30.4.07

A polêmica Matrix e filosofia




Eis que ao abrir ontem minha caixa-postal, me deparo com o seguinte e-mail, enviado por um certo Silver Surfer. Trata-se de um comentário ao meu texto “Matrix e a história da filosofia contemporânea”. O fato deste comentário ter sido enviado à minha caixa postal só pode significar, para mim, que aquele que o enviou espera algum tipo de resposta. Pelo menos foi assim que eu interpretei o fato. Reproduzo o e-mail a seguir. Peço que tenham paciência e avaliem se tenho ou não o direito e o dever de responder.

Este escriba já tinha prometido a si mesmo nunca responder críticas negativas aos meus textos. Tinha me prometido não entrar em polêmicas ou disputas, pois não foi isso que eu quis quando comecei a escrever para o site. Minha idéia era somar, apenas. Me manter sempre construtivo. Porque as disputas e polêmicas acabem criando rivalidade e despertando os piores tipos de sentimento. Mas principalmente, porque eu não tenho tempo para responder críticas negativas. Tenho mais o que fazer.

Mas o diabo é que eu acabei me sentindo provocado. Achei que tinha a obrigação de responder. Mesmo porque, me pareceu que há a possibilidade de o que eu escrevi não ter sido muito claro ou não ter sido muito bem interpretado. Porque eu não escrevo tão maravilhosamente bem assim, e também porque devo conceder a quem me critica o beneficio da dúvida. Será que ele entendeu mesmo?

Além disso, como dizia meu “ídalo”, o eminente fiélósofo e duplipensador Vicente Matheus: “quem tá na chuva é pra se queimar”.

O comentário de Silver Surfer não é muito sistemático, logo minha resposta deve seguir também o mesmo formato. Os números entre parênteses no corpo do e-mail estão “linkados” com a resposta dada por mim para cada afirmação.

“Não tive saco de ler o texto do Darth Vader, que é muito longo...
Mas o texto do Matrix, se você prestar bem atenção, vai perceber que esse
cara é mais um daqueles que não entendem nada de economia (e não possui bom
senso científico, principalmente em acreditar que as máquinas precisam
mesmo tirar energia dos humanos).”

“Não há o que libertar, já que as máquinas propuseram essa situação de Matrix justamente para salvar os humanos! (em parte isso é verdade, mas há outros motivos menos nobres que fizeram as máquinas criarem a Matrix, como por exemplo querer "sentir" a realidade e os sentimentos dos humanos).(1) Logo esse cara do duplipensar acerta no escuro ao comparar a Matrix com o Capitalismo (ou simplismente com a Sociedade Marketeira Moderna), entretanto sua forma de analisar, através da exploração, é infantil...(2) Assim como no mundo real, foram os humanos que se entregaram ao sistema para garantir a sobrevivência... o mundo estava em guerra, era cruel, frio, selvagem (olha Hobbes novamente), e os humanos eram importantes elementos causadores disso, com seus próprios conflitos.(3) As máquinas ofereceram um novo sistema (revolução industrial ou talvez científica) e os humanos aceitaram imediatamente pois era a melhor opção.(4) Assim como no capitalismo livre, o capitalista oferece emprego e produção, e os operários aceitam não porque são obrigados, mas porque é bom...(5) Por isso o Marx é um economista medíocre!(6) (tudo isso antes de surgir a presença criminosa do marketing,
devo ressaltar).(7)”

“Da mesma forma esse cara do duplipensar erra ao usar um tom pejorativo para falar da extratificação causada por poucas pessoas terem acesso a linguagem dentro da Matrix. Essa linguagem é o análogo ao conhecimento e ao dinheiro no mundo real...(8) Mas onde está escrito que educação e emprego são direitos divinos? A principio a função da sociedade é proteger e alimentar o indivíduo, e não educar nem dar caviar! Isso é um erro de discurso do pessoal de sociais, que tem inveja(9a) das pessoas que se esforçam até o limite, e obtém mais que a média... Quem quer conhecimento que busque... quem quer dinheiro que trabalhe!(9) Dentro da Matrix, se você quer ser liberto, lute por isso... as próprias máquinas oferecem a estrutura para a sua libertação, já que Zion foi criada por elas. Quer mais? Lute mais e transcenda ao sistema... não seja dependente dele...(10) Não adianta nada ficar reclamando do capitalismo comendo bigmac!(10a)”

“Concordo que os agentes se caracterizem como pragmáticos, utilitaristas, positivistas... mas não vejo nada que os associe com ciência (ou cientificidade).(11) Eles são mais manipulados que os próprios rebeldes, já que fazem parte do mesmo objetivo que criou Zion, porém em uma posição inversa (para que haja um equilíbrio dinâmico; e esse é um conceito fundamental que a maioria do pessoal das humanas não entende). Os agentes não entendem seu papel, assim como os rebeldes, mas de forma pior, pois são programas (= escravos) e não possuem a menor chance de se libertar. É isso que o Smith já falava no 1, e é dessa "prisão" que ele se liberta ao morrer e voltar como um vírus.(12)”

“Mais uma vez eu afirmo: As máquinas não precisam da energia dos humanos... com aquela tecnologia daria para tirar energia de pedra... Essa idéia de bioenergia é para quem não entende o mínimo de consevação de energia. E como adolescentes (marxistas, as meros adolescentes) os rebeldes lutam contra as aparências e a superficialidade, correndo em direção a um mundo destruído, frio, selvagem, violento (olha Hobbes novamente), para como todo bom adolescente descobrir mais tarde que por mais que o sistema pareça injusto, submeter-se a ele é a única forma de sobrevivência.(13) Se você não gosta da influência do marketing, pare de assistir TV! Se você não gosta do consumismo, faça sua própria comida e roupa! Se você não gosta da exploração capitalista, volte para o campo! Se você não gosta da Matrix, saia da Matrix... basta você se esforçar que as máquina vão deixar...(14) ou você pensa que foram os homens que construíram Zion? Que nada... o próprio arquiteto deixa bem claro que foi ele! Não se engane... não existem rebeldes ou opressores, somos todos vítimas da fome, do frio, das intempéries, do desejo, de nosso próprio egoísmo...(15) talvez seja um abuso dizer que somos meros macacos que aprenderam a pensar... mas em Matrix essa é a situação das máquinas (eletrodomésticos que aprenderam a pensar), e elas são tão vítimas de sua fome, frio, dor e desejo quanto nós...(16)”

“...viva Hobbes...”

“o homem NÃO é naturalmente bom...(17) (nenhum ser vivo é naturalmente bom)... basta ler as definições de bondade e maldade para perceber que isso é
verdade.”

Rafael

1 - A tese de que as máquinas precisam da bioenergia do homem para sobreviver é do filme, não minha. É o cenário que os autores montaram para que se desenrolasse a ação. Eu compro a idéia porque considero a metáfora útil, não porque considero o uso maciço da bioenergia humana como fonte de energia em larga escala uma hipótese tecnicamente viável para o nosso mundo real.

2 – Considero a sujeição dos homens às máquinas na série Matrix o paroxismo da sua sujeição no mundo real, ou seja, uma situação levada ao seu extremo. O método de extração da energia do trabalhador é o mais brutal e o mais direto possível, assim como a sua falsa consciência do processo é a mais opaca e intransponível que se poderia conceber. Ao invés de ideologia, uma simulação neurointerativa injetada diretamente no cérebro.

O problema da sujeição às máquinas não é apenas o fato de que a bioenergia humana está sendo sugada. O mais grave é que falta aos humanos assim tratados a consciência de sua realidade. Assim como o maior problema do capitalismo não é que os homens tenham que trabalhar, mas que o resultado de seu trabalho não lhes pertença e isso lhes pareça natural e aceitável.

O problema não é apenas a extração de mais-valia, o excedente econômico, que não é exclusiva do capitalismo, mas comum a todas as sociedades de classe da história. O problema é o mascaramento ideológico que se faz dessa extração, a doutrinação que diz que esse sistema é justo, funciona e pode dar a cada um as mesmas chances.

Exatamente por isso propus um texto falando sobre o mecanismo da dominação através da manipulação das ferramentas do conhecimento e da linguagem. É nisso primordialmente que as máquinas lesam os humanos, não apenas em inserí-los fisicamente no sistema.

3 – Parece ser muito fácil e conveniente usar apenas a primeira metade do raciocínio de Hobbes. A parte onde ele diz que o homem é o lobo do homem. Mas na segunda metade de seu raciocínio, ele postula a necessidade de que se constitua um autômato, o Leviatã (título de sua principal obra), que será a encarnação do Estado, o acordo por meio do qual os homens abandonam o estado de natureza e inauguram o estado civil. O estado civil é algo que ainda está para ser construído. Uma utopia, se se quiser. Como o Contrato Social de Rousseau. Ou a sociedade sem classes de Marx.

O estado de natureza é o próprio capitalismo. A guerra de todos contra todos, mascarada por uma aparência hipócrita de civilidade, de legalidade, de respeitabilidade, onde povos inteiros são civilizadamente espoliados pelos agiotas de Wall Street. É esse estado de coisas francamente selvagem que ainda aguarda ser verdadeiramente civilizado.

4 – O trabalhador não aceita o capitalismo, ele é submetido à força, assim como no filme as máquinas venceram a guerra e entubaram os humanos. Aqui é preciso recorrer à história e rever como se formou a classe operária. O operário não nasce historicamente pronto. Ele é um produto social do processo de expropriação do campesinato. Um processo movido pela força. O trabalhador é disciplinado à força, sob ameaça da polícia, pelas instituições burguesas da fábrica, da escola, do exército, do hospício.

A Inglaterra foi o país protótipo da Revolução Industrial. As fábricas inglesas encontraram mão de obra barata porque uma grande massa de camponeses foi expulsa de suas terras pelo processo dos cercamentos. A Lei dos Pobres inglesa da década de 1830 submeteu essa massa de despossuídos ao regime de trabalhos forçados, confinamento prisional, perseguição policial e disciplina fabril.

O modo como o trabalhador aceita o sistema posteriormente é um outra questão. A revolução industrial já aconteceu faz séculos e todas as gerações posteriores foram educadas por essa ideologia do operário padrão e aceitam de bom grado o trabalho. Hoje, aceitam mesmo os imperativos da concorrência e a necessidade de se reciclarem, se aperfeiçoarem e adotarem os jargões da indústria de auto-ajuda. Para os trabalhadores educados pela rede Globo, e pela revista Veja, sim o capitalismo é bom, o sistema funciona e se há algum defeito deve ser em mim, que não consigo chegar lá.

Não sei de onde pode ter surgido o conto de fadas de que os homens estavam em estado de guerra e miséria e os burgueses benevolentes lhes ofereceram o trabalho na indústria para nos livrar de nossos males. Não imaginei que esse tipo de pregação pastoral ainda pudesse seduzir a credulidade de alguém num mundo em que multinacionais como a Nike exploram trabalho infantil em países miseráveis de mão de obra abundante.

Nunca é demais repetir: a classe operária foi criada historicamente por meio da força. Foi preciso massacrar os camponeses, roubar suas terras, expulsá-los de suas comunidades, jogá-los nas cidades, nos cortiços e favelas, caçar os “vagabundos” e os “preguiçosos”, obrigá-los a trabalhar ou encarar a fora. Foi assim que se formou o proletariado nos países centrais. Nos países periféricos, como os do continente americano, os índios foram massacrados e os negros foram escravizados. Os operários de hoje são seus descendentes.

5 – Os trabalhadores aceitaram o capitalismo porque isso é bom? Bom para quem? Só se for para o burguês que os explora. Há trabalhadores que, até certo ponto, se sentem tão bem no capitalismo quanto os burgueses, porque compraram a ideologia burguesa. Acreditam que podem enriquecer, podem subir na vida, podem mudar de classe. O sistema só se sustenta porque conta com essa credulidade ideologicamente induzida, que faz as pessoas verem o interesse do sistema como seu próprio interesse.

A crença burguesa na justeza da competição vem do fato natural de que toda competição tem, evidentemente, vencedores. O capitalismo é uma competição e nele há vencedores. Não é isso que está em discussão. Há de fato vencedores. E todos eles tem a mais absoluta convicção de que sua vitória é resultado de seu esforço pessoal. Precisam ter essa convicção para poder dormir tranqüilos à noite. O que se discute é o pressuposto falso de qualquer um pode ser um vencedor, ou que as chances são iguais para todos.

Para acreditar nesse pressuposto, seria preciso se tornar cego para a história. A história mostra que o capitalismo se constrói por meio de uma luta entre países, onde alguns impõem aos outros um determinado papel na cadeia das relações internacionais. Da mesma forma, dentro de cada país, as classes sociais se impõem umas às outras por meio da força. Aqueles indivíduos que pertencem a grupos étnicos, culturais e religiosos socialmente dominantes naturalmente adquirem vantagem na competição. Depois que toda objeção é subjugada, o homem se acostuma a viver na dependência de quem lhes dá ordens.

6 – Marx não era economista, era filósofo e fazia ciência da história. A economia é um dos subsistemas da ação humana no mundo e para ser entendida deve ser relacionada com as dimensões da política, da cultura e da história. Não faz sentido estudar economia separadamente, ao passo que o processo econômico só se torna inteligível quando relacionado dialeticamente com as demais esferas da atividade humana. Era o que Marx fazia, por isso compreendia perfeitamente a economia capitalista. Magro consolo dizer sem base nenhuma que Marx era “um economista medíocre!”, quando não é disso que se trata.

7 – Silver Surfer parece dizer que até certo ponto está tudo OK com o capitalismo “livre”. O problema só parece ter início quando começa a funcionar o marketing. Eu não sei o que pode vir a ser o capitalismo “livre”. Capitalismo é capitalismo. Há versões mais ou menos selvagens, mas sua essência não muda. É o sistema da concorrência. Concorrência entre indivíduos, entre empresas e entre países. Na concorrência, o marketing é uma das armas fundamentais. O marketing não é um acidente do sistema, é um desenvolvimento de sua própria essência. A propaganda é a alma do negócio.

Se eu não fizer marketing, alguém fará. Se há capitalistas que não fazem marketing, são logo engolidos pelos que fazem. A publicidade é uma exigência essencial ao sistema. A concorrência exige. O mundo é dos espertos. Talvez no capitalismo “livre” haja um “jogo limpo”. Mas no capitalismo do mundo real, a propaganda impera, obriga, manda, desmanda, distorce, retorce.

Há indivíduos, empresas e talvez governos honestos, mas os desonestos não abririam mão da chance de trapacear. Onde está dito que o jogo é limpo? Que as regras são justas? O logro e a fraude não são a exceção do capitalismo, são a regra. Países enganam países nas OMCs da vida, empresas enganam governos com seus balanços fraudulentos, concorrentes lesam uns aos outros encontrando formas de não pagar imposto, corrompendo autoridades, enganando o consumidor. Cada um engana o quanto pode e tenta tirar vantagem ao máximo.

8 – A estratificação não é um resultado natural do desenvolvimento das características de cada indivíduo dentro do processo histórico do gênero humano. É o resultado de sociedades de classe construídas sobre o pressuposto da opressão e da exclusão. Os poderosos governam por meio do uso da força e do monopólio do conhecimento. A estratificação, como qualquer desigualdade, tem que ser condenada e combatida em qualquer campo em que se manifeste.

9 – Não se trata de negar que o ser humano tem que trabalhar. O homem é humano graças ao trabalho. O trabalho diferencia o homem do animal. O trabalho torna o homem humano. Mas na sociedade de classe o trabalho se encontra alienado, pois o usufruto de seus produtos não pertence ao trabalhador. No capitalismo essa alienação encontra seu patamar máximo, pois tanto o produto do trabalho, como o processo de trabalho e o próprio trabalhador somente se relacionam por meio da forma mercadoria.

A mercadoria esconde no seu interior o segredo da transformação do valor de uso em valor de troca. As coisas e seres humanos tem valor não pelo que podem realizar em si, mas pelo valor que podem realizar para o capital. São as mercadorias que se relacionam e articulam a sociabilidade, não o homem e suas necessidades. É isso que está errado no capitalismo.

9a – Sim, eu me formei em Ciências Sociais, em 1998, no heróico curso da gloriosa Fundação Santo André.

Não, eu não tenho inveja de quem conseguiu “vencer” na vida, de quem conseguiu dinheiro, fama, ou poder.

Eu não passo meu tempo apenas reclamando do sistema nem faço masturbação intelectual.

Eu sou um trabalhador e me esforço até o limite para sobreviver e conseguir as coisas que me realizam. Mas o meu limite termina onde começa a ser necessário competir no trabalho como numa arena de gladiadores, puxar o tapete dos outros, fazer intrigas, fofocas, puxar saco do chefe, sabotar colegas e outras práticas saudáveis e corriqueiras da vida corporativa.

10 – Esse é o perfeito exemplo do pensamento alienado que assume a forma mercadoria como forma de sociabilidade por excelência. Esse parágrafo diz que o sistema funciona e que a competição é justa. Que cada um deve se vender e se esforçar ao máximo para agradar seus compradores, pois somente assim pode se tornar capaz de consumir mais.

A medida de valor humano nesse pensamento é dado pelo quanto a pessoa pode consumir. Vale mais a pessoa que tem mais dinheiro e consome mais. Quer consumir mais? Trabalhe mais e ganhe mais dinheiro. A função do indivíduo na sociedade é fazer circular o dinheiro. Quer ganhar mais dinheiro? Estude mais e se aperfeiçoe. O trabalhador incorpora assim a exigência interna ao processo do capital de aumentar a produtividade do processo de trabalho, assumindo-a como uma necessidade pessoal sua. Daí vem a necessidade de “se atualizar” e ler livros de auto-ajuda. A esse respeito, remeto a meu artigo no Duplipensar intitulado “Ajoelhe-se perante o Mickey”.

Zion não foi criada pelo Arquiteto, a sua existência foi tolerada e administrada. As máquinas sabem da necessidade da concordância subconsciente dos humanos para que os sistema funcione. Para os que não concordam, existe Zion, que é a válvula de escape. O sistema concede a quem se rebela o direito de ser diferente e aberrante, porque a aparência de uma alternativa é também essencial ao sistema. Faz parte do seu marketing.

10a – Não invejo as pessoas que correm atrás das quimeras prometidas pelos ideólogos do capitalismo, não compartilho desse ideal de felicidade e não me sujeito a fazer o que fazem para tentar ser felizes. Por não me sujeitar a isso, continuarei sendo um mero trabalhador por muito tempo. Provavelmente, nunca serei um dos “vencedores”, o que não me faz a menor falta.

O sistema ainda tem minha energia, mas não tem minha mente. Não serei jamais um escravo das máquinas, porque não acredito nas suas mentiras e não estou disposto a vender convicções por conforto material.

Não, eu não como big mac. Sou viciado em pipoca.

11 – Quando falo utilitaristas, pragmáticos e positivistas, não falo de qualidades pessoais dos agentes, mas de correntes filosóficas particulares que eles expressam por sua prática a serviço do sistema. Falo do pragmatismo (William James), do utilitarismo (Bentham), do positivismo (Comte). Essas filosofias são a sustentação discursiva da inevitabilidade do sistema. Todas negam, implícita ou explicitamente, a necessidade e a possibilidade da transformação revolucionária da sociedade.

O cientificismo não é uma filosofia particular, apenas um subproduto cultural de um mundo formatado pelos engenheiros do sistema. É a transformação da ciência em ideologia. A ciência se torna uma ferramenta de doutrinação ideológica quando é usada como exemplo de um mundo inteiramente objetificado, desencantado e instrumentalizado. Um mundo manipulável por meio de equações e estatísticas. Um mundo onde homens, máquinas e animas são apenas recursos e valores numéricos a serviço do capital.

Não há nada de errado com a ciência, mas sim com a propaganda ideológica que se faz dela. Como se o mundo estivesse sendo governado pela razão, os mercados fossem funcionais, a distribuição das riquezas fosse justa, os processos sociais administrados por uma burocracia racional, a tecnologia houvesse criado um mundo de objetos úteis (e não um mundo de quinquilharias precocemente obsoletas), a medicina e as drogas criado um mundo de prazer e felicidade (Prozac, Viagra, Xenical).

O cientificismo é o pensamento que concebe o homem como mero insumo biológico do processo de produção, um objeto plástico passível de intervenções genéticas, farmacológicas e psicológicas para se tornar dócil, obediente, incansável e produtivo. Um mero ser natural acidentalmente tornado mais inteligente, porém fatalmente sujeito a não fazer uso dessa inteligência para algo mais do que sobreviver precariamente.

12 – Nesse ponto concordo totalmente com Silver Surfer. O burguês é tão alienado quanto o trabalhador. Ele nem sequer sabe que é alienado. Atuando como personificação do capital, concebe a riqueza capitalista como sua posse pessoal, quando na verdade ele próprio é o instrumento do capital a serviço de sua própria valorização. O burguês que vem a conhecer a irracionalidade do sistema passa a adotar outro ponto de vista de classe, que é a destruição de sua posição anterior.

Esse não é porém o caso de Smith, pois ele volta a se colocar a serviço do propósito do sistema, em sua ira para destruir Neo. Ele representa o princípio da ordem levado às suas últimas conseqüências, que resulta dialeticamente na destruição de si mesmo. Mas isso é algo que só se pode saber assistindo “Revolutions”, que ainda não havia sido abordado no texto que deu origem a esta discussão.

Não há equilíbrio no sistema capitalista, há uma crise estrutural permanente em estado constante de administração precária pelos mecanismos de governo. A oposição entre capital e trabalho é uma contradição interna permanente que origina a instabilidade estrutural do sistema e o impede de entrar em equilíbrio.

Os conceitos de equilíbrio da física e da biologia são aplicáveis aos objetos de onde foram abstraídos. Querer aplicá-los os objetos do mundo social é precisamente um sintoma de cientificismo. Um uso canhestro das ciências naturais para negar ao homem o seu caráter de objeto dotado de especificidades que o tornam inteligível pelos conceitos particulares próprios das ciências sociais. Ou seja, uma tentativa de fazer tábua rasa do objeto que se tem em mãos para enquadrá-lo em determinado modelo de conhecimento. Se a realidade social não se enquadra no modelo das ciências naturais, o cientificista, impaciente, ao invés de mudar de modelo, falseia a realidade para que se enquadre à força.

13 – O meu pressuposto para o texto em questão é de que os rebeldes de Zion não lutam para trazer os humanos encapsulados para o deserto do real. Lutam para transformar o próprio sistema, a própria Matrix. Se esse pressuposto se confirma ou não, é algo que discuto em minha análise de “Revolutions”, que segue em anexo. De qualquer maneira, a discussão em questão se estrutura em torno desse pressuposto.

O que está em questão é transformar o sistema capitalista inteiro, não sair dele. Silver Surfer confunde propositadamente marxismo com rebeldia adolescente. Essa confusão se tornou comum na década de 1960 quando as idéias marxistas se tornaram tão populares quanto o rock e as drogas. Do ponto de vista do sistema, tudo isso são tentativas escapistas dos jovens de fugir ao seu domínio inexorável. Tentativas bondosamente toleráveis.

Como pastores compreensivos, os zeladores da ordem passam a mão na cabeça dos jovens transviados que voltam ao seu aprisco. A rebeldia juvenil é apenas uma medida profilática saudável que serve para desiludir os jovens de suas possibilidades de liberdade e fazê-lo voltar mais cordatos para a vida produtiva. Essa interpretação é válida porque concebe um cenário em que não se admite como alternativa a transformação do sistema em algo inteiramente diferente, apenas a evasão dele.

14 – Aqui oferece-se claramente a alternativa. Aceite o sistema ou caia fora. Venda-se ao capitalismo ou vire hippie. Esse é precisamente o modo de colocar a questão com o qual não posso concordar. Pois a idéia do meu texto é de que os rebeldes/marxistas devem aprender a dominar as ferramentas da cultura para transformar o sistema. Retirar-se da Matrix seria uma solução parcial, apenas aparente.

O problema não são as máquinas, ou a tecnologia, ou o quanto os homens ficaram dependentes delas. O problema é o sistema de relações sociais nas quais os homens são os objetos e o capital é o sujeito. A solução não é apenas alcançar a liberdade física e ficar de fora das máquinas, virar vegetariano e tecer a própria roupa. A solução seria encontrar um sistema em que as máquinas trabalhem para o homem e não o homem para as máquinas.

Além disso, a alternativa aqui colocada está situada no nível de uma escolha individual. Esse modo de ver é típico do pensamento burguês, que concebe o indivíduo isolado como unidade absoluta de sentido do mundo social. O indivíduo como mônada fechada torna-se o único responsável pelo seu destino e sua felicidade. Esse pensamento é inteiramente cego para as dinâmicas sociais, culturais, e até mesmo as psico-biológicas que envolvem os homens e dão sentido e conteúdo para suas escolhas pessoais.

15 – Não há pois possibilidade de liberdade verdadeira. O homem não é capaz de se libertar. Tudo que há no mundo foi construído pelo capital para aplacar todas as nossas necessidades: euforia, histeria, depressão, indignação, conformismo. O estado de espírito é uma questão de gosto. Há suplementos emocionais de todos os tipos na prateleira. Tem para todos os gostos. Não há fuga possível da nossa condição miserável.

16 – Como dissemos, a alienação das máquinas e dos objetos é tão completa quanto a dos homens. As mercadorias não tem nenhum valor em si. São meros suportes para o valor de troca. Os objetos que consumimos são feitos para durar pouco e serem rapidamente substituídos. O sistema de produção é uma máquina vertiginosa de fabricação de objetos inúteis. A produção é, na verdade, destruição de recursos naturais e humanos.

A criatura é feita à imagem e semelhança de seu criador. As máquinas são produtos do homem e são espelho de sua figura miserável. Comportam-se tal e qual seus criadores, mas com uma eficácia infinitamente superior. Pois as máquinas podem ter consciência, mas não tem livre-arbítrio. Fazem o que está inscrito no seu propósito, sem qualquer vacilação, ou hesitação moral. São a materialização caricatural da degradação humana.

17 – O homem não é naturalmente bom nem naturalmente mau. O homem não é naturalmente coisa nenhuma. O homem é um ser que se aparta da natureza. O homem é o ser que constrói a si mesmo. Não há natureza humana. Há o substrato biológico do ser humano, que não é diferente de um macaco que pensa. Mas há o Homem como gênero humano, que é a soma de todas as conquistas e possibilidades humanas em todas as épocas.

Não é em nome de um “bem” abstrato que se pode escolher um lado na disputa, mas em nome da Humanidade entendida como unidade concreta de realizações históricas e possibilidades de realização que dão um sentido à vida e à noção de felicidade. É nessa unidade concreta que se pode encontrar uma resolução existencial consistente e fundamentar escolhas. É por isso também que, como diz a Oráculo, ninguém pode ver além de escolhas que não compreende.

Depois que o sistema alcança estabilidade, a objetividade fala por si mesma. O que é é, o que não é não é. É muito fácil defender o existente. É muito fácil ser o Pangloss que diz que tudo está como deveria estar. Que tudo pode ser diferente é o que se trata de provar. É aí que está a questão crucial da escolha. Cada um tem a escolha existencial de acreditar no sistema ou não. Se acreditar, tem que fechar os olhos para todas as suas mentiras, insistir na auto-ilusão e não ver todas as atrocidades amiúde cometidas em nome do capital.

Pelo que pude concluir, Silver Surfer acredita no sistema. De um modo tal que poderia ser melhor denominado Silver “Cypher”. Como diz Cypher no primeiro Matrix, “a ignorância é uma benção”. É confortável fechar os olhos, engolir a pílula azul do sistema e não ter mais que se preocupar com o abismo do mundo sem sentido sob seus pés. É tudo sem sentido mesmo, tudo frio e cruel, e não passamos mesmo de vítimas. Para que se preocupar?

Quem não acreditar no sistema, por outro lado, tem que desmascará-lo. Porque depois de conhecer a verdade, é difícil voltar a viver na mentira. Para mim foi impossível.

Daniel M. Delfino

13/11/2003

P.S. Filme comentado:

Nome original: The matrix reloaded
Produção: Estados Unidos
Ano: 2003
Idiomas: Inglês, Francês
Diretor: Andy Wachowski, Larry Wachowski
Roteiro: Andy Wachowski, Larry Wachowski
Elenco: Keanu Reeves, Laurence Fishburn, Carrie-Ann Moss, Hugo Weaving, Helmut Bakaitis, Steve Bastoni, Monica Belluci, Daniel Bernhardth
Gênero: ação, thriller, ficção científica
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

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