30.4.07

A esquizofrenia da Razão de Estado pós-moderna na mídia globalizada




1. Guerra para acabar com as guerras?

Guerra é paz. Essa singela fórmula orwelliana descreve com precisão a contradição entre o discurso e os resultados na prática do moderno Estado totalitário. A guerra é um meio para alcançar a paz. O absurdo dessa proposição é evidente. Somente os cemitérios estão na mais completa paz. Até onde se sabe, os mortos não lutam mais. Qual é a paz que se pretende alcançar por meio da guerra? A paz da aniquilação total do inimigo. Aquele que já não tem mais contra quem lutar também está em paz. A paz do movimento que alcança sua plenitude e cessa completamente. E deixa de ser, pois o repouso não é mais movimento.

A guerra para alcançar a paz, “a guerra para acabar com todas as guerras”, como se dizia por ocasião da I Guerra Mundial, era um pretexto ideológico dos Estados imperialistas do início do século XX para resolverem seus antagonismos intercapitalistas diretamente pela força das armas. A ideologia da guerra necessita de um oposto simétrico para se justificar. A guerra só faz sentido contra um inimigo suficientemente portentoso cuja queda seja proporcionalmente gloriosa. O inimigo é o outro, não apenas no plano imediato da oposição bélica. O inimigo é o outro num sentido absoluto, ontológico, porque representa o próprio mal.

Para cada país, a nação inimiga não é apenas uma nação como qualquer outra, assim como o próprio país, para seus habitantes, não é apenas um país como qualquer outro. Cada um vê a si mesmo como a própria imagem do bem, enquanto o inimigo obviamente é o próprio mal absoluto. Essa é a origem do chauvinismo, a auto-glorificação patriótica e o preconceito xenófobo. A ideologia da guerra se manifesta como chauvinismo exacerbado. O chauvinismo é a crença irracional na superioridade da pátria, visando despertar o apego sentimental à nacionalidade. O que faz uma nação moderna, mais do que uma língua, uma religião ou uma etnia, é um exército, com uma bandeira pela qual lutar.

A guerra é a razão primeira da existência do Estado, desde suas formas primitivas. A guerra é invocada em nome da defesa da tribo contra a agressão externa, a defesa contra aquilo que é indesejável, contra outra cultura, outra religião e outra etnia. O chauvinismo apela para o misticismo das cores, dos brasões, da bandeira, dos hinos marciais, dos mitos heróicos, do romantismo cavalheiresco, para seduzir recrutas dispostos a servirem de bucha de canhão. Matéria-prima para a indústria da morte. Uma indústria capitalista como qualquer outra. Não há distinção de natureza entre produção e destruição na economia capitalista. A distinção está apenas no grau de intensidade do usufruto dos insumos materiais e humanos empregados em ambos os processos.

2. As baixezas do chauvinismo.

O discurso chauvinista da guerra no início do século XX destinava-se a unir a classe trabalhadora à burguesia na aventura imperialista da conquista de mercados. A guerra moderna “unifica” as classes num consenso artificial fraudulento em torno da figura do Estado burguês, que se materializa no exército. O advento da ameaça socialista como antagonista mundial do capitalismo, na segunda metade do século XX, evidencia a fraude do chauvinismo na sua forma mais pura.

Perguntava-se ao comunista em caso de guerra entre o Brasil e a União Soviética, de que lado ele estaria. Prestes caiu na armadilha da pergunta e respondeu que defenderia a União Soviética e por isso foi execrado como traidor da pátria. Aqui não importa que a União Soviética não fosse um Estado socialista de verdade. Porque de fato não era. Este escriba também não defenderia a União Soviética. Discute-se aqui a questão de princípio. Em nome do internacionalismo proletário e do próprio proletariado brasileiro, o comunista brasileiro tinha que ser inimigo do seu antagonista de classe, ou seja, do Estado brasileiro. Mas para o discurso chauvinista burguês, isso é sinônimo de traição.

O chauvinismo não consegue conceber a contradição de classes no interior da nação, pois para a razão de estado burguesa o Estado nacional é necessariamente um monobloco, um ente unitário, uma mônada, sem fissuras nem conflitos. Não havia, na Guerra Fria, oposição entre ideologias, havia oposição entre Estados, de acordo com essa concepção. O estadunidense não odiava o comunismo, odiava a Rússia. Ou odiava o comunismo subsidiariamente por meio do ódio à Rússia. O estadunidense nem sabia o que era comunismo. Era apenas mais uma forma de sub-religião, de anti-cristianismo, de cultura degradada, praticada por uma raça inferior. Uma raça inimiga, um Império do Mal.

A razão de Estado do bloco capitalista durante a Guerra Fria era a defesa dos valores cristãos, da democracia e do livre-mercado. O Estado burguês tinha essas palavras de ordem inscritas no seu DNA. A natureza alienadora e exploratória do modo de produção capitalista, bem como suas contradições de classe, tinham de ficar submersas sob o discurso maciço da defesa da democracia e da liberdade. Era preciso pensar e agir como se o mundo ocidental fosse o Mundo Livre.

3. A apoteose do capital na mídia.

E o Mundo Livre venceu a competição da Guerra Fria. De acordo com essa ótica, a vitória do bloco capitalista deve levar necessariamente à conclusão, no plano do discurso, de que o mundo globalizado é o mundo da democracia e da liberdade. De que democracia e livre-mercado são sinônimos. De que liberdade para os capitais é sinônimo de progresso, já que o capitalismo venceu a batalha dos modelos. Essa conclusão é um subtexto presente em todo o pensamento globalizado.

A mídia internacionalizada é o porta-voz desse pensamento global. A CNN e suas congêneres interpretam o mundo por meio desse discurso. O capitalismo venceu, logo a democracia e o livre-mercado são os únicos regimes racionais e desejáveis. A imprensa local, em cada país, para se mostrar atualizada, tem que ecoar essas verdades. Ser moderno é sinônimo de ser global. Ser global é sinônimo de ser capitalista. Dizer algo diferente equivale a remar contra a maré da história. O rumo do progresso está traçado inexoravelmente rumo a mais capitalismo.

Remar contra a maré da história não é apenas inútil e improdutivo, mas é também fora de moda. A moda dita o rumo que deve tomar o discurso. O futuro acelerado é a única escolha estética possível. O futuro é rápido, é eficiente, é exato, por isso é bonito. Bonito como uma luminária de néon. Um caleidoscópio alucinatório. O passado, com suas utopias, é perda de tempo. E tempo é dinheiro. Não há que se perder tempo com o passado. É preciso correr para alcançar o futuro sempre evanescente e fugidio. O futuro está sempre um passo à frente. É preciso correr para não perder o bonde, e estamos sempre atrasados.

Por isso, a mídia tem pressa. O jornalismo nacional se esforça para se reciclar e se tornar um clone local da CNN. Telejornais diários e imprensa escrita se desdobram para alcançar a notícia mais urgente. A paranóia de estar “in loco” no momento em que a notícia acontece substitui qualquer critério de relevância. É mais importante estar lá do que saber o que acontece. O fetiche da transmissão ao vivo substitui a crítica da realidade. Já que não se pode estar em todo lugar ao mesmo tempo, torna-se preciso escolher o lugar privilegiado onde a notícia é fabricada.

4. A fábrica de notícias.

A notícia mais urgente é quase sempre a última cotação do mercado financeiro. O mercado que acaba de fechar num ponto do globo para abrir em outro. As bolsas de valores não param. Mercados de commodities, de ações, de títulos de dívida, de câmbio, de juros, hipotecando o futuro à exuberância irracional do presente. O capital não perde tempo. O sol não se põe jamais sobre seu império. E os arautos e acólitos do capital têm pressa em acompanhar seus movimentos nervosos, erráticos e irrequietos. A observação do mercado pela mídia é simultaneamente um culto ao mercado e um serviço ao mercado.

E o mercado é um deus impaciente e voraz. Como um deus adormecido dentro de um vulcão, o mercado ameaça despertar e destruir com sua fúria aqueles que ousarem desafiar a ordem por ele instituída. Ao menor sinal de contrariedade, ele provoca terremotos que levam o pânico aos seus sacerdotes. Edições especiais de telejornal trazem jornalistas apavorados revestidos de grande solenidade para cobrir as crises e estertores provocados pelos humores insondáveis do mercado. Mudanças infinitesimais nos índices e cotações são alvo de compenetradas análises e angustiadas discussões. A mídia veicula assim o espetáculo patético da falsa consciência que forja para uso de si mesma um fantasma onipotente, precisamente para assombrá-la e para poder mostrar-se-lhe servil.

Além do mercado está o caos, o nada. Não há vida possível fora do mercado. Impõe-se agradar ao mercado acima de tudo. O Estado se põe a serviço do mercado e a mídia a serviço do Estado. O Estado pauta a mídia, porque se legitima por meio da mídia. Não há mais jornalismo independente. O papel do jornalista é cobrir declarações de chefes de Estado e autoridades. Divulgar os chamados “press-releases”. Vide a “cobertura” jornalística da invasão do Iraque. Nenhum jornalismo é admitido a não ser aquele que veste a farda do Pentágono. Num mundo de notícias administradas, o furo de reportagem representa o único perigo de ruptura no maciço dique ideológico do discurso globalizado.

Por conta desse perigo, o vazamento de notícias é o método preferencial da guerra de informação e contra-informação, da intriga política e da disputa de poder entre as facções do capital no interior do Estado burguês. A mídia é chamada de quarto poder. Além do Executivo, Legislativo e Judiciário, está o noticioso. Um executa, outro legisla, outro julga e o quarto divulga, sacramentando a necessária fluência para a normalidade dos negócios.

O quarto poder precisa dirigir seu discurso a um amálgama constituído do conjunto da população, chamado de opinião pública. A opinião pública é o mercado consumidor de notícias e de idéias políticas, que substitui a antiga massa do Estado chauvinista.

5. O descolamento entre realidade e discurso.

O Estado globalizado possui a mesma estrutura do Estado nacional chauvinista arcaico, mas sujeita-se a um papel no cenário global traçado por uma esfera cujo poder o transcende. Aí está a esquizofrenia. O discurso da razão de Estado procura ainda falar aos cidadãos do Estado nacional como a uma comunidade harmoniosa e monolítica, enquanto que na prática as instituições do Estado burguês funcionam como um comitê de gestão dos interesses do capital supra-nacional. O papel da mídia é tentar convencer a população nacional de que o que é bom para o capital é bom para o país. Para qualquer país. O discurso é um só, mudam apenas a língua e as feições étnicas (ou nem mesmo isso) do locutor-boneco que o veicula.

Enquanto isso, dentro de cada país, o capital promove a seu bel-prazer a privatização, a financeirização da riqueza, a desindustrialização, a precarização do trabalho, o corte de direitos, o desemprego, o desmonte da educação, da saúde, da segurança, do saneamento e dos serviços públicos, a insegurança social generalizada, a imprevidência pública, o saque ao patrimônio público, a escalada do crime organizado, a corrupção do Estado, a lavagem de dinheiro, a degradação ambiental desenfreada, etc.. Tudo isso em nome do bem do país.

O papel da mídia é avaliar a competência do governo em posicionar o país na competição global. O papel do governo, por sua vez, é se esforçar para agradar ao mercado global. A mídia é o tribunal onde o capital julga a adequação do Estão nacional ao modelo. Nenhum povo tem mais soberania para escolher seu modelo de sociedade. O modelo já está pronto, na vitrine das telas de TV, no mosaico de imagens publicitárias da opulência capitalista. A régua impassível dos números do risco-país e o distintivo de “investment grade” dão a medida quantitativa imediata e instantânea da auto-estima nacional. O eleitor não elege mais governantes no sentido forte, elege os mascates que vão representar “nossa imagem no exterior”. O capital mais útil de um país é sua imagem.

A mídia fala a um mundo dividido em países com seus governos instituídos, mas governado de fato por um sistema transnacional. Ela fornece o palco para o jogo de cena das declarações protocolares dos círculos diplomáticos internacionais, onde os patéticos síndicos dos governos nacionais caducos articulam a complexa funcionalidade da competição desenfreada. Sorrisos e apertos de mão na superfície; socos e pontapés nos bastidores. Discursos automáticos e vazios. A fala de qualquer chefe de Estado hoje, a respeito de qualquer assunto, é tão previsível quanto o restante da programação da TV. A política é hoje o circo do humor involuntário. O político é o pagador de micos profissional. Vide o Lulinha paz e amor, vulgo Sassá Mutema.

6. Quanto maior a mentira, maior a credulidade.

Dissemos acima que o motivo da guerra, na razão de estado burguesa, é alcançar a paz. Que dizer então de uma guerra contra o terrorismo? Como se pode acabar com um inimigo como o terrorista? Como fazer guerra a um inimigo que não se apresenta frontalmente no campo de batalha? Com que legitimidade um determinado Estado pode fazer guerra a um inimigo que não é, simetricamente, outro Estado? Apenas um Estado que reclamasse soberania sobre todo o espaço mundial poderia se investir do direito de se opor a um antagonista desterritorializado no seu próprio interior.

O terrorismo não tem pátria, não tem território, não tem rosto. O terrorista é simultaneamente ninguém e qualquer um. É potencialmente qualquer pessoa que se oponha ao Estado dominante. A guerra contra o terrorismo é uma guerra contra qualquer oposição, real ou suposta, virtual ou manifesta. Essa guerra inaugura um estado permanente de suspeição generalizada. Qualquer um pode ser o inimigo. Qualquer um é terrorista até que se prove o contrário. A suspeição generalizada legitima o Estado policial global.

O Estado policial global em gestação significa a institucionalização do terror de Estado em níveis globais. Para combater o terrorismo, o Estado se torna ele próprio terrorista. Eis uma antítese que é contraditória apenas no discurso, mas se mostra exata no plano de sua funcionalidade prática. O Estado de exceção se impõe no lugar do Estado de direito. A guerra perpétua auto-proclamada legitima o poder perpétuo dos senhores da guerra auto-eleitos. O círculo vicioso das agressões e da repressão se auto-alimenta. O terrorista é o inimigo virtual ideal para quem quer o pretexto de exercer o poder policial sem qualquer restrição. Osama e Bush, feitos um para o outro.

A mídia é a ferramenta que legitima o poder político na sociedade do espetáculo. A apatia generalizada da chamada opinião pública a respeito dos temas estratégicos da política e da economia faz com que essa massa semi-homogênea mova-se, por força de sua própria inércia, na direção da continuidade. As mesmas fraudes, imposturas e mentiras se repõem pelo automatismo da monotonia do discurso. A oposição a isso tudo é percebida como barulho de estática, TV fora do ar. A voz dissonante não produz ruptura do consenso, mas passa despercebida como mero ruído sem sentido no fluxo da comunicação.

Comunicação que por sua vez não comunica nada, apenas enxerga a si mesma no espelho e se auto-congratula pela eficiência de seu próprio discurso.

7. Resumo da ópera

Todo discurso articulado se baseia em premissas às quais se seguem conclusões. A premissa do discurso da mídia é de que a democracia e o livre mercado são não apenas os únicos regimes vigentes no mundo a ser levados sério como os únicos possíveis. A conclusão que se segue é de que tudo que concorre para a fluência da democracia e do livre mercado é bom e que o seu oposto é mal. Toda oposição ao sistema é burra, feia, antiquada, ridícula, impraticável ou mesmo criminosa e terrorista.

Na medida em que a premissa carrega alguma verdade, a conclusão também o faz. A oposição racional ao sistema por meio do socialismo foi varrida pela locomotiva da história (embora alguns clandestinos teimosos, como este escriba, se alojem sub-repticiamente nos vagões que seguem a locomotiva). Agora, toda oposição ao sistema é de fato irracional, protagonizada por mulás ensandecidos num ridículo “conflito de civilizações”, pastiche indigno do Fim da História de Hegel.

Mas na medida em que a premissa é falsa, ainda se pode pensar objetivamente em outras alternativas possíveis de sociedade. A mídia impressa, televisiva ou virtual trabalha como ferramenta de fabricação dos consensos tácitos por meio dos quais o sistema se viabiliza politicamente. O seu discurso se mostra tanto mais esquizofrênico quanto mais a realidade teima em se enquadrar nas exigências do modelo, derrubando um presidente aqui, outro ali (Argentina, Bolívia, Geórgia)...

Um espectro ronda o mundo, o espectro da sua dissolução na barbárie. Ou aceitamos o salve-se quem puder ou nos unimos para salvar o que ainda pode ser salvo da humanidade para as gerações futuras.

Daniel M. Delfino

22/11/2003

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