(Comentário sobre o filme “O Exterminador do futuro 3”)
Nome original: Terminator 3: Rise of the machines
Produção: Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra (UK)
Ano: 2003
Idiomas: Inglês
Diretor: Jonathan Mostow
Roteiro: James Cameron, Galé Anne Hurd
Elenco: Arnold Schwarzenegger, Nick Stahl, Claire Danes, Kristanna Loken, David Andrews, Mark Famiglietti
Gênero: ação, aventura, ficção científica, thriller
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
O “Exterminador do Futuro 3” realiza mais uma vez a mágica hollywoodiana de reativar uma franquia cinematográfica. A mesma história, a mesma trama, os mesmos personagens são trazidos de volta, buscando requentar no espectador as mesmas emoções, as mesmas sensações de quando assistiu ao filme original pela primeira vez. Para faturar mais uma vez. O Exterminador 3 repete praticamente a mesma história do episódio 2. As máquinas voltam do futuro para exterminar, no presente, os líderes da Resistência humana, que combate a elas, máquinas, no futuro em que dominam.
As máquinas querem se antecipar ao homem. Querem destruir a resistência que a elas se opõe, antes mesmo dessa resistência nascer. A lógica do capital anseia por controlar a história, controlando também o passado. As pretensões niveladoras e totalitárias do sistema em sua insanidade terminal alcançam todas as dimensões da história e do tempo. Passado, presente e futuro tem que se adequar. O mundo deve ser formatado. Os enganos do passado devem ser varridos do mapa. O sonho de Hitler era aniquilar da história a existência dos judeus.
O totalitarismo guarda em sua essência essa pretensão de reinventar a história. Varrer da história o indesejável, o inaceitável e o diferente. Desfechar uma guerra purificadora heróica e definitiva. Uma santa cruzada. O sonho totalitário é uma operação de estética e também de engenharia. O sonho de um mundo perfeito e sem erros, com traçado retilíneo, racional e cartesiano. Sem as imperfeições humanas. As máquinas aprenderam a lição e querem poupar trabalho. Partir direto para um mundo sem seres humanos. Máquinas fabricando máquinas. A suprema utopia do capital.
A idéia foi apresentada com genialidade no primeiro “Exterminador”, de 1984, um clássico de ficção noir, ainda com um certo aspecto de “filme B”, que mostrava ao mundo um robô exterminador com cara de ator austríaco de nome impronunciável; ou melhor, um fisiculturista austríaco que se fazia passar por robô. Em 1991 as máquinas voltam, com efeitos especiais revolucionários, que marcaram a história do cinema, embaladas por uma produção escandalosamente milionária para os padrões da época. Um orçamento que rapidamente se tornou banal, nesta década de expansões vertiginosas que foram os anos 90.
Os dois primeiros Exterminadores apresentavam como mote a tentativa de salvar a humanidade do holocausto nuclear. Um medo ainda plausível na última década da Guerra Fria. A perspectiva sombria do bombardeio nuclear era apresentada com cores de holocausto bíblico, sob o nome de “judgement day”, o dia do juízo final da mitologia cristã. Para desespero dos crédulos e assustadiços estadunidenses, o filme ilustrava o pesadelo supremo, a visão de suas prósperas comunidades suburbanas sendo consumidas por uma avalanche de labaredas radioativas. Felizmente, acreditavam todos, o dia do juízo fora evitado no segundo filme. As máquinas que destruiriam o mundo do futuro foram destruídas antes, pelos guerrilheiros do presente.
James Cameron, o criador da idéia, achou que o recado estava dado e foi procurar seus navios afundados. Mas a década de 1990 passou. Chegamos ao novo milênio. Vieram os atentados de 11 de Setembro. E o mundo mergulhou de novo numa nova Guerra Fria. “Guerra contra o terror”. Guerra sem fim. E sem finalidade outra a não ser reafirmar o poderio estadunidense. Guerra sem fim, paranóia sem fim. John Connor, o mítico salvador da humanidade dos dois primeiros filmes, vive sem endereço fixo, sem identidade, sem conexões com o mundo real, com medo de algum fantasma do futuro apocalíptico seguir seus rastros. Uma vida desperdiçada pelo medo.
Na nova Guerra Fria contra o terror, os heróis do passado são ressuscitados. Arnold Shwarzenegger é convocado para ganhar as eleições na Califórnia em nome do Partido Republicano do comandante-em-chefe George W. Bush, que se imagina o John Connor do presente, o salvador do complexo industrial-militar estadunidense. Antes, ele precisa reativar sua carreira cinematográfica. Arnold veste o traje do Exterminador para a nova era. O personagem se assume como ícone pop. O Exterminador perde a pose para ganhar votos. O robô do futuro retoma seu uniforme de motoqueiro ao som de Village People, saindo de um clube de mulheres. O fetiche do corpo perfeito e da cara de mau é assumido descaradamente, em tom de galhofa. O Exterminador é desconstruído. “Bad to the bone” é substituído por “Macho Man”. O personagem se auto-satiriza para se imunizar contra a sátira dos críticos.
Devidamente imunizado, ele trata de cumprir sua missão. O mundo tem que ser salvo. E também o Estado da Califórnia, depois de décadas governado por “esquerdistas” e homossexuais. Não há trabalho sujo que o Exterminador rejeite. Ele é uma máquina, e fará o que for preciso. O personagem é perfeito. O Exterminador se comporta como máquina, de forma convincente, impecável. Arnold Schwarzenegger está mais uma vez à vontade no papel que o consagrou, o único que sabe interpretar, aquele que valoriza seu anguloso sotaque germânico.
O momento é mais do que perfeito para reintroduzir o personagem. A trilogia “Matrix” acaba de apresentar a versão definitiva do pesadelo do homem subjugado pelas máquinas. Diante da distopia de “Matrix”, o mundo da Resistência de James Cameron/John Connor é fichinha. “Matrix” completa o “Exterminador”. As duas histórias formam uma mesma narrativa complementar. Em “Exterminador” as máquinas vencem a guerra contra os humanos. Em “Matrix” elas os escravizam e passam a viver de sua bioenergia.
O oportunismo hollywoodiano continua atilado. Se “Matrix Revolutions” promete mostrar uma espetacular guerra dos homens contra as máquinas, a série do Exterminador promete por sua vez tirar sua casquinha dessa idéia. O Exterminador 3 e 4 (sim, haverá obviamente mais uma continuação) podem pegar carona na excitação do público e mostrar mais uma vez o mundo sendo salvo das máquinas. Mostrar sua própria versão, mais grosseira e diretamente patriótica. John Connor liderará os humanos à vitória com a bandeira dos Estados Unidos tremulando ao fundo.
A história do “Exterminador 3” é a mesma dos anteriores, mas tem alguma originalidade. Tem a diferença de que não é mais possível salvar o mundo. Estamos mesmo condenados. O juízo final acontecerá. Aquilo que James Cameron apenas insinuava, Schwarzenegger escancara. O mundo será inevitavelmente destruído. Perca suas esperanças. Trate de se esconder e sobreviver. O cinema perde o pudor. Não há mais constrangimento em mostrar seu país sendo destruído. Depois de “Independence day”, depois de “Matrix”, não há mais porque ter esse pudor.
Principalmente, depois de 11 de Setembro, não há mais porque ter esse constrangimento. Uma ferida narcísica indelével se abriu no ego estadunidense. O cinematográfico atentado de bin Laden calou fundo numa cultura calcada em imagens. A esse respeito, vide meu artigo “A metástase do ódio”, sobre os tais atentados. De qualquer maneira, os Estados Unidos agora tentarão encontrar uma maneira de metabolizar o ocorrido em sua ficção. Como já o fizeram os japoneses a respeito da bomba atômica. Todo bom “anime” japonês, de “Akira” a “Evangelion”, tem como marco da história uma mega-explosão devastadora que destruirá ou destruiu a civilização.
Mas os japoneses tiveram mais sucesso nessa metabolização, visto que descendem de uma cultura fatalista e perfeitamente conciliada com a morte e a possibilidade da derrota. O fatalismo dos samurais sobrevive no seu inconsciente. Os Estados Unidos, ao contrário, não podem aceitar a derrota. O dia do juízo se abate sobre eles, mas não pode ser admitido como derrota. As bombas atômicas caem, em “Exterminador 3”, ao som de violinos triunfais. Como em “Pearl Harbour”, a mais acachapante derrota tem que ser mostrada como vitória. Devemos esperar pela continuação para saber como isso se dará.
Na continuação, os protagonistas estarão ilhados em um abrigo anti-nuclear, com a árdua tarefa de construir a resistência. Tarefa que o destino lhes conferiu. De maneira ingênua, supõe-se que apenas por ter o conhecimento prévio de como tudo aconteceu, John Connor será aceito como autoridade pelos sobreviventes. Mais uma versão do mito de que a verdade prevalecerá por si mesma e será ouvida, mito que os Estados Unidos acalentam tão credulamente.
Como também o mito do destino determinando o envolvimento romântico. John Connor tinha uma namorada, na noite anterior aos eventos de Exterminador 2. Ficamos sabendo disso agora. Uma namorada que é filha do general que criou o sistema Skynet. Sistema que foi infectado pela exterminadora que veio do futuro. Sim, uma exterminadora. Logo falaremos dela. O casal adolescente está fadado a se reencontrar no futuro. É o destino. O primeiro beijo, dado naquela noite, selou seu futuro. O namoro de infância é o único verdadeiro e duradouro. A namorada de Connor, já adulta, está insatisfeita com o noivo. Está em dúvida, talvez esperando que seu príncipe encantado ressurja do passado.
Assim como John está preso ao fantasma da mãe. Sua namorada, como boa filha de general que é, sabe se virar com uma arma. Sabe defender o casal. Num momento-Édipo para freudiano nenhum botar defeito, John se lembra de sua mãe ao ver sua namorada empunhar uma arma contra as máquinas. Ele admira a imagem de uma mulher que lembra sua mãe. O ciclo do determinismo está fechado.
Mas não é só de velhos clichês da cultura de massas que vive esse Exterminador. Os mitos tem que ser atualizados. O mercado é implacável e exige novidades. No primeiro filme, a imagem do mal, como bem convinha, era um brutamontes mecânico. No segundo, um fuinha franzino e dissimulado, que passa facilmente despercebido. Um ser de metal líquido que pode se passar por qualquer pessoa. O mal está em toda parte. O engano é inevitável. O perigo é difuso e onipresente, como em qualquer bom filme de paranóia. No terceiro filme, o exterminador é uma mulher. Uma bela loira fatal. Uma boneca de metal líquido que infla os seios para agradar os homens. Que elogia a arma do policial olhando para sua cintura. Duplo sentido e segundas intenções.
Nada pode ser mais perigoso no nosso imaginário do que uma mulher assassina. Uma mulher que desarma a atenção pela imposição de sua beleza, de seu porte, de sua imagem de poder, seu caminhar de modelo na passarela, sua determinação de executiva do mercado financeiro. A imagem da mulher que todo homem inseguro teme. O perigo sexual e social numa só figura. Uma imagem feminina intolerável para o puritanismo.
O oposto da namorada de John Connor, que adia o casamento esperando inconscientemente pelo namorado de infância. Esperando pelo príncipe encantado. Que quando surge, porém, parece mais um sapo. Essa heroína por sua vez representa o oposto das personagens femininas fortes dos demais filmes do diretor James Cameron. Kate Brewster é apenas uma garota comportada. Poderia ser mais do que isso. Nenhuma franquia cinematográfica perde impunemente seu criador. É impossível deixar de sofrer a correspondente perda de qualidade. James Cameron pulou fora do barco, recusando-se a participar deste episódio, mas deu toda força a Schwarzenegger para ir em frente com o projeto.
Ficamos assim com um filme que explora suas próprias referências. Como o hilário dr. Silberman, o psiquiatra que internou Sara Connor como louca e fez carreira com a história do exterminador por ela “inventada”. Também é curioso o afeto de John Connor pelo exterminador que lhe serviu de figura paterna. Pateticamente, o exterminador, por sua vez, resiste ao vírus nanotecnológico que lhe foi implantado pela exterminadora, lutando para manter sua programação original e defender Connor. O personagem dá ao público o que ele espera, o gostinho de quase ver uma máquina desenvolvendo emoções.
No final, mais uma concessão aos preconceitos do público estadunidense. A exterminadora tem que perder sua imagem de beleza e revelar-se como máquina horrenda, nos estertores finais. O mal tem que se revelar em toda sua feiúra. A beleza de que se revestia tem que ser descartada e desmascarada. Nunca a beleza pode ser confundida com a maldade, a não ser que seja uma falsa beleza.
Mas não importa. Essas concessões ao gosto médio não chegam a estragar o filme. O velho Schwarzenegger dá conta do recado. O casal John Connor/Kate Brewster faz direitinho seu papel. As cenas de ação são corretas. E a beleza da exterminadora dá o toque extra de charme. Para quem esperava uma produçãozinha oportunista, trata-se de uma bela surpresa. Vale uma pipoca.
Daniel M. Delfino
24/08/2003
As máquinas querem se antecipar ao homem. Querem destruir a resistência que a elas se opõe, antes mesmo dessa resistência nascer. A lógica do capital anseia por controlar a história, controlando também o passado. As pretensões niveladoras e totalitárias do sistema em sua insanidade terminal alcançam todas as dimensões da história e do tempo. Passado, presente e futuro tem que se adequar. O mundo deve ser formatado. Os enganos do passado devem ser varridos do mapa. O sonho de Hitler era aniquilar da história a existência dos judeus.
O totalitarismo guarda em sua essência essa pretensão de reinventar a história. Varrer da história o indesejável, o inaceitável e o diferente. Desfechar uma guerra purificadora heróica e definitiva. Uma santa cruzada. O sonho totalitário é uma operação de estética e também de engenharia. O sonho de um mundo perfeito e sem erros, com traçado retilíneo, racional e cartesiano. Sem as imperfeições humanas. As máquinas aprenderam a lição e querem poupar trabalho. Partir direto para um mundo sem seres humanos. Máquinas fabricando máquinas. A suprema utopia do capital.
A idéia foi apresentada com genialidade no primeiro “Exterminador”, de 1984, um clássico de ficção noir, ainda com um certo aspecto de “filme B”, que mostrava ao mundo um robô exterminador com cara de ator austríaco de nome impronunciável; ou melhor, um fisiculturista austríaco que se fazia passar por robô. Em 1991 as máquinas voltam, com efeitos especiais revolucionários, que marcaram a história do cinema, embaladas por uma produção escandalosamente milionária para os padrões da época. Um orçamento que rapidamente se tornou banal, nesta década de expansões vertiginosas que foram os anos 90.
Os dois primeiros Exterminadores apresentavam como mote a tentativa de salvar a humanidade do holocausto nuclear. Um medo ainda plausível na última década da Guerra Fria. A perspectiva sombria do bombardeio nuclear era apresentada com cores de holocausto bíblico, sob o nome de “judgement day”, o dia do juízo final da mitologia cristã. Para desespero dos crédulos e assustadiços estadunidenses, o filme ilustrava o pesadelo supremo, a visão de suas prósperas comunidades suburbanas sendo consumidas por uma avalanche de labaredas radioativas. Felizmente, acreditavam todos, o dia do juízo fora evitado no segundo filme. As máquinas que destruiriam o mundo do futuro foram destruídas antes, pelos guerrilheiros do presente.
James Cameron, o criador da idéia, achou que o recado estava dado e foi procurar seus navios afundados. Mas a década de 1990 passou. Chegamos ao novo milênio. Vieram os atentados de 11 de Setembro. E o mundo mergulhou de novo numa nova Guerra Fria. “Guerra contra o terror”. Guerra sem fim. E sem finalidade outra a não ser reafirmar o poderio estadunidense. Guerra sem fim, paranóia sem fim. John Connor, o mítico salvador da humanidade dos dois primeiros filmes, vive sem endereço fixo, sem identidade, sem conexões com o mundo real, com medo de algum fantasma do futuro apocalíptico seguir seus rastros. Uma vida desperdiçada pelo medo.
Na nova Guerra Fria contra o terror, os heróis do passado são ressuscitados. Arnold Shwarzenegger é convocado para ganhar as eleições na Califórnia em nome do Partido Republicano do comandante-em-chefe George W. Bush, que se imagina o John Connor do presente, o salvador do complexo industrial-militar estadunidense. Antes, ele precisa reativar sua carreira cinematográfica. Arnold veste o traje do Exterminador para a nova era. O personagem se assume como ícone pop. O Exterminador perde a pose para ganhar votos. O robô do futuro retoma seu uniforme de motoqueiro ao som de Village People, saindo de um clube de mulheres. O fetiche do corpo perfeito e da cara de mau é assumido descaradamente, em tom de galhofa. O Exterminador é desconstruído. “Bad to the bone” é substituído por “Macho Man”. O personagem se auto-satiriza para se imunizar contra a sátira dos críticos.
Devidamente imunizado, ele trata de cumprir sua missão. O mundo tem que ser salvo. E também o Estado da Califórnia, depois de décadas governado por “esquerdistas” e homossexuais. Não há trabalho sujo que o Exterminador rejeite. Ele é uma máquina, e fará o que for preciso. O personagem é perfeito. O Exterminador se comporta como máquina, de forma convincente, impecável. Arnold Schwarzenegger está mais uma vez à vontade no papel que o consagrou, o único que sabe interpretar, aquele que valoriza seu anguloso sotaque germânico.
O momento é mais do que perfeito para reintroduzir o personagem. A trilogia “Matrix” acaba de apresentar a versão definitiva do pesadelo do homem subjugado pelas máquinas. Diante da distopia de “Matrix”, o mundo da Resistência de James Cameron/John Connor é fichinha. “Matrix” completa o “Exterminador”. As duas histórias formam uma mesma narrativa complementar. Em “Exterminador” as máquinas vencem a guerra contra os humanos. Em “Matrix” elas os escravizam e passam a viver de sua bioenergia.
O oportunismo hollywoodiano continua atilado. Se “Matrix Revolutions” promete mostrar uma espetacular guerra dos homens contra as máquinas, a série do Exterminador promete por sua vez tirar sua casquinha dessa idéia. O Exterminador 3 e 4 (sim, haverá obviamente mais uma continuação) podem pegar carona na excitação do público e mostrar mais uma vez o mundo sendo salvo das máquinas. Mostrar sua própria versão, mais grosseira e diretamente patriótica. John Connor liderará os humanos à vitória com a bandeira dos Estados Unidos tremulando ao fundo.
A história do “Exterminador 3” é a mesma dos anteriores, mas tem alguma originalidade. Tem a diferença de que não é mais possível salvar o mundo. Estamos mesmo condenados. O juízo final acontecerá. Aquilo que James Cameron apenas insinuava, Schwarzenegger escancara. O mundo será inevitavelmente destruído. Perca suas esperanças. Trate de se esconder e sobreviver. O cinema perde o pudor. Não há mais constrangimento em mostrar seu país sendo destruído. Depois de “Independence day”, depois de “Matrix”, não há mais porque ter esse pudor.
Principalmente, depois de 11 de Setembro, não há mais porque ter esse constrangimento. Uma ferida narcísica indelével se abriu no ego estadunidense. O cinematográfico atentado de bin Laden calou fundo numa cultura calcada em imagens. A esse respeito, vide meu artigo “A metástase do ódio”, sobre os tais atentados. De qualquer maneira, os Estados Unidos agora tentarão encontrar uma maneira de metabolizar o ocorrido em sua ficção. Como já o fizeram os japoneses a respeito da bomba atômica. Todo bom “anime” japonês, de “Akira” a “Evangelion”, tem como marco da história uma mega-explosão devastadora que destruirá ou destruiu a civilização.
Mas os japoneses tiveram mais sucesso nessa metabolização, visto que descendem de uma cultura fatalista e perfeitamente conciliada com a morte e a possibilidade da derrota. O fatalismo dos samurais sobrevive no seu inconsciente. Os Estados Unidos, ao contrário, não podem aceitar a derrota. O dia do juízo se abate sobre eles, mas não pode ser admitido como derrota. As bombas atômicas caem, em “Exterminador 3”, ao som de violinos triunfais. Como em “Pearl Harbour”, a mais acachapante derrota tem que ser mostrada como vitória. Devemos esperar pela continuação para saber como isso se dará.
Na continuação, os protagonistas estarão ilhados em um abrigo anti-nuclear, com a árdua tarefa de construir a resistência. Tarefa que o destino lhes conferiu. De maneira ingênua, supõe-se que apenas por ter o conhecimento prévio de como tudo aconteceu, John Connor será aceito como autoridade pelos sobreviventes. Mais uma versão do mito de que a verdade prevalecerá por si mesma e será ouvida, mito que os Estados Unidos acalentam tão credulamente.
Como também o mito do destino determinando o envolvimento romântico. John Connor tinha uma namorada, na noite anterior aos eventos de Exterminador 2. Ficamos sabendo disso agora. Uma namorada que é filha do general que criou o sistema Skynet. Sistema que foi infectado pela exterminadora que veio do futuro. Sim, uma exterminadora. Logo falaremos dela. O casal adolescente está fadado a se reencontrar no futuro. É o destino. O primeiro beijo, dado naquela noite, selou seu futuro. O namoro de infância é o único verdadeiro e duradouro. A namorada de Connor, já adulta, está insatisfeita com o noivo. Está em dúvida, talvez esperando que seu príncipe encantado ressurja do passado.
Assim como John está preso ao fantasma da mãe. Sua namorada, como boa filha de general que é, sabe se virar com uma arma. Sabe defender o casal. Num momento-Édipo para freudiano nenhum botar defeito, John se lembra de sua mãe ao ver sua namorada empunhar uma arma contra as máquinas. Ele admira a imagem de uma mulher que lembra sua mãe. O ciclo do determinismo está fechado.
Mas não é só de velhos clichês da cultura de massas que vive esse Exterminador. Os mitos tem que ser atualizados. O mercado é implacável e exige novidades. No primeiro filme, a imagem do mal, como bem convinha, era um brutamontes mecânico. No segundo, um fuinha franzino e dissimulado, que passa facilmente despercebido. Um ser de metal líquido que pode se passar por qualquer pessoa. O mal está em toda parte. O engano é inevitável. O perigo é difuso e onipresente, como em qualquer bom filme de paranóia. No terceiro filme, o exterminador é uma mulher. Uma bela loira fatal. Uma boneca de metal líquido que infla os seios para agradar os homens. Que elogia a arma do policial olhando para sua cintura. Duplo sentido e segundas intenções.
Nada pode ser mais perigoso no nosso imaginário do que uma mulher assassina. Uma mulher que desarma a atenção pela imposição de sua beleza, de seu porte, de sua imagem de poder, seu caminhar de modelo na passarela, sua determinação de executiva do mercado financeiro. A imagem da mulher que todo homem inseguro teme. O perigo sexual e social numa só figura. Uma imagem feminina intolerável para o puritanismo.
O oposto da namorada de John Connor, que adia o casamento esperando inconscientemente pelo namorado de infância. Esperando pelo príncipe encantado. Que quando surge, porém, parece mais um sapo. Essa heroína por sua vez representa o oposto das personagens femininas fortes dos demais filmes do diretor James Cameron. Kate Brewster é apenas uma garota comportada. Poderia ser mais do que isso. Nenhuma franquia cinematográfica perde impunemente seu criador. É impossível deixar de sofrer a correspondente perda de qualidade. James Cameron pulou fora do barco, recusando-se a participar deste episódio, mas deu toda força a Schwarzenegger para ir em frente com o projeto.
Ficamos assim com um filme que explora suas próprias referências. Como o hilário dr. Silberman, o psiquiatra que internou Sara Connor como louca e fez carreira com a história do exterminador por ela “inventada”. Também é curioso o afeto de John Connor pelo exterminador que lhe serviu de figura paterna. Pateticamente, o exterminador, por sua vez, resiste ao vírus nanotecnológico que lhe foi implantado pela exterminadora, lutando para manter sua programação original e defender Connor. O personagem dá ao público o que ele espera, o gostinho de quase ver uma máquina desenvolvendo emoções.
No final, mais uma concessão aos preconceitos do público estadunidense. A exterminadora tem que perder sua imagem de beleza e revelar-se como máquina horrenda, nos estertores finais. O mal tem que se revelar em toda sua feiúra. A beleza de que se revestia tem que ser descartada e desmascarada. Nunca a beleza pode ser confundida com a maldade, a não ser que seja uma falsa beleza.
Mas não importa. Essas concessões ao gosto médio não chegam a estragar o filme. O velho Schwarzenegger dá conta do recado. O casal John Connor/Kate Brewster faz direitinho seu papel. As cenas de ação são corretas. E a beleza da exterminadora dá o toque extra de charme. Para quem esperava uma produçãozinha oportunista, trata-se de uma bela surpresa. Vale uma pipoca.
Daniel M. Delfino
24/08/2003
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