30.4.07

A ditadura de 1964 não acabou




O golpe de 1964 foi o suicídio do país. O Brasil morreu naquele dia. A data não poderia ser mais perfeita: 1o. de Abril, o folclórico dia da mentira. Os militares demonstraram, em meio a milhares de seus erros, o acerto monumental do “timing”. Quem mais poderia fazer uma Revolução no dia 1o. de Abril, o dia da mentira? Ao invés de uma data histórica, temos uma farsa grotesca. Tanto é verdade que os setores oficiais se esforçam para fazer com que a data correta do “movimento” seja “comemorada” em 31 de Março, para fugir do vexame do 1o. de Abril.

O golpe de 1964 é apresentado por seus autores como “Revolução”. O absurdo dessa proposição é evidente. O conceito de revolução faz parte do patrimônio teórico e proposicional da esquerda. A esquerda é historicamente o setor da sociedade que propõe transformá-la por inteiro. É a essa transformação que se dá o nome de Revolução. Os militares brasileiros, em 1964, não trouxeram nenhum modelo novo de sociedade. Pelo contrário, apenas aprofundaram os abismos de desigualdade da sociedade já existente. O “movimento” de 1964 não trouxe nenhuma forma nova de organização social, apenas uma reorganização das formas políticas. Uma tomada de poder por meio da força rompendo com a institucionalidade democrática. Um simples golpe de estado.

Teria sido mais apropriado chamar o golpe de 64 de “Contra-Revolução”. Os militares de 64 teriam se levantado contra um movimento de transformação em curso na sociedade, sustando uma revolução em andamento. Exceto pelo fato de que o período do pré-64 não era revolucionário, mas reformista. Não havia uma revolução de fato em andamento. O governo de Jango, sob o signo do trabalhismo, herdado de Getúlio, colocava em curso um conjunto de mudanças de tipo reformista, não revolucionário.

Mas o reformismo já era demais para os militares. O povo chamado a participar da construção do país era algo que horrorizava a elite quatrocentona, a mídia esmagadoramente conservadora (tanto nos idos de então como ainda hoje) e os fiéis lacaios do imperialismo. A simples presença de comunistas nos movimentos sociais que apoiavam o presidente Jango já era o suficiente para espalhar o temor de uma revolução de fato, servindo de pretexto para o golpe.

A agenda reformista de Jango buscava tão somente colocar o Brasil nos eixos de um estado burguês moderno. O Brasil não tivera a sua revolução burguesa. Ao contrário dos países capitalistas desenvolvidos, que criaram seus Estados de tipo burguês nos séculos anteriores, o Brasil estava atrasado na corrida. As tentativas brasileiras de se modernizar ao longo do século XX foram a última chance de o país vir a se constituir como uma nação capitalista completa, o que não veio a se confirmar. Permanecemos sendo um aborto de país.

Nas revoluções burguesas clássicas (Inglaterra-1688, Estados Unidos-1776, França-1789, Japão-1868, Alemanha-1871) a burguesia afasta do poder a aristocracia, cria o Estado baseado na igualdade jurídica dos cidadãos e lança as bases em que pode se desenvolver o capitalismo, preparando-se para enfrentar no plano econômico a oposição de classe do proletariado moderno e para enfrentar as guerras internacionais de competição imperialista.
No Brasil, nenhum desses processos se completou. A classe dirigente brasileira jamais subtraiu o país da órbita de influência das potências capitalistas desenvolvidas. Sempre fomos o aluno exemplar, bem comportado, que faz a lição de casa do FMI. As oligarquias jamais foram afastadas do poder político (nem mesmo no século XXI). O Estado sempre foi visto como uma extensão do patrimônio pessoal dos membros da classe dominante, a aristocracia tradicional baseada na posse da terra e a burguesia “cosmopolita” esnobe que dela descende. A igualdade jurídica jamais passou de uma quimera, mero corolário formal para o poder material instituído.

O poder econômico nacional jamais enfrentou uma verdadeira competição que o obrigasse a desenvolver as forças produtivas capitalistas. Preferiu sempre socializar os prejuízos à custa do Estado e dos pobres. Desde o Império, a política econômica do Estado brasileiro sempre foi de transferir renda da sociedade para o setor parasitário da economia (hoje representado pelos banqueiros nacionais e internacionais), penalizando a população pobre. A reforma agrária jamais foi feita. Nunca foi criado um mercado consumidor de massas interno. O Estado nunca investiu suficientemente em infra-estrutura social e material para o desenvolvimento. Sem essas condições, o Brasil jamais poderia se tornar um país capitalista e desenvolvido.

No século XX foram feitas as últimas tentativas de encaminhar um desenvolvimento capitalista de tipo autônomo, principalmente através de Vargas e de seus herdeiros, como Jango. O fato de que seria necessário fazer concessões aos setores populares, como reforma agrária e direitos trabalhistas, para que o desenvolvimento capitalista no Brasil pudesse alcançar o dos países centrais foi porém considerado agressivo demais pela burguesia brasileira. No contexto da Guerra Fria, considerava-se que essas concessões representassem o avanço do comunismo soviético sobre o país.

Essa concepção arqui-reacionária é representativa do atraso da classe dominante brasileira e do seu despreparo para compreender os processos históricos em curso no regime econômico-social do capitalismo global. Em todos os países desenvolvidos, mas principalmente na Europa, a burguesia já estava acostumada a fazer concessões ao proletariado e já considerava os órgãos políticos e sindicais dos trabalhadores como parceiros na gestão do capitalismo (que esses órgãos estivessem de sua parte enganados a esse respeito constitui tema para outra discussão). No Estado de Bem-Estar Social as massas trabalhadoras passaram a ter acesso ao consumo e puderam alavancar décadas de crescimento capitalista de seus países.

Esse modelo de administração foi o que pôde revitalizar o capitalismo e salvá-lo de suas próprias crises cíclicas. Os países que optaram por esse modelo conseguiram se manter na ponta do desenvolvimento econômico e manter relativa auto-suficiência política, mesmo que em construções artificiais como a União Européia. O acerto estratégico da decisão de construir a União Européia, vista agora, décadas depois, como única alternativa civilizacional plausível contra o poder estadunidense, mostrou-se providencial no contexto da globalização atual. No Brasil, porém, a pseudo-burguesia caipira tinha medo do espectro do comunismo.
A burguesia brasileira jamais teve coragem de encarar as tarefas de construção do Estado nacional. Jamais teve a capacidade de romper com as oligarquias rurais das quais descendia. Nem de enfrentar as potências estrangeiras e romper com a relação de subordinação que o país sempre teve em relação ao sistema capitalista internacional. E muito menos, coragem para agregar a massa do povo na construção da nacionalidade. Pois isso exigiria estreitar as margens da desigualdade social brasileira, que sempre foi abissal. A burguesia brasileira considerou muito mais confortável permanecer como sócia menor do sistema global e obediente capataz sempre pronto a reprimir arroubos de rebeldia.

Tivemos então o golpe em 1964. E o Brasil prosseguiu em sua sina de país capitalista subdesenvolvido. Sem uma reforma agrária e um mercado consumidor de massas interno o país jamais pôde ter um crescimento econômico verdadeiro que o tornasse auto-suficiente, a ponto de poder determinar os rumos do seu desenvolvimento capitalista ulterior. O desenvolvimento que o Brasil experimentou nos anos da ditadura, sob o chamado milagre brasileiro, estava baseado em bens de consumo duráveis. Basicamente, na indústria automobilística paulista. Um tipo de economia que em nada contribui para ampliar as bases de consumo e de acumulação de capital.

A ditadura experimentou também seus sonhos de grandeza, pois nenhum golpe de Estado desse tipo é completamente vazio de propostas. Na ausência de uma ideologia plausível que substituísse o trabalhismo de Jango, criou-se a ideologia do “Brasil Grande”, desprovida de conteúdo social. Uma ideologia surgida naturalmente por mera inércia, brotando do caldo de cultura e do delírio de grandeza típicos do estamento militar. A burguesia nacional estupidamente apoiara um golpe desfechado contra suas próprias chances históricas de comandar um país desenvolvido e acabou desalojada pelo “golpe dentro do golpe” em 1968. Restou portanto, aos militares, além da repressão, a tarefa de justificar seu poder em termos de uma certa ambição de “Brasil-Potência”. Tivemos então a Transamazônica, Itaipu, Angra dos Reis, os lendários elefantes brancos e obras faraônicas.

O vazio dessa ideologia e o esgotamento do milagre econômico excludente e concentracionário implodiram as bases do poder político dos militares, que perdeu sustentação. Veio então a “transição democrática” de 1985, com o cuidado de legar o poder aos mesmos caciques políticos da Arena, o partido do regime militar, depois da morte providencial do Presidente eleito pelas forças que lutaram pela democracia. Teorias conspiratórias a parte, trata-se de um acaso histórico demasiadamente feliz para as forças da reação (e infeliz para o país).

O esgotamento do milagre econômico se deu sob forma de endividamento público, perda de poder de compra da moeda, e inflação. Inflação que por sua vez deu o poder a governos aventureiros prisioneiros da idéia economicista de salvar o país da incontrolável espiral dos preços. Prisioneiros também da obsessão de evitar que o poder chegasse às mãos dos setores populares excluídos em 1964. Os governos de Sarney, Collor e FHC permaneceram tão reacionários e recalcitrantes a qualquer idéia de partilhar o poder com o povo quanto a míope burguesia de 1964.

Uma vitória do PT somente se tornou aceitável em 2002, mas num contexto tal que já não há mais propriamente um Estado para governar. As bases lançadas na era Vargas já foram zelosamente corroídas pelos governos descaradamente entreguistas de Collor e FHC. As margens de autonomia econômica e política já foram suficientemente desmontadas nas décadas pós-ditadura para que o governo do PT deixasse de ter quaisquer veleidades de implantar políticas econômicas autônomas.

É preciso lembrar que nesse meio tempo a Guerra Fria acabou, por meio da vitória do bloco capitalista. Sobreveio então o malfadado “Consenso de Washington”. Uma das idéias mais infelizes jamais criadas, e também das mais falaciosas. A palavra consenso pressupõe debate, discussão. Quem discutiu com Washington para formular o consenso? Trata-se de um consenso de quem com quem? Ao invés de consenso, trata-se, ao contrário, de uma imposição do imperialismo estadunidense.

A esquerda perdeu tempo demais querendo entender a queda do Muro de Berlim. A direita jamais perde tempo, pois sabe precisamente o que quer. E o que querem os autores do consenso é liberdade plena para o capital. Liberdade que os estadistas com título de doutor da Sorbone lhe outorgaram de bom-grado. O capital internacional fez a festa no Brasil, saqueando o patrimônio nacional e deixando o Estado brasileiro cada vez mais endividado, depois da aventura do populismo cambial que foi a arma eleitoral para “vencer” a inflação e afastar (ainda uma vez) o risco de a esquerda chegar ao poder.

Dissemos “vencer” a inflação entre aspas porque entendemos que ela jamais foi vencida de fato. Foi empurrada para debaixo do tapete. Como dizem os estadunidenses, não existe almoço grátis. Necessariamente, sempre há alguém que está pagando a conta. A inflação brasileira, por meio do Plano Real, foi transformada em dívida pública. Uma dívida estratosférica, impagável, que por força de sua própria dinâmica, através do insidioso mecanismo das rolagens, acaba sendo projetada para um futuro cada vez mais distante.

Um futuro que nos foi seqüestrado. O consenso de Washington construiu assim, com a cumplicidade entreguista da direita e a miopia histórica da esquerda institucionalizada, uma armadilha que nos seqüestrou a possibilidade de que o país pudesse determinar seu próprio destino. O processo de formação da nacionalidade abortado em 1964 permanece inacabado e nada indica que possa vir a ser retomado. Os 40 anos do golpe de 1964, a serem relembrados em 2004 não deixaram cicatrizes. Deixaram um cadáver inteiro. O país que morreu naquele 1o. de Abril nunca mais voltou a ser o mesmo. Nunca mais pôde ser o país que deveria ter sido. Por isso dissemos que a ditadura jamais acabou.

Daniel M. Delfino

25/01/2004

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