30.4.07

Atentados em Bagdá




O terrorismo volta a atacar. Um caminhão-bomba explode o escritório da ONU em Bagdá, matando, entre dezenas de vítimas, o brasileiro Sérgio Vieira de Melo, chefe da missão. Horror. Escândalo. Estupefação. Indignação da mídia nativa. Um brasileiro? Como eles se atrevem?! Um homem da paz, dos direitos humanos! Como são maus esses terroristas! O tom da cobertura da mídia brasileira é emocional e infantilizante. O presidente Lula colabora, lamentando protocolarmente a perda de mais uma vítima do terror.

“Oh, pobres de nós”, lamuriam-se os jornais. “Também somos vítimas do terror! Papai Bush, proteja-nos! Livre-nos desses homens malvados de máscara preta!”, rezam em coro os assustados editorialistas. Internalizam e destilam o veneno do conformismo e da aceitação do poder dominante. Enquanto isso, o público se esforça para entender a dimensão da tragédia que nos abate. Perdemos um filho querido.

O estúpido orgulho nacional exulta com a notoriedade alcançada. O Brasil tem agora o seu mártir da paz. O Brasil também faz parte do mundo. Estamos nos holofotes! Somos o centro do mundo! O Secretário Geral da ONU virá ao Brasil para o velório. Que honra a nossa! Podemos agora fazer o papel de meninos bem-comportados, membros exemplares do mundo ocidental, o mundo livre que carrega o pesado fardo de civilizar os bárbaros e islâmicos. O fardo do homem branco de Rudyard Kipling também é nosso. Também demos nossa cota de sangue à heróica missão civilizatória do capital.

Que coisa feia eles fizeram, explodir um caminhão bomba... Porque não se miram no nosso exemplo, na nossa convivência pacífica, na cordialidade do povo brasileiro? No exemplo do país em que não há violência? (!?)

Não estamos aqui ironizando o sofrimento sincero de parentes e amigos. Muito menos desprezando a figura de Vieira de Melo, cujo trabalho é digno de respeito, como veremos adiante. O que procuramos mostrar é o estado de prostração mental e apatia crítica dos meios de comunicação em sua incapacidade de avaliar o significado da tragédia.

Sentimentos piegas à parte, o que está em jogo é mais uma operação de teatralização da guerra. Da guerra contra o terror. O brasileiro estava sendo um obstáculo aos planos dos Estados Unidos no Iraque. Ao aceitar liderar o trabalho da ONU, Sérgio Vieira de Melo põe em prática o sistema da ONU, com a convicção e a diplomacia de que só é capaz um homem formado em filosofia pela Sorbone. Ora, o sistema da ONU para países em conflito é inviável para as pretensões estadunidenses. Entre outras coisas, a ONU trata de reconstruir uma institucionalidade local, forçando as lideranças locais a assumir os interesses da população local e se comportar de forma responsável.

Como foi feito em Timor Leste. Uma operação inédita de engenharia institucional que tentou construir serviços públicos e instituições governativas viáveis num micro-país destruído por décadas de ocupação e por uma onda de vandalismo e violência revanchista dos indonésios inconformados com a independência recém-conquistada. O aparente sucesso da operação no Timor credenciou Vieira de Melo como símbolo do sistema da ONU para o século XXI. A reconstrução do Iraque poderia ser a consagração desse sistema. Que não é outro senão a implantação dos princípios de democracia e direitos humanos da Carta das Nações Unidas, um esboço da possível Constituição de um estado burguês em nível mundial. Conquista utópica nesse mundo ainda bárbaro e medieval.

A intervenção da ONU no Iraque poderia ser a saída para os EUA do atoleiro em que se meteram. Sem a menor noção de como governar um território estrangeiro ocupado, os Estados Unidos precisaram recorrer, a contragosto, para a credibilidade da ONU. Os Estados Unidos sempre governaram outros países com a colaboração de corruptos governantes locais. Agora que depuseram o governante que eles próprios implantaram, não sabem como consertar a confusão. Descobriram, surpresos, que os iraquianos não estavam morrendo de ansiedade para abraçar o “American way of life”.

Ainda caçam os remanescentes do regime de Saddam, enquanto a resistência à ocupação se aglutina sob a liderança de grupelhos desarticulados que proliferam a esmo, capitalizando uma hostilidade ao ocidente que é dominante na população. Grupos que faziam oposição a Saddam e agora fazem aos Estados Unidos. Ruim com Saddam, pior com Bush. É o que pensam frações do povo iraquiano que nunca aceitaram um e nem querem aceitar o outro. Dinâmicas soterradas há décadas voltam a se mover.

Curdos, xiitas e sunitas querem fazer valer suas reivindicações. Particularidades que as potências imperialistas ignoraram quando, no fim da I Guerra Mundial, dividiram o mapa do Oriente Médio segundo suas conveniências e entregaram os governos a corruptas dinastias petroleiras. Juntar umas tribos aqui, outras ali e fazer um país aqui e outro ali, um para os ingleses, outro para os franceses, como crianças bem educadas dividindo seus brinquedos. Uma Arábia Saudita, um Iraque, uma Síria, uma Jordânia, um Líbano. Mais tarde um Israel. Que importa se ali viviam palestinos? Não era mesmo para funcionar. Era para ser um grupo de países de mentirinha, de fachada, para dar legitimidade à exploração de petróleo pelas multinacionais ocidentais. O Irã é a exceção, por conta da homogeneidade étnica e religiosa de sua população persa e islâmica xiita.

Agora, os países não querem mais ser de fachada. O próprio Irã deu o exemplo do que é ser um país autônomo, ainda que governado por uma teocracia obscurantista. O que os povos do Oriente Médio querem, da Palestina ao Iraque e Afeganistão, é ter governos que os representam. Não há mais espaço para a farsa. A década da globalização alardeou para o mundo aos quatro ventos as virtudes da democracia e do mercado. O estado último da civilização. Agora, os povos de todo o mundo querem experimentar. Querem de alguma maneira ser donos de seus países. Aqui e alhures despertam para essa realidade, essa possibilidade, esse desejo. O nacionalismo renasce, à esquerda e à direita.

Alheios a tudo isso, os EUA imaginaram manter o controle da farsa. Manter o poder de fato e a aparência de direito, sob a égide da ONU. A ONU, por sua vez, aceitou o risco. Fez uma aposta estratégica arriscada e perdeu. Enviou um de seus mais brilhantes quadros, provável sucessor do Secretário-Geral, para consertar a esparrela armada pelos bufões de Bush.

Se desse certo, a ONU estaria qualificada para dar um pito nos Estados Unidos: “Viram só? É assim que se faz!” Se desse errado, o mundo teria que ouvir dos EUA: “Viram só? Esses terroristas não tem jeito mesmo! Nada de democracia e direitos humanos para eles! O negócio é bala e arame farpado! Só mesmo nossos marines para resolver o problema!”. Os Estados Unidos estavam certos ao convocar a ONU. Agora estão certos ao dispensar a ONU. Os Estados Unidos estão sempre certos, por mais que estejam errados. Mais importante que os fatos é a versão que se dá deles. A guerra de informação (desinformação) é mais importante que a guerra real. Propaganda é a alma do negócio.

Os israelenses aplaudem. É justamente o que querem fazer na Palestina ocupada. O mundo assiste a mais uma operação de palestinização. De um lado, fanáticos terroristas dispostos a dar a vida pela causa. De outro, governantes autoritários dispostos a manter o poder a qualquer custo, passando por cima das mais elementares regras de respeito à pessoa humana. No meio do fogo cruzado, a grande massa inerte da população “normal”, daqueles que não aderem aos discursos radicais. O povo é refém de seus dominadores e também de seus libertadores. Ninguém consegue raciocinar, a emoção domina.

O outro é inimigo, as mortes sofridas tem que ser vingadas, alguém tem de dar um basta nessa situação. Quanto mais violenta e espetacular a solução melhor. Muro de um lado, caminhões-bomba do outro. No meio do caminho, quem apenas quer viver vidas normais, oscilando entre a dor, o ódio, o desespero, a incompreensão, a apatia, o sonho de uma paz inalcançável.

Daniel M. Delfino

24/08/2003

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