30.4.07

“Carandiru”: o lixo da sociedade


(Comentário sobre o filme “Carandiru”)



Nome original: Carandiru
Produção: Brasil, Argentina
Ano: 2003
Idiomas: Português
Diretor: Hector Babenco
Roteiro: Hector Babenco, Fernando Bonassi
Elenco: Luiz Carlos Vasconcelos, Milton Gonçalves, Ivan de Almeida, Ailton Graça, Maria Luisa Mendonça, Ainda Leiner, Rodrigo Santor, Rita Cadillac, Gero Camilo, Caio Blat, Lázaro Ramos, Wagner Moura, Júlia Ianina, Sabrina Greve, Floriano Peixoto
Gênero: drama, crime
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

A sociedade capitalista não tem lugar para o lixo. O subproduto do processo de produção/consumo/destruição transforma-se numa massa interminável de refugo tóxico e infecto. O lixo se acumula indefinidamente em aterros sanitários, contaminando mananciais e lençóis freáticos, constituindo uma das modalidades de poluição, como os gases emanados da queima de combustíveis fósseis, os dejetos industriais, etc. O capitalismo não tem um plano para o manejo racional dos recursos que manipula no seu metabolismo. O capital pensa apenas no curto prazo, no ciclo de investimento/produção/venda que resulta em sua valorização, sendo-lhe indiferente o caráter ecologicamente destrutivo da produção e do consumo.

O lixo é o não-assunto da sociedade, o buraco negro do pensamento, algo sobre o qual ninguém reflete. O ciclo acelerado de valorização no curto prazo interdita ao pensamento o acesso ao questionamento racional dos meios e fins do processo capitalista de reprodução social. Onde o mundo vai parar se tudo continuar como está? O que fazer com todo o lixo, assim como com a poluição? Ninguém sabe. Ninguém tem resposta. Ninguém pensa no assunto. O lixo vai se acumular, indefinidamente, até que todos estejamos soterrados até o pescoço, afogados em churume.

O mesmo acontece com o subproduto das relações sociais capitalistas, que são os presidiários. O presidiário é o lixo da sociedade. É o não-sujeito, o não-homem, o vácuo social, isolado nas profundezas do inferno, de onde se espera que não volte jamais, invisível, intocável e impensável. Ninguém quer saber o que acontece com os criminosos depois que são banidos do convívio social pelas penas privativas de liberdade, assim como ninguém quer saber o que vai acontecer com o lixo depois que os garis recolhem os sacos pretos. O preso está morto, para todos os efeitos. A justiça foi feita, o caso encerrado, a sociedade pode seguir em frente. Com as consciências tranqüilas, as autoridades burguesas sentenciam à prisão os derrotados da competição social.

Enquanto isso, a mídia pede sangue. Os programas de TV dedicados a explorar as calamidades da vida miserável das periferias e das grandes metrópoles especializam-se em criar um clima de ódio e medo. Viver é perigoso. Ninguém está seguro. Há bandidos por toda parte. Assassinos, ladrões, estupradores, seqüestradores, pedófilos, gangues, traficantes, corruptos, etc., todos à solta, insaciáveis. Não há ninguém para detê-los, o cidadão comum está indefeso. Nunca haverá polícia suficiente para satisfazer a santa ira dos apresentadores de “cidade alerta” e quejandos.

No seu entendimento, a polícia tem todo o direito de entrar e arrebentar, atirar para matar, disparar primeiro e perguntar depois, torturar e castigar. Nesse circo de horrores da mídia, os abutres da TV instrumentalizam o ódio da massa urbana contra a arraia-miúda de pés-de-chinelo para conseguir votos para políticos de direita que são os mais nocivos e perniciosos de todos os criminosos. Eles é que são causadores da miséria em que germina o crime de violência que choca a todos. A insegurança mostrada nos programas de TV é verdadeira, afinal o Estado está falido. Mas ao ser mostrada de maneira imediata e unidimensional, alcançando seu termo final sob a forma do criminoso armado, a violência social torna-se um processo irracional e incontrolável, uma doença a ser erradicada, com o recurso dos meios truculentos dos políticos de direita.

Dissemos tudo isso a propósito do lixo, dos criminosos e do crime na mídia para falar do fenômeno “Carandiru”. O novo filme do diretor Hector Babenco é o arrasa-quarteirão brasileiro da temporada. O tema do filme é o presídio do Carandiru, em São Paulo, demolido no final de 2002, que foi palco de uma massacre de presos rebelados, em 1991. É o nosso candidato em Cannes e quiçá no Oscar 2004, na nossa eterna busca por afirmação e reconhecimento (?). Estamos aqui tentando entender o que faz de um filme sobre um presídio um sucesso de bilheteria. Bastaria dizer que o filme é bom, mas isso não é suficiente. Há filmes que são péssimos e mesmo assim são vistos por muita gente, enquanto a maioria dos que são muito bons não é vista por quase ninguém. Há um complexo conjunto de razões que faz um filme se transformar numa atração, e neste caso particular, há outras razões além do fato de que o filme é bom.

A primeira delas é “Cidade de Deus”, o melhor filme brasileiro desde a assim chamada “retomada” do cinema nacional. “Cidade de Deus” mostrou que um filme brasileiro pode ser muito bom. É um filme inteligente, ágil, divertido, musical, tecnicamente bem feito e ideologicamente contundente. Depois do exemplo do filme carioca, não há vergonha em assistir um filme brasileiro. Não é mais coisa de burguês metido a intelectual. “Carandiru” beneficia-se desse efeito e busca se tornar uma espécie de resposta paulista à “Cidade”. Bairrismos à parte, eu ainda fico com Zé Pequeno e seus comparsas.

Não que “Carandiru” não tenha seus personagens carismáticos e curiosos. Há “seu” Chico, o preso velho que está prestes a ser libertado, há o “Peixeira”, o matador profissional que vira crente, há o chefe da cozinha que faz a lei no presídio, há o “Majestade”, com suas duas esposas, os garotos da periferia, “Zico” e Deusdete, atraídos desastradamente para o mundo do crime, a performer Rita Cadilac interpretando a si mesma, a serviço da causa da prevenção à AIDS, os dois assaltantes de banco e suas esposas, o hilário “Sem-chance”, assistente do médico e noivo do travesti Ladi Di, de Rodrigo Santoro, protagonista das cenas mais grotescamente engraçadas. E há o médico, o dr., espectador e narrador dos dramas dessa gente toda.

Apesar desse elenco de personagens interessantes, não há o mesmo apelo nostálgico, romântico, épico, de “Cidade de Deus”. O filme de Hector Babenco é mais frio e cinzento, como a garoa paulistana, contrastando com a alegria solar do Rio. “Carandiru” é quase documental, quase uma reportagem, feita de pequenas histórias. A narrativa é convencional, linear, sem novidades, sem complicações, bem-comportada. Isso não é demérito do filme, pelo fato de que se trata de uma história real, na qual não é possível tomar as mesmas liberdades que há em “Cidade de Deus”. Não há espaço para as mesmas licenças poéticas.

O filme também é tecnicamente bem-feito, pois se trata de uma superprodução, para os padrões brasileiros. Há alguns erros de continuidade, mas nada que prejudique o conjunto. Por exemplo, o distintivo do Corinthians aparece emoldurando gloriosamente diversos lugares presídio, pois como se sabe 90% da população carcerária paulistana é composta de corintianos da periferia. O problema é que o distintivo aparece em várias cenas acompanhado de três estrelas, sendo que na época possuía apenas uma. Trata-se de uma detalhe que somente fanáticos como o escriba perceberiam, e que no final das contas é perdoável, pois a quantidade de estrelas e conquistas do Corinthians é algo difícil de ser acompanhado...

Voltaremos à conexão corintianos/presidiários/policiais logo adiante. O que interessa aqui é a história do filme em si. A história a ser contada, na verdade, é a de presos que viveram um massacre. O grande fato do filme é a rebelião de 1991. Acredito que a pretensão do filme não tenha sido explicar a chacina, ou julgá-la, apenas mostrá-la, assumindo o lado daqueles que estiveram do lado de cá das balas. Não se trata de transformar os criminosos em heróis nem de demonizar os policiais. Trata-se de mostrar mais uma face da tragédia social brasileira. O país está repleto de miseráveis. Na miséria germina o crime. Para responder ao crime a sociedade constrói presídios. Os presídios funcionam de forma precária e desumana. Os presos se rebelam. A polícia entra atirando e massacra 111 presos, segundo a contagem oficial. Podem ter sido 200, 300, é difícil saber. O número em si não é importante. Não teria sido menos grave e sintomático se tivessem morrido apenas 10.

É sintomática a maneira como a sociedade trata seu lixo. Diante do fato narrado no filme, há amplas parcelas do público que, bestializadas pela retórica escatológica do show de horrores televisivo, terão dito: “bem feito!”, “bandido tem mais é que morrer mesmo”, “tinha que matar era tudo!”,”bandido bom é bandido morto!”. O presídio é idêntico a uma favela. A mesma sujeira, a mesma feiúra, as roupas penduradas na janela, nada para fazer, pessoas gastando o tempo, drogas, futebol, a mesma precariedade. Vindo da favela, o presidiário faveliza o presídio.

A respeito desse aspecto, o contraste com os filmes de prisão hollywoodianos é gritante. A prisão estadunidense típica é militarizada, robotizada, asséptica. O sistema prisional funciona. As autoridades carcerárias tem o efetivo controle das celas, dos corredores, dos pátios. Ninguém circula sem permissão. Ninguém respira sem permissão. Os contribuintes fazem questão de saber que sua máquina repressiva está trabalhando a todo vapor, livrando-os da perigosa presença de negros e hispânicos. O presídio brasileiro, ao contrário, é caótico. As autoridades carcerárias não tem o menor controle do que se passa lá. Beira-mar que o diga. O diretor do presídio em “Carandiru” faz coro quando pede pateticamente aos seus colegas que se rendam, para evitar o massacre.

Assim como o presidiário é um ser bestializado, o policial obrigado a lidar com ele é ainda mais bestial. Os policiais do batalhão de choque que invadiu o Carandiru comportam-se como uma tribo de bárbaros às portas de Roma. Batem nos escudos com os cassetetes e gritam “Choque! Choque! Choque!”. Os policiais abrem mão da denominação formal de sua corporação. Eles não são o Batalhão de Choque da Polícia Militar. São “o choque”. A tribo do choque. A gangue do choque. Freqüentador assíduo dos estádios paulistanos, ouvi de muitos veteranos da Gaviões da Fiel esse modo de falar, “o choque”, a respeito da polícia que cuida dos estádios, nivelada ao patamar das demais gangues com as quais a Gaviões de vez em quando se atraca, a Mancha, a Independente, a Jovem, etc.

Não deve ser mera coincidência que o futebol, um esporte infestado pelas gangues, tenha sido o estopim da confusão que detonou a rebelião, que por sua vez detonou o massacre. Mais curioso ainda que um dos times do jogo da prisão tenha o nome de “Mangue”, que é o nome de uma favela próxima da minha casa. Conexões e coincidências demais...

Como dizíamos, todos os que estão lá são, para a sociedade burguesa que os expeliu, criminosos, e ponto. Seu Chico os desmente quando explica ao dr. que “ali dentro ninguém é culpado”. Mas a reflexão chega tarde. O presídio foi invadido, transformado em praça de guerra e finalmente, demolido. Os instintos egoístas do burguês-do-fim-do-mundo brasileiro irão se regozijar com a demolição final do presídio, que é o simulacro da demolição das favelas, no seu sonho inconfessável de reengenharia social e assepsia fascista. O burguês quer se livrar do presídio e dos presidiários assim como quer se livrar da favela e dos criminosos, que para ele são uma só e mesma coisa. Ele se refestela na poltrona do cinema para se deliciar com o espetáculo proporcionado pela punição dos miseráveis. Em cada presidiário de “Carandiru” ele vê os trombadinhas que ousaram roubar seu “rolex” no semáforo.

Suspeitamos que uma grande massa dos espectadores que lota as salas para assistir “Carandiru” esteja lá movida por uma curiosidade mórbida, interessada em bisbilhotar o cotidiano daqueles indivíduos/desindividualizados banidos do convívio social, isolados como feras em um zoológico. Tememos que a população pobre que vai ao cinema ver “Carandiru” esteja indo para rir de si mesma, de sua miséria e do grotesco que é o seu próprio cotidiano.
A resposta definitiva para o sucesso do filme, no entendimento deste resenhista, é o best-seller “Estação-Carandiru”, do médico Drauzio Varela, em que o autor, uma espécie de médico-celebridade, relata sua luta heróica e um tanto quixotesca pela prevenção à AIDS nos presídios. De seu convívio de vários anos com os presidiários resultaram as histórias que compõem o livro. A história de vida daqueles criminosos. O sucesso comercial do livro abriu as portas para a produção do filme.

A consistência literária do livro, resultado da sensibilidade humana do médico, forneceu a base para a viabilidade artística do filme, o que honra Drauzio Varela. O filme é bom porque é humano, porque fala de seres humanos reais, o que honra Hector Babenco. Os presidiários são seres humanos, a despeito do que pensa a ideologia vulgar dos apresentadores de TV fascistas. Não estamos dizendo que são bons seres humanos. O ponto não é esse. O ponto é que, recolhido o lixo, isolado o refugo da sociedade, fechadas as portas do inferno e do exílio, a vida continua. Os presos continuam vivos. E como seres vivos que são, estão condenados a continuar arrastando sua humanidade miserável pelos corredores e celas do presídio.

Os presos também amam, de forma às vezes trágica, às vezes cômica. Os presos tem famílias que os esperam, tem amigos, tem times de futebol, tem negócios. Tem vida, enfim. Apesar do interdito que é imposto sobre o assunto, os presos estão lá. O mérito do filme é expor essa realidade. O lixo está lá, esperando ser reconhecido como gente. Como qualquer outra parcela de nossa população, órfã do Estado, os presidiários estão lá, com suas demandas. No Brasil, país de carências seculares, tudo é precário. O presídio tampouco deixaria de ser precário. Precário, bárbaro, grotesco, infernal.

Assim como não há a menor sombra de uma iniciativa para tratar do lixo, para organizar uma reciclagem maciça e articular um sistema de produção sustentável; não há uma iniciativa para “reciclar” os seres humanos desumanizados pela miséria e animalizados pelo crime e pela máquina de repressão ao crime. Para eles a única resposta são as balas da polícia, a brutalidade do “choque”. Não há perspectiva para a reinserção desses indivíduos na sociedade de forma produtiva, pois não há nem mesmo perspectivas para aqueles que nunca foram criminosos, com o desemprego e a precarização do trabalho. Se nem os trabalhadores honestos da periferia encontram perspectiva, que dirá os que escorregaram para o crime. O criminoso está no último degrau da escala de prioridades. Está no fundo do poço. No fundo da privada de uma megalópole de terceiro mundo. É por isso que observá-los em “Carandiru” é o mesmo que observar a nossa decadência final, enquanto sociedade.

Daniel M. Delfino

24/05/2003

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