Se você é corintiano, precisa ler esse texto, pois usaremos aqui a fase atual do Corinthians como exemplo paradigmático da crise da globalização neoliberal do futebol. Se não é, também precisa, porque o fenômeno que está descrito aqui diz respeito a todos os clubes e a todas as torcidas. Se você não torce para time nenhum e nem gosta de futebol, também precisa, pois o processo de decadência do futebol guarda relações com a desagregação geral a que se submeteu o país como um todo de modo mais acentuado a partir da década de 1990.
Como nem todo leitor está habituado às lides da bola e ao esgrimir das chuteiras, me permitirei uma aproximação cuidadosa. Não entrarei de sola no cérebro de ninguém. Proponho um jogo cadenciado, tabelando com uma dialética seleção de idéias, para só então chegar à meta, um vislumbre de entendimento da totalidade.
A bandalheira das privatizações
Privatizaram o futebol. E isso é tão grave e escandaloso quanto quaisquer das privatizações criminosas da era FHC. As privatizações foram uma operação de pirataria. Um saque em que as hordas do capital financeiro transnacional pilharam o patrimônio público de incautas nações terceiro-mundistas. Nações incautas o suficiente para engolir o discurso neoliberal sobre as virtudes do livre-mercado pela boca de presunçosos e arrogantes Presidentes-sociólogos-de-boutique-française.
As empresas foram privatizadas. As tarifas dos serviços públicos subiram astronomicamente. Os investimentos necessários e previstos nos contratos não foram feitos. Tivemos o apagão. Pagamos pelo apagão, porque alguém prometeu às empresas transnacionais que seus lucros presumidos seriam mantidos. Agora, essas empresas transnacionais, como a AES, que controla a Eletropaulo, estão às voltas com dívidas monumentais. O jogo duro do capitalismo-cassino é cruel mesmo com gigantes desse tipo. Empresas envolvidas em bandalheiras do tipo Enron vão à falência e tentam se livrar dos papagaios.
A AES deve mais de um bilhão no Brasil e anuncia que não vai pagar. Na hora do aperto, o capital internacional quebra os contratos, sem a menor cerimônia. Dane-se o otário da periferia que acreditou em contratos. Dane-se quem acreditou que uma transnacional iria bancar os custos do reerguimento do sistema elétrico nacional. Dane-se o país, porque o BNDES vai ter que empatar uma grana violenta para salvar a operação. No limite, fala-se na possibilidade de se reestatizar o sistema elétrico. Agora que a vaca foi para o brejo, os gestores da coisa pública percebem a besteira que fizeram.
A dialética da competição
A bandalheira das privatizações fez parte de um processo mais amplo de abertura do país. Num contexto de globalização, o capitalismo dos selvagens tupiniquins mediu-se com a selvageria do capitalismo global. O mercado invadiu todos os meandros, reentrâncias e escaninhos. Nada é poupado, tudo é consumido. Tudo é consumismo, porque tudo é mercadoria. O futebol também é mercadoria.
Mas a dialética é sempre uma via de mão dupla. Um termo da relação influencia o outro e o outro influencia o um. O esporte se transformou num ramo da economia e a economia se transformou numa competição esportiva. A cultura do esporte, suas metáforas e sua linguagem contaminaram a economia. As metáforas da competição, competitividade, desafio, superação, liderança, espírito de equipe, aperfeiçoamento, corrida; migraram do esporte para a economia e se tornaram lugares comuns do “economês”. São parte essencial do vocabulário dos profissionais envolvidos na competição econômica, seja qual for o seu ramo de atividade.
Inversamente, a linguagem da economia contaminou o esporte. Assim como todas as demais atividades humanas submetidas ao regime do capital, como a arte, a religião, a ciência, o esporte também se degrada ao papel de mero ramo de negócios. Com essa degradação, perde-se a essência de seus valores intrínsecos. Dissolve-se a essência do espírito esportivo na vala comum da luta pela audiência. A frase que sintetiza a filosofia do movimento olímpico moderno se tornou letra morta. No lugar do “importante é competir” entra o “importante é dar audiência”.
O esporte se tornou um ramo do entretenimento. O entretenimento é um espetáculo projetado para obter audiência, em qualquer espécie de mídia. Rádio, TV, internet, jornais, revistas, etc., são ramos de mídia que sobrevivem à custa da audiência que atraem para suas produções. Conquistada a audiência, exibem seus números de Ibope para vender espaços publicitários.
O esporte é somente mais uma das atrações oferecidas na luta por audiência. Com isso, ele deixa de ser praticado em função de seu próprio espírito para se adequar às exigências do espetáculo. A degradação de valores é mais brutal e mais aberrante no futebol, o maior e também o mais profissional dos esportes no Brasil. A degradação a que aludimos pode ser melhor compreendida por meio de um contraste com o passado.
Era uma vez o futebol
Façamos um exercício explícito de nostalgia. Assim como a música, o cinema, os quadrinhos, o futebol também teve sua era dourada. Uma época irrepetível, onde os mitos foram construídos para sempre. De meados dos anos 50 até meados dos anos 70, o futebol viveu sua melhor época, no Brasil e no mundo. As melhores seleções e os melhores times dos países mais importantes jogaram nessa época. E entre todos, a seleção brasileira foi a melhor e Pelé seu maior jogador. Não se pode repetir a Era Pelé, como não se pode repetir Woodstock. Pelé foi o maior jogador de todos os tempos, não só por causa do número de gols que marcou, pelas jogadas que desenhou e pelos títulos que conquistou, mas pela TRAJETÓRIA que construiu.
É impossível repetir a trajetória de um jogador que foi menino prodígio, campeão mundial aos 17 anos, eleito rei do futebol, coroado tricampeão no México em 1970. A grande virtude de Pelé foi a de ter encarnado as qualidade de toda uma geração de jogadores, que foi a melhor geração da história do futebol brasileiro. Uma geração que com as campanhas de 1958/62/70, marcou para sempre a história do esporte. Pelé era o camisa 10 de uma seleção que teve, em diferentes momentos Didi, Garrincha, Newton Santos, Gerson, Rivelino, Tostão, etc.. O melhor entre os melhores, na melhor floração do esporte.
E não só o futebol brasileiro vivia sua época de ouro, como também outros esportes. Outros gigantes brasileiros assombravam o mundo e se tornavam mitos. Era a época de Ademar Ferreira da Silva, de Maria Ester Bueno, de Eder Jofre, de Emerson Fittipaldi, de uma seleção de basquete bicampeã do mundo em 1959/63. Não só o esporte brasileiro era vitorioso, mas também a cultura era florescente. Eram os anos da Bossa Nova, do Cinema Novo, da inauguração de Brasília de Niemeyer.
A seleção brasileira de 1970 encarnava toda essa época. Por isso não se pode fabricar um outro Pelé. Não se pode mais repetir uma época onde parecia que tudo poderia dar certo (poderia, porque a ditadura estragou tudo). Por mais que se queira elevar um Maradona a semideus do futebol, ou Zico, ou Romário ou Ronaldinho. Não há comparação possível, porque não há mais parâmetro. O momento histórico é outro e a representatividade cultural do futebol é outra. A sociedade é outra, a cultura é outra, o próprio jogo de futebol, dentro das quatro linhas, é outro.
Na época de ouro, a história foi escrita. Hoje ela é reprisada. Parodiada. Repete-se como farsa. Há programas de TV que mostram semanalmente gols e jogadas dos anos 60, 70 e 80. O torcedor que os assiste abre um sorriso e diz “isso sim é que era futebol!” A explicação para isso é fácil. Na Era Pelé os jogadores tinham mais amor aos times que defendiam. Dedicavam toda sua carreira a um só time. Jogar na Europa era a exceção entre os jogadores de ponta. Não era, como hoje, a ambição de 11 entre 11 dos jogadores, mesmo entre os mais rematados pernas de pau.
As torcidas também eram românticas. Iam ao campo para assistir ao espetáculo com o espírito de quem ia presenciar uma tragédia grega. Mesmo que a maioria não soubesse o que é uma tragédia grega. O sentimento que os movia era o sentimento épico da tragédia. O sentimento da disputa, que os gregos chamavam de “agon”. A grandeza cavalheiresca de um duelo. Em nome desse espírito de agon o Maracanã lotava para ver o Santos de Pelé contra times estrangeiros. No Rio de Janeiro! A torcida do Corinthians, por sua vez, aplaudia Pelé, mesmo quando ele castigava o alvinegro da capital.
Ganhar ou perder não era uma questão de vida ou morte. Era o resultado do jogo. O que importava era a arte, o drama, o heroísmo e a dedicação dentro de campo. A beleza do espetáculo. A sensação única de ir ao estádio e assistir a um espetáculo único. Hoje os estádios estão vazios e os torcedores se formam na poltrona diante da TV. Mas não se formam mais torcidas como antigamente. O futebol já era. O mito acabou. Os deuses retiraram-se para o Olimpo da memória.
A gênese do fanatismo
Jogadores, jornalistas, torcedores, dirigentes hoje vivenciam o futebol de uma outra maneira. A relação está viciada. O dinheiro vem em primeiro lugar na lista de prioridades e o amor à camisa fica na lanterna. Jogadores sonham em assinar contratos milionários com clubes europeus. Dirigentes sonham em vender esses mesmos jogadores e abocanhar as comissões, deixando os clubes na miséria. Jornalistas sonham em escavar escândalos e furos, inventando crises para vender jornal.
No meio disso tudo, os torcedores ficam a ver navios. A paixão deixa de ser um prazer e passa a ser um motivo de revolta. Há uma defasagem entre o que o futebol oferece e o que o torcedor quer. E o torcedor de hoje é um consumidor revoltado. Um consumidor raivoso. A raiva passa a freqüentar as arquibancadas onde antes habitava a utopia. A raiva de quem não admite perder. Esvaiu-se o agon.
O futebol no Brasil, mais do que um esporte, é uma religião. Uma religião nascida e cultivada pela paixão de milhões de torcedores que freqüentaram os estádios décadas afora. Paixão que foi escandalosamente privatizada, principalmente a partir da década de 1990. Clubes e emissoras de TV passaram a ganhar fortunas com marcas que as torcidas construíram. E não respondem por isso. Os dirigentes do futebol não tem respeito pelas torcidas. Diante dos protestos dos torcedores, dirigentes dizem para si mesmos: “Bem feito! Quem mandou torcer? Por que não escolheu outro time?”. No máximo, os dirigentes tem medo das torcidas organizadas. O que já representa um outro sintoma da decadência.
Os dirigentes não entendem. Não é possível escolher o time. O time escolhe o torcedor. Torcer é sofrer. É uma paixão da alma, no sentido filosófico. Paixão é o contrário de ação. A ação parte do indivíduo. A paixão é o que o afeta de fora. O impulso de torcer vem de onde o indivíduo não pode controlar. Torcer é estar fora de si. Torcer é uma paixão, que não se pode escolher nem controlar inteiramente. Pode-se apenas tentar. Quem não consegue controlar a paixão se transforma num fanático, que representa um caso patológico à parte. O torcedor fanático é um dependente. Ele aposta sua auto-estima no resultado do time para o qual torce. Vitória ou derrota podem significar a diferença entre euforia ou depressão, apetência ou impotência. Exuberância ou perda de desejo sexual. Perda do Eros e da vontade de viver.
O torcedor de poltrona
Os dirigentes não entendem a paixão porque pensam de maneira mercantilista. Pensam que o torcedor pode escolher o time como o consumidor escolhe a marca do produto. Pensam os times como uma atração como outra qualquer na grade da TV. Os neocartolas pretendem impor ao torcedor brasileiro o hábito de assistir futebol como os estadunidenses assistem seus esportes. Como mero espetáculo, mera atração, mero balé de imagens. Sem o menor compromisso com a fantasia e a utopia que cada torcedor vislumbra na agremiação para a qual torce.
A antítese entre o modo brasileiro de torcer e o estadunidense pode ser compreendida por meio de uma simples distinção terminológica. O torcedor, em inglês, é chamado de fã. Ser fã de um esporte é a mesma coisa que ser fã de uma banda ou de um artista. Usa-se a palavra “fã” com esse mesmo sentido. Um fã de música pode ser fã de uma banda, mas ouve também dezenas de outras. Um fã de cinema pode ter seus artistas ou diretores preferidos. Mas assiste a filmes onde esses artistas não estão.
Um fã de esporte pode ter um time de preferência. Mas ele assiste jogos de outros times. Assiste? Um fã talvez sim. Um torcedor não. Só se for para torcer contra. Diz a lenda que o nome de “torcedor” para os fãs do futebol no Brasil vem de uma foto de jornal dos anos 1910. Uma moça da elite (na época o futebol era um espetáculo para regalo privativo da elite), em finos trajes da moda, acompanhava uma partida de “football” torcendo compulsivamente um par de luvas (as mocinhas de então usavam luvas).
Acompanhar uma jogada torcendo algo com as mãos é um gesto que retrata à perfeição o turbilhão emocional de um “fã” de futebol à espera do gol, contorcendo-se interiormente, na imaginação, mentalizando obstinadamente, desejando, fantasiando o desfecho da jogada. Daí que o nome de torcedor para o aficionado por futebol no Brasil encaixou como uma luva. O brasileiro é antes de tudo um torcedor.
O torcedor é um doente, um obstinado, um sonhador, um revoltado. Os dirigentes de clube não gostam de torcedores. Gostam de pacatos fãs. Por isso querem aculturar o torcedor brasileiro. Querem transformá-lo num fã. Um consumidor apático, comportadamente sentado em frente à TV, sendo bombardeado pela publicidade. O gesto de torcer implica ir ao estádio. O torcedor que vai ao estádio hoje é um tipo marginal. Torcer à moda antiga tornou-se um hábito para marginais, para membros de gangues, que se denominam torcidas organizadas.
Desapareceu o meio termo entre o fã e o fanático, a apatia e a revolta. Hoje vigoram os extremos. Não há espaço para sutilezas, nuances e mediações. Ou a realidade se põe nua e crua como encontro de gangues de torcidas ou o torcedor fica exilado, aprisionado na poltrona. O justo meio, o equilíbrio que cultivavam os gregos, sábios inventores do esporte, tornou-se mera lembrança.
O Corinthians na fila
É assim que o futebol se transforma num prisioneiro da televisão. A disputa nua e crua dos números de audiência é o sintoma terminal de um processo de subversão cultural. O cinema, a televisão e mais recentemente a internet, subverteram a percepção da história. O tempo histórico não é mais percebido como um percurso linear. Não há mais começo, meio e fim. Passado, presente e futuro. Hoje é tudo ao mesmo tempo agora. Vivemos o presente permanente. Um presente sem passado e sem futuro. Sem raízes e sem frutos. Uma circularidade interminável. A reposição “ad infinitum” do mesmo. Ao vivo, na TV.
O resultado dessa percepção é que ninguém ri por último. Nenhuma vitória é definitiva. Nenhuma conquista basta. Não é possível descansar. Não é permitido descansar. O show deve continuar. É preciso continuar correndo. É preciso continuar na mídia. Uma marca que desaparece da visão do espectador deixa de ganhar dinheiro e desaparece do mercado. Um time que deixa de aparecer na TV deixa de ter torcida. Para que isso possa ser melhor compreendido, usemos um contra-exemplo clássico, como contraste.
Entre 1954 e 1977, o Corinthians não venceu nenhum campeonato paulista. Foi humilhado por todos os rivais. Pelo São Paulo, que construiu o maior estádio da capital. Pelo Santos, que ficou 11 sem perder para o Corinthians um jogo de campeonato paulista. Pelo Palmeiras, que venceu a final de 1974, adiando indefinidamente a conquista do tão sonhado título. E destruindo a carreira de Rivelino, ídolo corintiano de todos os tempos. O Corinthians foi chamado de “faz-me-rir”.
Qual o resultado dessa humilhação? A torcida cresceu cada vez mais. Tornou-se a maior torcida de São Paulo. Uma nação prisioneira de um sentimento. O sentimento da necessidade de conquistar um título. O sentimento quintessencial do futebol. A sensação do grito de gol preso na garganta. A espera torturante pela explosão orgiástica do gol. A cada gol, a cada vitória, o sonho de chegar ao tão sonhado campeonato. O corintiano incorporou o estigma de sofredor, graças a essa época. “Corintiano, maloqueiro e sofredor, graças a Deus!”, canta a fiel. O sentimento de torcer pelo time é o sentimento de esperar utopicamente pela vitória que um dia virá. Pela revolução que um dia virá. O Corinthians não é um time, é um movimento messiânico.
Coincidentemente, a cidade de São Paulo viveu sua explosão demográfica no decurso dessas mesmas décadas. Explosão demográfica coincidente com a urbanização. O Brasil deixava de ser um país caipira para ser uma nação urbanizada. Milhões de migrantes nordestinos vieram para construir a megalópole do Sudeste. Milhões que vieram sonhando com a redenção de suas vidas. Na espera pela redenção corintiana, encontraram a metáfora para a sua própria redenção pessoal. Daí o sentimento que irmana os corintianos ao torcer. Daí a fundação da Gaviões da Fiel, a primeira e maior torcida organizada do Brasil. O Corinthians acabou se tornando o time mais permeável às sensibilidades populares e às mutações sociológicas do país.
O futebol como ópio do povo ou utopia do povo? A resposta viria no início dos anos 80, com a democracia corintiana. O país ainda vivia sob a ditadura e ansiava pela redemocratização. Nesse contexto surgiu um time revolucionário, auto-gestionário, que demoliu a hierarquia autoritária do futebol, apostou na autonomia e responsabilidade dos jogadores e estimulou o processo coletivo de tomada de decisão. Um exemplo vencedor de desalienação e democracia, emanando do futebol. “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”, era o slogan dessa época.
Um exemplo de vitalidade cultural e sintonia com a sensibilidade popular, proporcionado pelo futebol. O futebol de hoje pode proporcionar um exemplo assim? Um time que, nos dias de hoje, ficar 23 anos sem ganhar um campeonato, como o Corinthians ficou, desaparecerá. Um time como o São Caetano, que joga bem, com dedicação, disputa finais, mas não ganha títulos, não consegue torcida. Surge e desaparece como um meteoro.
O salve-se quem puder
Chegamos então à marca do pênalti. O mercado de futebol do Brasil está sendo forçado a uma concentração. Os dirigentes do esporte ainda não se deram conta dessa pressão. Trata-se de uma pressão mercadológica pela concentração de marcas. O mercado exige um punhado apenas de marcas com que trabalhar. Na dança das cadeiras, não haverá espaço para todos. O futebol brasileiro possui muitas marcas e nem todas poderão permanecer.
Na Europa, cada país tem no máximo dois ou três times grandes e alguns poucos times médios. A Espanha tem Real Madri e Barcelona. A Itália tem Juventus, Internazionale e Milan. A Inglaterra tem Manchester United, Liverpool e Arsenal. A Alemanha tem apenas o Bayer de Munique. A Argentina tem River Plate e Boca Juniors. A Holanda tem o Ájax, o PSV e o Feyenord. Portugal tem Benfica, Porto e Sporting. Sendo que Holanda e Portugal, como mercados de futebol, estão definhando, porque seus times não são mais capazes de acompanhar os dos grandes países.
E o Brasil? Quem são os dois ou três times grandes do Brasil? Aqui temos um problema. Não há dois ou três times grandes. Há Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos, Flamengo, Vasco, Botafogo e Fluminense, Cruzeiro e Atlético, Internacional e Grêmio; e ainda Bahia, Sport, Coritiba e Atlético-PR. São muitos candidatos para poucas vagas. Como a Libertadores da América, que reserva poucas vagas para muitos brasileiros. Daí a eterna inexperiência dos brasileiros na competição. River e Boca disputam Libertadores ano sim, ano não. Times brasileiros, uma vez a cada dez anos.
O Brasil é, em termos de futebol, um continente, pois cada Estado, como um país, tem seus próprios gigantes. E ainda há espaço para alguns times médios. Como Guarani, Ponte Preta e São Caetano em São Paulo. No Rio, havia Bangu e América, que estão em processo de extinção. Em São Paulo, a Portuguesa segue o mesmo caminho, como o América em Minas. A existência de campeonatos estaduais fortes foi o que retardou o surgimento de um Campeonato Brasileiro forte. Até os anos 90, os estaduais ainda eram mais importantes que o Brasileiro.
Nesta década fatídica, o futebol brasileiro teve que se adaptar. Quem não conquistou espaço no mercado nacional e internacional nessa década ficou irremediavelmente defasado em relação aos rivais. Os cartolas insistiram em manter fórmulas obsoletas, campeonatos inflados, desrespeito aos regulamentos, viradas de mesa e tapetões. Corporativamente, a classe dos cartolas trabalhou para transformar o futebol brasileiro num empreendimento deficitário. Ao invés de criar um campeonato que poderia ser a NBA do futebol mundial, preferiram afundar juntos na mediocridade, com seus clubes, rumo ao pântano das dívidas e crises.
O mercado pegou nossos clubes no contrapé. Pegou-os controlados por dirigentes que já se tornaram obsoletos há pelo menos 20 anos. Um Vicente Matheus era uma figura folclórica aceitável no futebol de outrora. Para sobreviver hoje, um clube precisa, além de manter a paixão do passado, visão empresarial e seriedade administrativa. Na falta dessas qualidades, cada um se vira como pode. E eis que o Corinthians embarcou no canto de seria da globalização.
O caso Corinthians-Hicks Muse
No auge da era neoliberal de FHC, um fundo de investimentos texano, que atende pelo pomposo nome de Hicks Muse Tate & Furst (HMTF), saiu pelo mundo à caça oportunidades de investimento. Como um conquistador espanhol, um aventureiro inglês na selva. O tal fundo inventou de ganhar dinheiro com futebol. Criou uma emissora de TV, a PSN e uma competição, a Copa Mercosul. E saiu à procura de times para estrelar seu projeto de uma NBA do “soccer” sul-americano.
O Corinthians foi um desses times. Os estadunidenses chegaram prometendo mundos e fundos. Como o PSDB, que prometera ficar 20 anos no poder. A Hicks Muse prometeu construir um estádio e investir também nas categorias de base. Veio o dinheiro. Vieram os craques. E os títulos. Anos de glória para o alvinegro. Momentos inesquecíveis para este filósofo da arquibancada. E a fiel viu que isto era bom. E foi bem enquanto durou.
Mas o ouro dos estadunidenses, como o Plano Real e as promessas do neoliberalismo, era ouro dos trouxas. O capital especulativo dando prazer aos descamisados (?!). Uma contradição desse quilate não poderia se sustentar. Os estadunidenses perceberam que seu projeto não iria vingar. A cartolagem brasileira, obstinadamente reacionária, frustrou os planos de se modernizar o mercado do futebol. Os investimentos começaram a pesar. A perspectiva de lucros a curto e médio prazo foi adiada cada vez mais para longe.
E as juras de amor eterno se transformaram em divórcio judicial. Separação litigiosa com disputa pelos bens. Em disputa, o passe dos craques. O fabuloso esquadrão de 1998/2000 foi desmontado. Contratos nebulosos e mal-ajambrados vieram à tona. Ídolos da torcida vestiram a carapuça de mercenários e se foram, em busca dos dólares de outras praças. E o prometido estádio? “Cadê o nosso estádio? Ninguém sabe, ninguém vi!”, canta a fiel.
Voltamos assim à bandalheira das privatizações. Quem acreditou que a Hicks Muse construiria nosso estádio? Quem acreditou que as transnacionais seriam a salvação para os serviços públicos no Brasil? Ao menor sinal de adversidade, a máscara cai. Sem lucros de curto prazo, sem investimento. Negócios são negócios. Os estadunidenses voltam lá para o Texas e deixam o clube aqui, como que arrasado por uma nuvem de gafanhotos.
Que clube do Brasil escapou de promessas desse tipo de dirigentes oportunistas? Que time deixou de sofrer desmontes e de ver seus craques e ídolos em revoada para o exterior? Que resta ao torcedor nesse cenário? Como torcer, se não há mais camisas em campo? Como torcer para um empreendimento capitalista? Onde é decidido um campeonato? No gabinete dos dirigentes que decidem contratos, negócios e negociatas. O torcedor não torce mais para que seu ídolo acerte o chute. Torce para que um dirigente não erre um contrato. A que ponto chegamos?
Chamem a polícia: privatizaram o futebol!!
Apito final
A conclusão a que o leitor pode chegar é que tudo isso não passa de um desabafo de corintiano frustrado com a má fase do time no nacional de 2003. Talvez seja, também. Mas essa reflexão não é nova. Tais idéias já haviam sido apresentadas em outros textos deste escriba-torcedor sobre futebol, como “Porque o Brasil ganhou a Copa?”. A crise do futebol não é nova, como também a crise de valores da sociedade. O fenômeno é resultado de um descalabro generalizado.
Ninguém está a salvo. Hoje é o meu time, amanhã poderá ser o seu. Toda torcida gosta de ver seu rival por baixo. Desaparecendo o rival, porém, desaparece o motivo da disputa. O Corinthians é grande porque o Palmeiras também é grande. Pelo menos era. De crise em crise, de rebaixamento em rebaixamento, estádios vazios, competições sem graça, talento exilado, desapareceremos todos. O futebol vai ficando na memória, no passado, nos videotapes.
O último a sair apague a luz dos refletores.
Daniel M. Delfino
04/09/2003
Como nem todo leitor está habituado às lides da bola e ao esgrimir das chuteiras, me permitirei uma aproximação cuidadosa. Não entrarei de sola no cérebro de ninguém. Proponho um jogo cadenciado, tabelando com uma dialética seleção de idéias, para só então chegar à meta, um vislumbre de entendimento da totalidade.
A bandalheira das privatizações
Privatizaram o futebol. E isso é tão grave e escandaloso quanto quaisquer das privatizações criminosas da era FHC. As privatizações foram uma operação de pirataria. Um saque em que as hordas do capital financeiro transnacional pilharam o patrimônio público de incautas nações terceiro-mundistas. Nações incautas o suficiente para engolir o discurso neoliberal sobre as virtudes do livre-mercado pela boca de presunçosos e arrogantes Presidentes-sociólogos-de-boutique-française.
As empresas foram privatizadas. As tarifas dos serviços públicos subiram astronomicamente. Os investimentos necessários e previstos nos contratos não foram feitos. Tivemos o apagão. Pagamos pelo apagão, porque alguém prometeu às empresas transnacionais que seus lucros presumidos seriam mantidos. Agora, essas empresas transnacionais, como a AES, que controla a Eletropaulo, estão às voltas com dívidas monumentais. O jogo duro do capitalismo-cassino é cruel mesmo com gigantes desse tipo. Empresas envolvidas em bandalheiras do tipo Enron vão à falência e tentam se livrar dos papagaios.
A AES deve mais de um bilhão no Brasil e anuncia que não vai pagar. Na hora do aperto, o capital internacional quebra os contratos, sem a menor cerimônia. Dane-se o otário da periferia que acreditou em contratos. Dane-se quem acreditou que uma transnacional iria bancar os custos do reerguimento do sistema elétrico nacional. Dane-se o país, porque o BNDES vai ter que empatar uma grana violenta para salvar a operação. No limite, fala-se na possibilidade de se reestatizar o sistema elétrico. Agora que a vaca foi para o brejo, os gestores da coisa pública percebem a besteira que fizeram.
A dialética da competição
A bandalheira das privatizações fez parte de um processo mais amplo de abertura do país. Num contexto de globalização, o capitalismo dos selvagens tupiniquins mediu-se com a selvageria do capitalismo global. O mercado invadiu todos os meandros, reentrâncias e escaninhos. Nada é poupado, tudo é consumido. Tudo é consumismo, porque tudo é mercadoria. O futebol também é mercadoria.
Mas a dialética é sempre uma via de mão dupla. Um termo da relação influencia o outro e o outro influencia o um. O esporte se transformou num ramo da economia e a economia se transformou numa competição esportiva. A cultura do esporte, suas metáforas e sua linguagem contaminaram a economia. As metáforas da competição, competitividade, desafio, superação, liderança, espírito de equipe, aperfeiçoamento, corrida; migraram do esporte para a economia e se tornaram lugares comuns do “economês”. São parte essencial do vocabulário dos profissionais envolvidos na competição econômica, seja qual for o seu ramo de atividade.
Inversamente, a linguagem da economia contaminou o esporte. Assim como todas as demais atividades humanas submetidas ao regime do capital, como a arte, a religião, a ciência, o esporte também se degrada ao papel de mero ramo de negócios. Com essa degradação, perde-se a essência de seus valores intrínsecos. Dissolve-se a essência do espírito esportivo na vala comum da luta pela audiência. A frase que sintetiza a filosofia do movimento olímpico moderno se tornou letra morta. No lugar do “importante é competir” entra o “importante é dar audiência”.
O esporte se tornou um ramo do entretenimento. O entretenimento é um espetáculo projetado para obter audiência, em qualquer espécie de mídia. Rádio, TV, internet, jornais, revistas, etc., são ramos de mídia que sobrevivem à custa da audiência que atraem para suas produções. Conquistada a audiência, exibem seus números de Ibope para vender espaços publicitários.
O esporte é somente mais uma das atrações oferecidas na luta por audiência. Com isso, ele deixa de ser praticado em função de seu próprio espírito para se adequar às exigências do espetáculo. A degradação de valores é mais brutal e mais aberrante no futebol, o maior e também o mais profissional dos esportes no Brasil. A degradação a que aludimos pode ser melhor compreendida por meio de um contraste com o passado.
Era uma vez o futebol
Façamos um exercício explícito de nostalgia. Assim como a música, o cinema, os quadrinhos, o futebol também teve sua era dourada. Uma época irrepetível, onde os mitos foram construídos para sempre. De meados dos anos 50 até meados dos anos 70, o futebol viveu sua melhor época, no Brasil e no mundo. As melhores seleções e os melhores times dos países mais importantes jogaram nessa época. E entre todos, a seleção brasileira foi a melhor e Pelé seu maior jogador. Não se pode repetir a Era Pelé, como não se pode repetir Woodstock. Pelé foi o maior jogador de todos os tempos, não só por causa do número de gols que marcou, pelas jogadas que desenhou e pelos títulos que conquistou, mas pela TRAJETÓRIA que construiu.
É impossível repetir a trajetória de um jogador que foi menino prodígio, campeão mundial aos 17 anos, eleito rei do futebol, coroado tricampeão no México em 1970. A grande virtude de Pelé foi a de ter encarnado as qualidade de toda uma geração de jogadores, que foi a melhor geração da história do futebol brasileiro. Uma geração que com as campanhas de 1958/62/70, marcou para sempre a história do esporte. Pelé era o camisa 10 de uma seleção que teve, em diferentes momentos Didi, Garrincha, Newton Santos, Gerson, Rivelino, Tostão, etc.. O melhor entre os melhores, na melhor floração do esporte.
E não só o futebol brasileiro vivia sua época de ouro, como também outros esportes. Outros gigantes brasileiros assombravam o mundo e se tornavam mitos. Era a época de Ademar Ferreira da Silva, de Maria Ester Bueno, de Eder Jofre, de Emerson Fittipaldi, de uma seleção de basquete bicampeã do mundo em 1959/63. Não só o esporte brasileiro era vitorioso, mas também a cultura era florescente. Eram os anos da Bossa Nova, do Cinema Novo, da inauguração de Brasília de Niemeyer.
A seleção brasileira de 1970 encarnava toda essa época. Por isso não se pode fabricar um outro Pelé. Não se pode mais repetir uma época onde parecia que tudo poderia dar certo (poderia, porque a ditadura estragou tudo). Por mais que se queira elevar um Maradona a semideus do futebol, ou Zico, ou Romário ou Ronaldinho. Não há comparação possível, porque não há mais parâmetro. O momento histórico é outro e a representatividade cultural do futebol é outra. A sociedade é outra, a cultura é outra, o próprio jogo de futebol, dentro das quatro linhas, é outro.
Na época de ouro, a história foi escrita. Hoje ela é reprisada. Parodiada. Repete-se como farsa. Há programas de TV que mostram semanalmente gols e jogadas dos anos 60, 70 e 80. O torcedor que os assiste abre um sorriso e diz “isso sim é que era futebol!” A explicação para isso é fácil. Na Era Pelé os jogadores tinham mais amor aos times que defendiam. Dedicavam toda sua carreira a um só time. Jogar na Europa era a exceção entre os jogadores de ponta. Não era, como hoje, a ambição de 11 entre 11 dos jogadores, mesmo entre os mais rematados pernas de pau.
As torcidas também eram românticas. Iam ao campo para assistir ao espetáculo com o espírito de quem ia presenciar uma tragédia grega. Mesmo que a maioria não soubesse o que é uma tragédia grega. O sentimento que os movia era o sentimento épico da tragédia. O sentimento da disputa, que os gregos chamavam de “agon”. A grandeza cavalheiresca de um duelo. Em nome desse espírito de agon o Maracanã lotava para ver o Santos de Pelé contra times estrangeiros. No Rio de Janeiro! A torcida do Corinthians, por sua vez, aplaudia Pelé, mesmo quando ele castigava o alvinegro da capital.
Ganhar ou perder não era uma questão de vida ou morte. Era o resultado do jogo. O que importava era a arte, o drama, o heroísmo e a dedicação dentro de campo. A beleza do espetáculo. A sensação única de ir ao estádio e assistir a um espetáculo único. Hoje os estádios estão vazios e os torcedores se formam na poltrona diante da TV. Mas não se formam mais torcidas como antigamente. O futebol já era. O mito acabou. Os deuses retiraram-se para o Olimpo da memória.
A gênese do fanatismo
Jogadores, jornalistas, torcedores, dirigentes hoje vivenciam o futebol de uma outra maneira. A relação está viciada. O dinheiro vem em primeiro lugar na lista de prioridades e o amor à camisa fica na lanterna. Jogadores sonham em assinar contratos milionários com clubes europeus. Dirigentes sonham em vender esses mesmos jogadores e abocanhar as comissões, deixando os clubes na miséria. Jornalistas sonham em escavar escândalos e furos, inventando crises para vender jornal.
No meio disso tudo, os torcedores ficam a ver navios. A paixão deixa de ser um prazer e passa a ser um motivo de revolta. Há uma defasagem entre o que o futebol oferece e o que o torcedor quer. E o torcedor de hoje é um consumidor revoltado. Um consumidor raivoso. A raiva passa a freqüentar as arquibancadas onde antes habitava a utopia. A raiva de quem não admite perder. Esvaiu-se o agon.
O futebol no Brasil, mais do que um esporte, é uma religião. Uma religião nascida e cultivada pela paixão de milhões de torcedores que freqüentaram os estádios décadas afora. Paixão que foi escandalosamente privatizada, principalmente a partir da década de 1990. Clubes e emissoras de TV passaram a ganhar fortunas com marcas que as torcidas construíram. E não respondem por isso. Os dirigentes do futebol não tem respeito pelas torcidas. Diante dos protestos dos torcedores, dirigentes dizem para si mesmos: “Bem feito! Quem mandou torcer? Por que não escolheu outro time?”. No máximo, os dirigentes tem medo das torcidas organizadas. O que já representa um outro sintoma da decadência.
Os dirigentes não entendem. Não é possível escolher o time. O time escolhe o torcedor. Torcer é sofrer. É uma paixão da alma, no sentido filosófico. Paixão é o contrário de ação. A ação parte do indivíduo. A paixão é o que o afeta de fora. O impulso de torcer vem de onde o indivíduo não pode controlar. Torcer é estar fora de si. Torcer é uma paixão, que não se pode escolher nem controlar inteiramente. Pode-se apenas tentar. Quem não consegue controlar a paixão se transforma num fanático, que representa um caso patológico à parte. O torcedor fanático é um dependente. Ele aposta sua auto-estima no resultado do time para o qual torce. Vitória ou derrota podem significar a diferença entre euforia ou depressão, apetência ou impotência. Exuberância ou perda de desejo sexual. Perda do Eros e da vontade de viver.
O torcedor de poltrona
Os dirigentes não entendem a paixão porque pensam de maneira mercantilista. Pensam que o torcedor pode escolher o time como o consumidor escolhe a marca do produto. Pensam os times como uma atração como outra qualquer na grade da TV. Os neocartolas pretendem impor ao torcedor brasileiro o hábito de assistir futebol como os estadunidenses assistem seus esportes. Como mero espetáculo, mera atração, mero balé de imagens. Sem o menor compromisso com a fantasia e a utopia que cada torcedor vislumbra na agremiação para a qual torce.
A antítese entre o modo brasileiro de torcer e o estadunidense pode ser compreendida por meio de uma simples distinção terminológica. O torcedor, em inglês, é chamado de fã. Ser fã de um esporte é a mesma coisa que ser fã de uma banda ou de um artista. Usa-se a palavra “fã” com esse mesmo sentido. Um fã de música pode ser fã de uma banda, mas ouve também dezenas de outras. Um fã de cinema pode ter seus artistas ou diretores preferidos. Mas assiste a filmes onde esses artistas não estão.
Um fã de esporte pode ter um time de preferência. Mas ele assiste jogos de outros times. Assiste? Um fã talvez sim. Um torcedor não. Só se for para torcer contra. Diz a lenda que o nome de “torcedor” para os fãs do futebol no Brasil vem de uma foto de jornal dos anos 1910. Uma moça da elite (na época o futebol era um espetáculo para regalo privativo da elite), em finos trajes da moda, acompanhava uma partida de “football” torcendo compulsivamente um par de luvas (as mocinhas de então usavam luvas).
Acompanhar uma jogada torcendo algo com as mãos é um gesto que retrata à perfeição o turbilhão emocional de um “fã” de futebol à espera do gol, contorcendo-se interiormente, na imaginação, mentalizando obstinadamente, desejando, fantasiando o desfecho da jogada. Daí que o nome de torcedor para o aficionado por futebol no Brasil encaixou como uma luva. O brasileiro é antes de tudo um torcedor.
O torcedor é um doente, um obstinado, um sonhador, um revoltado. Os dirigentes de clube não gostam de torcedores. Gostam de pacatos fãs. Por isso querem aculturar o torcedor brasileiro. Querem transformá-lo num fã. Um consumidor apático, comportadamente sentado em frente à TV, sendo bombardeado pela publicidade. O gesto de torcer implica ir ao estádio. O torcedor que vai ao estádio hoje é um tipo marginal. Torcer à moda antiga tornou-se um hábito para marginais, para membros de gangues, que se denominam torcidas organizadas.
Desapareceu o meio termo entre o fã e o fanático, a apatia e a revolta. Hoje vigoram os extremos. Não há espaço para sutilezas, nuances e mediações. Ou a realidade se põe nua e crua como encontro de gangues de torcidas ou o torcedor fica exilado, aprisionado na poltrona. O justo meio, o equilíbrio que cultivavam os gregos, sábios inventores do esporte, tornou-se mera lembrança.
O Corinthians na fila
É assim que o futebol se transforma num prisioneiro da televisão. A disputa nua e crua dos números de audiência é o sintoma terminal de um processo de subversão cultural. O cinema, a televisão e mais recentemente a internet, subverteram a percepção da história. O tempo histórico não é mais percebido como um percurso linear. Não há mais começo, meio e fim. Passado, presente e futuro. Hoje é tudo ao mesmo tempo agora. Vivemos o presente permanente. Um presente sem passado e sem futuro. Sem raízes e sem frutos. Uma circularidade interminável. A reposição “ad infinitum” do mesmo. Ao vivo, na TV.
O resultado dessa percepção é que ninguém ri por último. Nenhuma vitória é definitiva. Nenhuma conquista basta. Não é possível descansar. Não é permitido descansar. O show deve continuar. É preciso continuar correndo. É preciso continuar na mídia. Uma marca que desaparece da visão do espectador deixa de ganhar dinheiro e desaparece do mercado. Um time que deixa de aparecer na TV deixa de ter torcida. Para que isso possa ser melhor compreendido, usemos um contra-exemplo clássico, como contraste.
Entre 1954 e 1977, o Corinthians não venceu nenhum campeonato paulista. Foi humilhado por todos os rivais. Pelo São Paulo, que construiu o maior estádio da capital. Pelo Santos, que ficou 11 sem perder para o Corinthians um jogo de campeonato paulista. Pelo Palmeiras, que venceu a final de 1974, adiando indefinidamente a conquista do tão sonhado título. E destruindo a carreira de Rivelino, ídolo corintiano de todos os tempos. O Corinthians foi chamado de “faz-me-rir”.
Qual o resultado dessa humilhação? A torcida cresceu cada vez mais. Tornou-se a maior torcida de São Paulo. Uma nação prisioneira de um sentimento. O sentimento da necessidade de conquistar um título. O sentimento quintessencial do futebol. A sensação do grito de gol preso na garganta. A espera torturante pela explosão orgiástica do gol. A cada gol, a cada vitória, o sonho de chegar ao tão sonhado campeonato. O corintiano incorporou o estigma de sofredor, graças a essa época. “Corintiano, maloqueiro e sofredor, graças a Deus!”, canta a fiel. O sentimento de torcer pelo time é o sentimento de esperar utopicamente pela vitória que um dia virá. Pela revolução que um dia virá. O Corinthians não é um time, é um movimento messiânico.
Coincidentemente, a cidade de São Paulo viveu sua explosão demográfica no decurso dessas mesmas décadas. Explosão demográfica coincidente com a urbanização. O Brasil deixava de ser um país caipira para ser uma nação urbanizada. Milhões de migrantes nordestinos vieram para construir a megalópole do Sudeste. Milhões que vieram sonhando com a redenção de suas vidas. Na espera pela redenção corintiana, encontraram a metáfora para a sua própria redenção pessoal. Daí o sentimento que irmana os corintianos ao torcer. Daí a fundação da Gaviões da Fiel, a primeira e maior torcida organizada do Brasil. O Corinthians acabou se tornando o time mais permeável às sensibilidades populares e às mutações sociológicas do país.
O futebol como ópio do povo ou utopia do povo? A resposta viria no início dos anos 80, com a democracia corintiana. O país ainda vivia sob a ditadura e ansiava pela redemocratização. Nesse contexto surgiu um time revolucionário, auto-gestionário, que demoliu a hierarquia autoritária do futebol, apostou na autonomia e responsabilidade dos jogadores e estimulou o processo coletivo de tomada de decisão. Um exemplo vencedor de desalienação e democracia, emanando do futebol. “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”, era o slogan dessa época.
Um exemplo de vitalidade cultural e sintonia com a sensibilidade popular, proporcionado pelo futebol. O futebol de hoje pode proporcionar um exemplo assim? Um time que, nos dias de hoje, ficar 23 anos sem ganhar um campeonato, como o Corinthians ficou, desaparecerá. Um time como o São Caetano, que joga bem, com dedicação, disputa finais, mas não ganha títulos, não consegue torcida. Surge e desaparece como um meteoro.
O salve-se quem puder
Chegamos então à marca do pênalti. O mercado de futebol do Brasil está sendo forçado a uma concentração. Os dirigentes do esporte ainda não se deram conta dessa pressão. Trata-se de uma pressão mercadológica pela concentração de marcas. O mercado exige um punhado apenas de marcas com que trabalhar. Na dança das cadeiras, não haverá espaço para todos. O futebol brasileiro possui muitas marcas e nem todas poderão permanecer.
Na Europa, cada país tem no máximo dois ou três times grandes e alguns poucos times médios. A Espanha tem Real Madri e Barcelona. A Itália tem Juventus, Internazionale e Milan. A Inglaterra tem Manchester United, Liverpool e Arsenal. A Alemanha tem apenas o Bayer de Munique. A Argentina tem River Plate e Boca Juniors. A Holanda tem o Ájax, o PSV e o Feyenord. Portugal tem Benfica, Porto e Sporting. Sendo que Holanda e Portugal, como mercados de futebol, estão definhando, porque seus times não são mais capazes de acompanhar os dos grandes países.
E o Brasil? Quem são os dois ou três times grandes do Brasil? Aqui temos um problema. Não há dois ou três times grandes. Há Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos, Flamengo, Vasco, Botafogo e Fluminense, Cruzeiro e Atlético, Internacional e Grêmio; e ainda Bahia, Sport, Coritiba e Atlético-PR. São muitos candidatos para poucas vagas. Como a Libertadores da América, que reserva poucas vagas para muitos brasileiros. Daí a eterna inexperiência dos brasileiros na competição. River e Boca disputam Libertadores ano sim, ano não. Times brasileiros, uma vez a cada dez anos.
O Brasil é, em termos de futebol, um continente, pois cada Estado, como um país, tem seus próprios gigantes. E ainda há espaço para alguns times médios. Como Guarani, Ponte Preta e São Caetano em São Paulo. No Rio, havia Bangu e América, que estão em processo de extinção. Em São Paulo, a Portuguesa segue o mesmo caminho, como o América em Minas. A existência de campeonatos estaduais fortes foi o que retardou o surgimento de um Campeonato Brasileiro forte. Até os anos 90, os estaduais ainda eram mais importantes que o Brasileiro.
Nesta década fatídica, o futebol brasileiro teve que se adaptar. Quem não conquistou espaço no mercado nacional e internacional nessa década ficou irremediavelmente defasado em relação aos rivais. Os cartolas insistiram em manter fórmulas obsoletas, campeonatos inflados, desrespeito aos regulamentos, viradas de mesa e tapetões. Corporativamente, a classe dos cartolas trabalhou para transformar o futebol brasileiro num empreendimento deficitário. Ao invés de criar um campeonato que poderia ser a NBA do futebol mundial, preferiram afundar juntos na mediocridade, com seus clubes, rumo ao pântano das dívidas e crises.
O mercado pegou nossos clubes no contrapé. Pegou-os controlados por dirigentes que já se tornaram obsoletos há pelo menos 20 anos. Um Vicente Matheus era uma figura folclórica aceitável no futebol de outrora. Para sobreviver hoje, um clube precisa, além de manter a paixão do passado, visão empresarial e seriedade administrativa. Na falta dessas qualidades, cada um se vira como pode. E eis que o Corinthians embarcou no canto de seria da globalização.
O caso Corinthians-Hicks Muse
No auge da era neoliberal de FHC, um fundo de investimentos texano, que atende pelo pomposo nome de Hicks Muse Tate & Furst (HMTF), saiu pelo mundo à caça oportunidades de investimento. Como um conquistador espanhol, um aventureiro inglês na selva. O tal fundo inventou de ganhar dinheiro com futebol. Criou uma emissora de TV, a PSN e uma competição, a Copa Mercosul. E saiu à procura de times para estrelar seu projeto de uma NBA do “soccer” sul-americano.
O Corinthians foi um desses times. Os estadunidenses chegaram prometendo mundos e fundos. Como o PSDB, que prometera ficar 20 anos no poder. A Hicks Muse prometeu construir um estádio e investir também nas categorias de base. Veio o dinheiro. Vieram os craques. E os títulos. Anos de glória para o alvinegro. Momentos inesquecíveis para este filósofo da arquibancada. E a fiel viu que isto era bom. E foi bem enquanto durou.
Mas o ouro dos estadunidenses, como o Plano Real e as promessas do neoliberalismo, era ouro dos trouxas. O capital especulativo dando prazer aos descamisados (?!). Uma contradição desse quilate não poderia se sustentar. Os estadunidenses perceberam que seu projeto não iria vingar. A cartolagem brasileira, obstinadamente reacionária, frustrou os planos de se modernizar o mercado do futebol. Os investimentos começaram a pesar. A perspectiva de lucros a curto e médio prazo foi adiada cada vez mais para longe.
E as juras de amor eterno se transformaram em divórcio judicial. Separação litigiosa com disputa pelos bens. Em disputa, o passe dos craques. O fabuloso esquadrão de 1998/2000 foi desmontado. Contratos nebulosos e mal-ajambrados vieram à tona. Ídolos da torcida vestiram a carapuça de mercenários e se foram, em busca dos dólares de outras praças. E o prometido estádio? “Cadê o nosso estádio? Ninguém sabe, ninguém vi!”, canta a fiel.
Voltamos assim à bandalheira das privatizações. Quem acreditou que a Hicks Muse construiria nosso estádio? Quem acreditou que as transnacionais seriam a salvação para os serviços públicos no Brasil? Ao menor sinal de adversidade, a máscara cai. Sem lucros de curto prazo, sem investimento. Negócios são negócios. Os estadunidenses voltam lá para o Texas e deixam o clube aqui, como que arrasado por uma nuvem de gafanhotos.
Que clube do Brasil escapou de promessas desse tipo de dirigentes oportunistas? Que time deixou de sofrer desmontes e de ver seus craques e ídolos em revoada para o exterior? Que resta ao torcedor nesse cenário? Como torcer, se não há mais camisas em campo? Como torcer para um empreendimento capitalista? Onde é decidido um campeonato? No gabinete dos dirigentes que decidem contratos, negócios e negociatas. O torcedor não torce mais para que seu ídolo acerte o chute. Torce para que um dirigente não erre um contrato. A que ponto chegamos?
Chamem a polícia: privatizaram o futebol!!
Apito final
A conclusão a que o leitor pode chegar é que tudo isso não passa de um desabafo de corintiano frustrado com a má fase do time no nacional de 2003. Talvez seja, também. Mas essa reflexão não é nova. Tais idéias já haviam sido apresentadas em outros textos deste escriba-torcedor sobre futebol, como “Porque o Brasil ganhou a Copa?”. A crise do futebol não é nova, como também a crise de valores da sociedade. O fenômeno é resultado de um descalabro generalizado.
Ninguém está a salvo. Hoje é o meu time, amanhã poderá ser o seu. Toda torcida gosta de ver seu rival por baixo. Desaparecendo o rival, porém, desaparece o motivo da disputa. O Corinthians é grande porque o Palmeiras também é grande. Pelo menos era. De crise em crise, de rebaixamento em rebaixamento, estádios vazios, competições sem graça, talento exilado, desapareceremos todos. O futebol vai ficando na memória, no passado, nos videotapes.
O último a sair apague a luz dos refletores.
Daniel M. Delfino
04/09/2003
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