhado na realização do projeto de suas vidas. Apostaram nesse projeto e parecem dispostos a ir com ele até o fim.
O PT está a caminho de se transformar numa versão do PRI, o Partido Revolucionário Institucional que governou o México por 70 anos, quase o mesmo tempo do PCUS stalinista. O projeto para as eleições municipais de 2004 explicita o objetivo de se construir uma estrutura de poder de amplitude nacional, a serviço da linha ditada pelo “politburo” central. A diferença é que, no México, o PRI chegou ao poder depois de fazer uma revolução de fato. Somente depois se fossilizou como uma casta dentro do Estado mexicano.
Segundo Paulo Arantes a forma “partido” é uma forma socialmente morta. Um partido pode chegar ao poder e não mudar nada, como atesta tragicamente a vitória eleitoral do PT. A política eleitoral burguesa é uma farsa inócua. Fundar um novo partido não resolverá nada. Vencer eleições não resolve nada. Chegar ao governo não muda nada. A instituição está fossilizada e apodrecida. Os movimentos sociais precisam encontrar uma maneira de realizar transformações sem os partidos, contra os partidos, apesar dos partidos.
A questão aqui colocada pelo filósofo é bastante séria. Os movimentos sociais e ONGs estarão lidando com um governo que teoricamente lhes é favorável. Serão aliciados e cooptados pela oferta de verbas e cargos. O preço para isso será a obediência à linha doutrinária traçada. Cada militante, diante da oferta, deverá perguntar a si mesmo de que lado está. Do lado do governo ou ainda trabalhando para a mesma causa? As duas opções se tornarão, inconciliáveis, à medida que o programa neoliberal avança. Ontem foi a Reforma da Previdência. Hoje são os transgênicos. O que será amanhã? A ALCA? A dissolução da CLT?
Um a um os movimentos sociais, ONGs e sindicatos enfrentarão esse dilema. Ou serão premiados pela obediência ou criminalizados. Até onde irá a fidelidade? Haverá coragem para romper com a Santa Madre Igreja? Um a um os diferentes movimentos sociais e frações da sociedade descobrirão, a seu turno, para quem governa o PT. Cada setor tem seu tempo. Como os funcionários públicos tiveram o seu por ocasião da reforma da previdência.
A luta tem que se colocar num outro plano, além da esfera da política eleitoral. Como faz o MST, citado ao longo de toda a noite. O MST fornece o espelho no qual os autores do manifestam gostariam de ver a imagem do partido: combatividade, firmeza, compromisso real com a causa dos oprimidos. O MST expressa a impossibilidade de se compactuar com o modelo neoliberal imposto de fora. As carências históricas do povo brasileiro devem ser sobrepostas aos interesses do tal mercado. É preciso fornecer a pauta dos problemas, à revelia da agendas e compromissos da gestão do aparelho do Estado burguês. Paulo Arantes conclui dizendo que não acredita mais que o Partido dos Trabalhadores possa ser sacudido por uma tal virada. Mas é preciso lutar, quixotescamente, como se fosse possível.
Ao fim das falas, o debate. O microfone circula, oferecendo-se à platéia. Um militante exaltado, numa fala emocional, expõe a gravidade da situação. Qualquer um sabe, segundo ele, que é impossível derrotar a “nomenklatura” do partido numa simples assembléia de diretório local. Que dirá num Congresso Nacional Extraordinário do Partido, como o que o manifesto preconiza. A estrutura está viciada. A máquina trabalha a serviço dos interesses da fossilização e stalinização do partido. A luta será duríssima.
Prossegue o debate. Todos estão convidados a intervir. A bola está lançada.
Daniel M. Delfino
21/09/03
Aproveito para acrescentar que embora seja estudante na citada Universidade, comparecer ao campus não é uma tarefa fácil nem corriqueira para quem mora e trabalha na Zona Leste, do outro lado da cidade. Aos que não conhecem São Paulo, é preciso explicar que a USP se localiza nos extremos da cidade, longe dos bairros mais populares, isolada como uma torre de marfim, desenhada para servir de oásis peripatético dos filhos da elite paulistana, inacessível a intrusos como eu. Para um morador da Zona Leste, estudar na USP é uma operação de guerrilha urbana. Uma jornada épica pelo trânsito insano da megalópole. Uma viagem de mais de hora em pleno “rush”, que consome diariamente os recursos e o ânimo deste teimoso escriba. Estudar na USP não é de graça.
Faço essa digressão autocomiserativa para explicar com que espírito compareço à Universidade, seja para as aulas, seja para eventos como este. Ou seja, com espírito de guerrilha, de resistência, de quixotesco idealismo. O que me leva a considerar frustrante o impacto do evento. Naquele frio entardecer de quarta-feira, participei de uma fria platéia, talvez quente em entusiasmo, mas significativamente pequena em quantidade. Os militantes do PT não compareceram em massa ao manifesto. Considero essa ausência sintomática. Os militantes ainda estão em compasso de espera. Ainda tentam decifrar a esfinge barbuda do Planalto. Para onde vai Lula? Vai ainda nos surpreender e governar tal e qual seus eleitores esperavam? Ou vai continuar aplicando com eficiência um receituário rigorosamente neoliberal?
A inexpressividade numérica do público presente ao lançamento do manifesto expressa a gravidade da situação e a urgência do próprio manifesto. O PT, na figura de seus militantes, ainda não despertou, como de resto o país ainda não despertou. A ficha ainda não caiu. Estão todos anestesiados pela esperança despertada na campanha eleitoral e transformada em euforia pelo resultado eleitoral. Está tudo errado. O PT contou com a paixão e o entusiasmo de seus militantes e os esforços de duas ou três gerações de militantes e lutadores sociais para chegar ao governo, mas precisou acima de tudo do assentimento da direita.
Contou também com a complacência da mídia, financeiramente combalida e com o recuo estratégico da oligarquia partidária. A oligarquia avançou um passo para recuar dois. Apoiou o PT para se aninhar em seu governo. Mudou na aparência para não mudar nada na essência. A máquina social brasileira continua girando com o sangue dos oprimidos do campo e da cidade. Com a diferença de que agora é pilotada pelo PT, nominalmente o partido dos de baixo. Nominalmente e também historicamente, pois há setores do partido que não se conformam com essa rendição.
Os autores do manifesto fazem a denúncia. De minha parte interpreto essa denúncia como uma tentativa do partido de se recobrar do engano. Quando os militantes e simpatizantes imaginavam que o partido houvesse feito concessões à direita na campanha para galgar o poder, descobriram que o partido havia contado com o esforço e a credibilidade da esquerda para governar com o programa da direita. Pensava-se que o partido estivesse enganando a direita, durante a campanha, para emplacar um governo de esquerda. Essa era a esperança. O que aconteceu foi o inverso, uma campanha “de esquerda” que resultou num governo de direita. Um balde de água fria. Dormiu-se num sonho e acordou-se num pesadelo. Uma inversão difícil de digerir. A desilusão engasga como um remédio amargo. Estávamos todos lá para digerir nossa dose.
Também é amargo saber que o momento histórico é único e não pode ser desperdiçado. O acúmulo de forças progressistas concretizado na eleição de Lula é uma vitória que pode não se repetir novamente em décadas. Dito de outra forma, um fracasso clamoroso do governo Lula seria uma derrota da qual a esquerda levaria décadas para se recuperar. Logo, o governo Lula deve ser chamado à responsabilidade histórica do cumprimento de seu verdadeiro programa. Mas deve também, ao mesmo tempo, ser preservado e defendido. A situação é grave e urgente, a ação deve se rápida e certeira.
O manifesto se expressou nas falas de alguns palestrantes ilustres. Em quinze minutos por cabeça, cada um expressou sua visão da situação.
Markus Sokol considerou inaceitável que o PT cogite em expulsar a Senadora Heloísa Helena e os demais “rebeldes”. E lançou a provocação. No dia em que os rebeldes forem expulsos, o diretório paulista lhes oferecerá nova ficha de filiação. Um partido que prima pela democracia em sua história e seu programa não pode aceitar a expulsão sumária de militantes históricos. Um Congresso Extraordinário do partido deve ser convocado para apurar a percepção dos militantes sobre os rumos do governo Lula e as diretrizes a serem adotadas pelo partido.
Jorginho da CUT trouxe a perspectiva do militante sindical fiel às suas raízes operárias. Segundo ele, o núcleo do partido ora no governo realizou a sua “revolução pessoal” e com isso se desincumbiu da tarefa de completar a revolução social. Trabalhadores esqueceram que são trabalhadores. Cada um dá à própria consciência desculpas para se acomodar ao sistema. Na acomodação de muitos, o ímpeto revolucionário sucumbe.
Por falar em refluxo da revolução, Jorginho nos remete a Stalin. O Guia Genial dos Povos está morto. Mas alguém esqueceu de avisar José Dirceu e Genoíno em Brasília. Com métodos stalinistas de pressão e intimidação, os “condottiere” do partido censuram o debate, impõem a linha e forçam a obediência. Nada pode se colocar no caminho das diretrizes traçadas.
Plínio de Arruda Sampaio Jr. expôs a impossibilidade da superação da grave situação econômica do país por meio de um programa neoliberal. O neoliberalismo coloca o país na dependência dos humores do capital especulativo. E o capital quer sempre mais. Não há lição de casa que baste. Não há bom-mocismo que sacie o apetite de Wall Street por mais juros altos, mais superávits primários, mais ajuste fiscal.
FHC governou 8 anos enredado nessa armadilha. Lula ainda não se mostrou disposto a tentar romper com ela, como já se mostrou Kirchner na Argentina. Um empréstimo de U$ 40 bilhões do FMI se transforma numa dívida de U$ 120 bilhões. Qual é a vantagem de recorrer ao FMI? Dever para o FMI é como dever para um banco. O Brasil entrou feio no cheque especial, mas não consegue sair. Só faz sentido recorrer a um banco quando se tem a perspectiva de futuramente receber mais do que aquilo que se retirou em empréstimo. O Brasil está impedido de crescer e gerar mais riqueza, que permitiria pagar a dívida, pelas normas do próprio banco para o qual deve.
A dívida é espúria, insustentável, socialmente criminosa. Ela coloca frontalmente o problema da prioridade do governo. Ou se paga a dívida ou se reconstrói o Estado para a prática de políticas sociais urgentes. Não há como fazer as duas coisas. Continuaremos, como na era FHC, esperando “ad infinitum” a tal retomada do crescimento. E Lula foi eleito para fazer tudo diferente.
Américo Kerr, fundador do PT e representante da classe dos docentes da USP, ainda não se dá por vencido na batalha da Previdência. Insiste em que é possível barrar o projeto no Senado. E reitera aquilo que já se sabe. O alegado déficit da Previdência é uma fraude intelectual escandalosa. Só há déficit quando se contabiliza os gastos com seguridade social e assistência a saúde como gastos previdenciários. Gastos que na verdade contam com outra fonte de financiamento, quais sejam as contribuições sociais como PIS/PASEP e Cofins. Contribuições cuja arrecadação, juntamente com a da Previdência, é mais do que suficiente para cobrir os gastos com o conjunto da seguridade. Mas isso teoricamente, porque na prática a arrecadação é desviada para o serviço da dívida.
Chico de Oliveira, o último a falar, indignado, chama Aloísio Mercadante de cretino. O Senador do PT expõe, em seu discurso no Senado, a idéia de que através dos fundos de pensão, os trabalhadores podem se tornar donos das empresas em que trabalham. Donos dos meios de produção. Os fundos de pensão são a nova ferramenta revolucionária do proletariado contra o capital. “Trabalhadores de todo o mundo, uní-vos nos fundos de pensão!”, ironizou Chico de Oliveira.
Paulo Arantes, professor aposentado de Filosofia da USP, foi o mais contundente. Utilizando-se de uma metáfora balneária, disse que o PT é irresgatável. É possível resgatar o banhista incauto que está se afogando no mar revolto. É um contra-senso querer resgatar o surfista que passeia na crista da onda. O PT está na crista da onda. O núcleo do partido que ocupa a direção do Estão está empenhado na realização do projeto de suas vidas. Apostaram nesse projeto e parecem dispostos a ir com ele até o fim.
O PT está a caminho de se transformar numa versão do PRI, o Partido Revolucionário Institucional que governou o México por 70 anos, quase o mesmo tempo do PCUS stalinista. O projeto para as eleições municipais de 2004 explicita o objetivo de se construir uma estrutura de poder de amplitude nacional, a serviço da linha ditada pelo “politburo” central. A diferença é que, no México, o PRI chegou ao poder depois de fazer uma revolução de fato. Somente depois se fossilizou como uma casta dentro do Estado mexicano.
Segundo Paulo Arantes a forma “partido” é uma forma socialmente morta. Um partido pode chegar ao poder e não mudar nada, como atesta tragicamente a vitória eleitoral do PT. A política eleitoral burguesa é uma farsa inócua. Fundar um novo partido não resolverá nada. Vencer eleições não resolve nada. Chegar ao governo não muda nada. A instituição está fossilizada e apodrecida. Os movimentos sociais precisam encontrar uma maneira de realizar transformações sem os partidos, contra os partidos, apesar dos partidos.
A questão aqui colocada pelo filósofo é bastante séria. Os movimentos sociais e ONGs estarão lidando com um governo que teoricamente lhes é favorável. Serão aliciados e cooptados pela oferta de verbas e cargos. O preço para isso será a obediência à linha doutrinária traçada. Cada militante, diante da oferta, deverá perguntar a si mesmo de que lado está. Do lado do governo ou ainda trabalhando para a mesma causa? As duas opções se tornarão, inconciliáveis, à medida que o programa neoliberal avança. Ontem foi a Reforma da Previdência. Hoje são os transgênicos. O que será amanhã? A ALCA? A dissolução da CLT?
Um a um os movimentos sociais, ONGs e sindicatos enfrentarão esse dilema. Ou serão premiados pela obediência ou criminalizados. Até onde irá a fidelidade? Haverá coragem para romper com a Santa Madre Igreja? Um a um os diferentes movimentos sociais e frações da sociedade descobrirão, a seu turno, para quem governa o PT. Cada setor tem seu tempo. Como os funcionários públicos tiveram o seu por ocasião da reforma da previdência.
A luta tem que se colocar num outro plano, além da esfera da política eleitoral. Como faz o MST, citado ao longo de toda a noite. O MST fornece o espelho no qual os autores do manifestam gostariam de ver a imagem do partido: combatividade, firmeza, compromisso real com a causa dos oprimidos. O MST expressa a impossibilidade de se compactuar com o modelo neoliberal imposto de fora. As carências históricas do povo brasileiro devem ser sobrepostas aos interesses do tal mercado. É preciso fornecer a pauta dos problemas, à revelia da agendas e compromissos da gestão do aparelho do Estado burguês. Paulo Arantes conclui dizendo que não acredita mais que o Partido dos Trabalhadores possa ser sacudido por uma tal virada. Mas é preciso lutar, quixotescamente, como se fosse possível.
Ao fim das falas, o debate. O microfone circula, oferecendo-se à platéia. Um militante exaltado, numa fala emocional, expõe a gravidade da situação. Qualquer um sabe, segundo ele, que é impossível derrotar a “nomenklatura” do partido numa simples assembléia de diretório local. Que dirá num Congresso Nacional Extraordinário do Partido, como o que o manifesto preconiza. A estrutura está viciada. A máquina trabalha a serviço dos interesses da fossilização e stalinização do partido. A luta será duríssima.
Prossegue o debate. Todos estão convidados a intervir. A bola está lançada.
Daniel M. Delfino
21/09/03
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