30.4.07

Os Estados Unidos morderam a isca




Os Estados Unidos são um país sui generis. O povo estadunidense desfruta de seu conforto e riqueza na absoluta ignorância daquilo que se passa no resto do mundo. Devido a essa ignorância, o povo desconfia de seu próprio governo, de seus órgãos de inteligência, de suas operações no exterior. O povo estadunidense sabe que seu governo anda metido em sujeira pelo mundo afora, ultrapassando a soberania de outros países para impor os interesses de suas mega-corporações, e que os engana na própria América também.

Ao mesmo tempo, o estadunidense médio ainda acredita piamente que seu país é a terra da virtude e da justiça. Deus está do seu lado. A verdade e a razão estão ao seu lado. Como é possível conciliar, no imaginário coletivo, essas duas crenças contraditórias? A virtude do povo e a vilania do governo? Através do cinema, obviamente. Se no Brasil tudo acaba em samba (ou em pizza), nos Estados Unidos, tudo acaba em filme. O destino natural de toda história, reportagem, livro, peça de teatro, história em quadrinho ou biografia é virar um filme.

Mais do que um mero produto de exportação mundial da indústria cultural, o cinema de Hollywood é a usina onde se forjam conciliações ideológicas, ideais políticos, filosofias de vida e modelos comportamentais. Um dos mitos básicos mais explorados pela indústria cinematográfica é o confronto entre Davi e Golias. Assim como toda história de amor imita Romeu e Julieta, para ser suficientemente dramática, toda história de aventura, para ser suficientemente emocionante, imita a lendária disputa bíblica entre o jovem e o gigante. Todo mocinho de filme estadunidense é a princípio inexperiente, relutante, desastrado, motivo de riso, até se defrontar com uma força infinitamente superior, para vencer o desafio com seu instinto, seu charme e sua boa sorte.

Esse mito funciona quando opõe os heróis vindos do povo contra os figurões do governo e das corporações. Mas derrapa quando é usado para opor heróis estadunidenses a inimigos externos. No panorama mundial, os Estados Unidos são o Golias da história. Eles são o gigante opressor que castiga os fracos e indefesos ao redor daquilo que enxergam como seu quintal mundial. Enquanto que para consumo interno, o público estadunidense continua acreditando que seus rapazes de farda são os Davis, os pobres e indefesos defensores dos valores nacionais, cercados por uma malta inominável de vilões hostis e malvados. É essa esquizofrenia que subjaz ao argumento de inúmeros filmes de guerra, desde a série sobre a Guerra do Vietnã, de longa tradição, até mais recentes, como “Falcão Negro em Perigo”. Sempre os mesmos jovens e virtuosos, retratados como heróis indefesos diante de milicianos famélicos que morrem como moscas, porque suas vidas valem mesmo muito menos que as dos marines.

De um jeito ou de outro, Golias enxerga a si mesmo como Davi. Essa ilusão ganha realidade quando um atentado como o de 11 de Setembro passado revela aos estadunidenses até onde vai a disposição daqueles que os odeiam. Subitamente, se descobrem cercados por uma humanidade hostil e vingativa. E redescobrem o próprio heroísmo. A ilusão de Davi e Golias se torna real pelas mãos de um presidente dedicado a explorar a ignorância de seu povo para se impor pelo medo. Eles, os coitadinhos, as vítimas a nação inocente e desprotegida, inofensiva embora dona de milhares de ogivas nucleares, tem que se proteger contra os diabólicos inimigos externos.

A ignorância provinciana do cidadão estadunidense médio se combina com o oportunismo de uma claque política criptofascista disposta a tudo para fazer valer os interesses das corporações petrolíferas e armamentistas. Disposta inclusive a passar por cima, como o fez, das urnas, da Constituição, da ONU, do direito internacional e da soberania dos povos. Numa inversão de palavras e de valores capaz de fazer corar Orwell, a retórica oficial da Casa Branca, coadjuvada pela CNN e suas congêneres, transforma o governo Bush em vanguarda da civilização contra a barbárie islâmica.

Até aí, nada de novo. A década de Clinton, os anos 1990, foram a década da globalização, a década de um discurso único, de liberdade dos mercados, que na verdade era a liberdade para as megacorporações atuarem nos mercados dos outros. Incautos de diversas proveniências compraram esse discurso como supra-sumo de modernidade. Agora, no alvorecer do século XXI, os ingratos do terceiro mundo retribuem essa década de benevolência neoliberal com um atentado monstruoso. Que morram então todos os terroristas! Washington pega em armas. O tio Bush quer você para o exército!

A falência da globalização, demonstrada pelas crises do México, da Ásia, da Rússia, do Brasil, da Argentina, da Nasdaq, fica em segundo plano diante da apocalíptica guerra contra o terrorismo. Ninguém mais está preocupado com a fragilidade do sistema econômico mundial, com sua crise permanente em estado de iminência, com a insolvência dos países pobres, com os balanços forjados das megacorporações. Tudo isso é secundário diante de uma cinematográfica luta do bem contra o mal: de um lado, o Pentágono, fortaleza avançada da racionalidade capitalista, imperialista e patriótica; de outro, a Al Qaeda, a rede do mal, soturna, oblíqua, oculta, como o lado negro da força. Uma autêntica obra de ficção, um bode expiatório, um vilão para todas as horas. Problemas na economia? Medo de perder as eleições por patente incompetência administrativa? Uma manchete sensacionalista resolve, mudando o foco das questões: “atenção! A Al Qaeda ameaça fazer novos atentados!”

Os atentados deram legitimidade política à facção mais reacionária e particularista do capital estadunidense, as finanças, o petróleo e a indústria armamentista, através de seus prepostos expressamente mercenários no governo Bush. Disso já se sabia há muito. O que se especulava era sobre a possibilidade dos atentados terem algum efeito pedagógico sobre a opinião pública, ensinando-a a questionar os atos de seu governos e os efeitos de sua políticas sobre o mundo. As recentes eleições gerais demonstram que ocorreu precisamente o contrário.

Os eleitores morderam a isca. Caíram na retórica do medo na paranóia criada pelo Grande Irmão Presidente, no frenesi de uma vingativa guerra sem fim e sem objetivos concretos. O que é o terrorismo? Quem são os terroristas? Bush sabe. Bush, o debilóide. A ele é confiada a liderança do mundo livre nessa guerra. Uma guerra contra um inimigo sem contornos definidos, sem critérios para escolher seus alvos nem para se declarar encerrada. Uma guerra contra os inimigos internos e externos. Uma guerra feita para durar para sempre, para dar o poder eterno à indústria armamentista, o fôlego extra a uma economia combalida que passa a estar lastreada em crédito para o consumo destrutivo armamentista; uma guerra para estabelecer o estado de sítio permanente, o estado de exceção na “maior democracia do mundo”, a suspensão dos direitos civis das minorias e dos estrangeiros e simpatizantes automaticamente tornados suspeitos, a denúncia sistemática, a tortura, o ódio. Em suma, todos os elementos previstos por Orwell em “1984”!

O paroxismo do totalitarismo, previsto na célebre utopia negativa como uma crítica aos desvios do socialismo real, realiza-se agora em pleno auge da globalização capitalista ocidental e estadunidense! Depois de dez anos da queda do muro, o sistema “vencedor” da Guerra Fria revela ao mundo sua verdadeira face irracional, opondo dois inimigos igualmente bárbaros, medievais, Bush e Bin Laden (ou Saddam, ou qualquer outro boneco do “eixo do mal”), num conflito que ameaça arrastar o mundo para um turbilhão de desgraças que todos já imaginavam ter ficado para trás, na primeira metade do trágico século XX.

Daniel M. Delfino

19/11/2002

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