30.4.07

O pulo do gato que saiu pela culatra

O PULO DO GATO QUE SAIU PELA CULATRA



O governo Lula comprou gato por lebre. Os articuladores políticos do PT acreditaram em tudo que foi dito sobre o partido quando estava na oposição. Dizia-se que o muro de Berlim havia caído, que o socialismo havia morrido, que não há alternativa, que o capital e o trabalho tem que viver felizes para sempre, etc. O PT acreditou. Dizia-se que as críticas do PT na oposição não passavam de gritaria, de bravatas, de histeria de dinossauros que perderam o bonde da história. Como se não houvesse futuro para a esquerda, não houvesse alternativa ao regime do capital, não houvesse outro caminho a não ser o do consenso de Washington, etc.

Estava decretada a morte do pensamento, a morte da teoria, a morte da filosofia, a condenação ao silêncio eterno de qualquer possibilidade de reflexão criativa e desafiadora. A economia se reduziu à econometria. Economista passou a ser sinônimo de observador neurótico dos números do mercado. Política econômica passou a ser sinônimo de oferta de condições agradáveis ao capital financeiro internacional. Por sinal, economia passou a ser considerada uma técnica a ser depurada de quaisquer injunções políticas. Uma técnica pura e científica, cujo domínio alguns possuem, outros não, e cuja posse determina (ou determinava) quem está habilitado ou não a concorrer à Presidência. A economia deixou de estar sob o controle dos povos e de seus governos soberanos. A máscara caiu, na verdade, pois viu-se que os Estados periféricos não tinham soberania sobre nada.
O fato é que todos conhecemos essa ladainha de cor e salteado. A ladainha do fim da história, da globalização, da nova economia, etc. Aldeia global, indústria cultural global, telecomunicações, internet, fluxos de informação circulando em quantidades massivas, interconexão, interdependência, fusões, marcas, logotipos, produtos, gírias, modas, tribos, o turbilhão feérico de uma humanidade que na esquina do terceiro milênio enxerga a si mesma no espelho do mundo.

Como íamos dizendo, o PT acreditou nessa ladainha, embora não aparentasse. Fingia que não, mas acreditava. Gritava contra, mas acreditava, deslumbrado, em seu íntimo, com a sedução desse espetáculo, invejando, ansioso, louco para entrar no jogo. Nas duas campanhas contra FHC, o PT foi contra, mas não sabia bem o que dizia. Não tinha doutrina, não tinha pensamento, não tinha formulações alternativas, mas fingia que tinha. E tentava ser “do contra”, sem conseguir se encaixar no “script” já previamente traçado da política eleitoral-midiática burguesa. Quando resolveu se encaixar no “script”, levou fácil a sucessão de FHC. Lula vestiu terno e gravata e ganhou. E brindou com Moët Chandom.

Mas e agora José? Cadê o programa de governo? Cadê o projeto para o país? Cadê o pensamento, a estratégia, a formulação, a reflexão, a percepção do mundo, da conjuntura histórica, das alternativas? Cadê? O PSDB dizia ter um projeto de poder para vinte anos (ai de nós!). E o PT? Será que tem projeto pelo menos para quatro? Será que o PT pensa que é pecado ter um projeto de poder? Ou será que o seu projeto oculto consiste na simples insistência em se manter no poder? Passados seis meses, continuamos esperando uma resposta conclusiva a isso tudo. Por enquanto, mais retórica de campanha. Por isso insistimos em que o PT acredita de verdade que não há mais alternativa.

Quando dizemos “PT” estamos na verdade nos referindo à direção do partido. Não nos referimos aqui à massa dos seus militantes que constituem o grosso dos movimentos sociais no Brasil. Esses militantes que lutaram e dedicaram suas vidas às idéias, idéias que postas em prática ganham força, força que move realidades, transforma e faz avançar a história. Faz Lula ganhar a eleição. Os militantes, as bases do PT não apitam nada no partido. Não há a menor sombra de democracia interna, de influência das bases sobre a direção, de conexão com a luta diária, terra a terra, dos movimentos sociais. Não há o menor acesso dessas bases às teses centrais do programa. Quem manda é a nomenklatura, o politburo de José Dirceu, Genoíno, João Paulo e Cia.

Como também não apitam nada Marilena Chauí, Chico de Oliveira, Ricardo Antunes, Paulo Arantes e os mais importantes intelectuais brasileiros. Estes serviram apenas para endossar e dar requinte à campanha. Na hora H, suas idéias e o trabalho de suas vidas é jogado no lixo. O intelectual do PT no governo é Duda Mendonça, o marketeiro da campanha eleitoral. Pois como dissemos, o PT no governo, até agora, só fez repetir a retórica de campanha.

O desencontro entre a expectativa dos militantes e a estratégia dos governantes é explicado pelo desconhecimento mútuo do que pensam os dois pólos sobre o papel que devem executar. Os militantes parecem ignorar que eleição não é revolução e que Lula governaria sob o cerco cerrado da direita, que não quer largar o osso. Os governantes parecem ignorar que sem corresponder em certa medida à expectativa de seus militantes, ou seja, colocar em prática pelo menos um pouco do que se espera de um governo de esquerda, perderá a credibilidade que os fez ganhar a eleição.

O estelionato eleitoral não agride apenas as expectativas da esquerda, mas também à da massa despolitizada da opinião pública, com cujos preconceitos a direita joga. Não é apenas para os militantes de esquerda que o PT tem que governar tal e qual um autêntico partido de esquerda. Mas também para o indistinto público “consumidor” que comprou o programa do partido “vendido” como programa de esquerda (ainda que maquiado). O público despolitizado que embarcou na aventura do “Lulinha paz e amor” também espera um governo de esquerda, para saber como é. É o que lhe foi vendido na campanha, a oportunidade de experimentar uma alternativa. O público eleitor brasileiro, ignorante e desinformado em sua maioria, não sabe muito bem o que vem a ser um governo de esquerda, mas sabe que tem que ser algo diferente daquilo que vinha experimentando.

Esse público indiferenciado pode agora acusar o PT de propaganda enganosa. O PT não está entregando o que vendeu. Uma das únicas e autênticas revoluções vividas no Brasil na última década foi a disseminação do código de defesa do consumidor na cultura popular. O consumidor/eleitor, logrado, agora brada, para gáudio da direita: “chamem o Procon! O PT me enganou!” Em tempos de política eleitoral regida pelas técnicas de marketing, é preciso se comportar de acordo com as expectativas do mercado. Brincar de candidato/produto e de programa/mercadoria é uma estratégia que esconde suas armadilhas. As leis do mercado, que o PT tanto quer agradar, também exigem coerência. O público telespectador/eleitor pode chegar à seguinte conclusão: “Se é para ser gerente dos interesses da burguesia, que se chamem os burgueses de verdade. Melhor seria ter votado em José MotoSerra.”

O PT corre o risco de ter seu governo encalacrado por essa antítese. Essa é a aposta do PSDB para voltar ao poder: acusar o PT de não ser o que dizia que era e querer ser o que o PSDB na verdade é. Ou seja, o verdadeiro e autorizado gestor dos interesses do mercado. Triste fim para um partido de trabalhadores, disputar com o PSDB a primazia da condição de capachos do mercado. Para certos setores do PT, essa tragicomédia parece ser uma perspectiva atraente. O corolário glorioso de suas biografias de ex-guerrilheiros. A renúncia ao passado e à história da luta de resistência à ditadura.

O poder cega os homens. Tira-lhes a humildade e o senso de medida, substituídos pela ambição desmedida e pela arrogância dos senhores da verdade. Tudo se torna aceitável e moralmente justificável. A instrumentalização da política, a luta de bastidores, a alternância das claques, as redes de interesses, o “jogo sujo” das altas esferas. Se apostar nesse jogo, o PSDB ganha fácil. Basta explorar a proverbial volubilidade da chamada opinião pública. Essa entidade amorfa na qual os especialistas da mídia diluem com seu liquidificador de técnicas de comunicação as tendências das diferentes classes e frações de classe da sociedade.

Num país complexo e fragmentado como o Brasil, o denominador comum da brasilidade (que se oferece facilmente como mote de qualquer campanha da direita) é a descrença dos brasileiros no país e a eterna espera sebastianista pelo salvador da pátria. Quando o povo perceber que Lula não é esse salvador que lhe venderam, as portas para o retorno da direita estarão abertas. Uma das faces do erro estratégico do PT em 2002 foi essa tentativa, embutida na campanha, de vender Lula como salvador da pátria.

Perdeu-se a extraordinária oportunidade de aplicar uma pedagogia política tão necessária a esse povo fragmentado e passivo. Não é Lula e o PT que vão mudar o Brasil. Lula e o PT deveriam mobilizar o Brasil, tirá-lo de sua apatia secular, fazê-lo aspirar a um destino nacional. Uma das faces da cegueira teórica do PT está em não enxergar que o nacionalismo, no contexto do novo imperialismo travestido de globalização, volta a ser uma estratégia legítima para a prática de esquerda. A adoção do neoliberalismo internacionalista do PSDB pelo PT espelha a dificuldade atávica do Brasil de se valorizar e se respeitar como país. Ser globalizado/submisso é sinônimo de ser moderno. Modernidade “fake” que é a imagem que o PT quis construir para si e se esforça para preservar no poder.

Indiferentes a essa contradição conceitual e às armadilhas nela implicadas para a prática política, os governantes do PT seguem fazendo seu jogo, a aposta de suas vidas. Eles apostam na estratégia que adotaram e estão dispostos a continuar com ela até o fim e custe o que custar. Com a certeza messiânica dos fanáticos e a intolerância autoritária dos dogmáticos. Os cardeais do PT parecem estar agindo guiados por um raciocínio simplório. Eles pensam, com um sorriso nervoso nos lábios: “nós não temos programa, mas e daí? Ninguém vai perceber. Vamos ganhar a eleição e governar no piloto automático. Vamos fazer o mesmo que o PSDB vinha fazendo. Eles vão pensar que somos modernos, fizemos autocrítica, abandonamos as utopias, nos tornamos responsáveis e confiáveis. Ninguém vai desconfiar de nós, porque somos honestos e moralmente inatacáveis. Vamos governar sem precisar colocar em prática um programa nosso. Vamos dar o grande salto para frente.”

Esse é o seu segredo, sussurrado com medo para suas próprias consciências. Prossegue o raciocínio. “Vamos dar o grande salto da política de esquerda com jeitinho brasileiro. Vamos governar sem teoria própria. Como somos muito espertos, vamos usar o programa deles e dizer que é nosso. Sejamos honestos porém cínicos. Porque eles mesmos já disseram que não há alternativa. Política não possui mais ideologia. Possui marca, rótulo, logotipo. Candidato/produto mais ou menos atraente, mais ou menos maquiado e vendável. O nosso é melhor que o deles. Por isso levamos a eleição. Mas na prática, só nos resta fazer a mesma coisa que eles. Vamos usar a teoria deles e ver no que vai dar.”

Obviamente, deu errado. A teoria “deles”, do PSDB, os pioneiros do neoentreguismo no Brasil, é a teoria da dependência de FHC. O PT não aprendeu nada com FHC, nem como governante, nem como acadêmico. O que dizia a teoria da dependência de FHC? Segundo tal, o Brasil é um país capitalista dependente. Isso significa que aqui há uma certa modalidade de capitalismo incapaz de completar de forma autônoma seus ciclos de acumulação. Não há uma burguesia nacional empreendedora, portanto o nosso capitalismo tem que ser comandado de fora.

Essa teoria comporta uma leitura de esquerda e outra de direita. Na leitura de direita, estabelece-se que, uma vez que o Brasil é incapaz de se desenvolver de forma independente, resta-nos aceitar nossa dependência e fazer parte do sistema capitalista global na condição de país associado, dependente e subordinado. Na leitura de esquerda, assume-se que, se o país é incapaz de completar seu desenvolvimento pela via capitalista, que o faça por outro meio, ou seja, pela via socialista.

FHC governou durante seus oito anos de uma forma coerente com a leitura de direita de sua teoria. Tratou de nos inserir na globalização de forma subordinada e dependente. Destruiu os instrumentos de autonomia do Estado nacional. Sepultou com estúpido orgulho a Era Vargas, o precário legado do claudicante nacionalismo que ousou uma vez germinar no país. Instalou-nos no papel de mendigos do capital internacional, que é, a seu ver, nossa condição atávica, nossa essência enquanto brasileiros, nosso destino inescapável. Essa é a revelação da verdade segundo FHC, o evangelho da nossa pós-modernidade, que não aceita crítica. Ai dos hereges e neobobos que ousarem desafiar a sacrossanta verdade. Merecerão o anátema universal e maciço dos bem-pensantes e bem-pagos apologetas e fariseus da verdade na mídia brasileira e universal.

O PT, melancolicamente, assumiu a pregação de FHC. Se não há alternativa a esse nosso capitalismo meia-boca, continuemos com ele. Continuemos sendo um país meia-boca, o aluno bem-comportado do FMI, que preguiçosamente faz sua lição de casa, o joão-ninguém que senta no fundão da classe e não aparece, mas também não incomoda. Assim tem agido o governo Lula. O Lula de 2002 equivale historicamente ao FHC de 1994. O que se esperava de FHC em 1994? Um governo social-democrata, tal como está expresso no nome/logotipo de seu partido. Um governo de esquerda “moderno”, atualizado historicamente, pautado pelo respeito ao mercado e colorido por alguma preocupação social e ética (tivemos ACM e Gustavo Franco).

O que se dizia de FHC em 1994 é o que Lula projeta em 2002. O PT é o verdadeiro partido da social-democracia brasileira, senão na nomenclatura, pelo menos na prática. E na conjuntura histórica. O Brasil de 2003 finalmente alcança a Europa do início do século XX, quando os partidos social-democratas começaram a ter participação nos governos. O que é a social-democracia no governo? É a esperança de não ter que fazer a revolução para atender os interesses dos trabalhadores. É essa a esperança de que falava a campanha de Lula. A esperança que agora ficou com medo de ter que governar.

Lula, em campanha, projetava a imagem adequada a essa social-democracia verde-amarela (uma imagem que me é penoso criticar por força da simpatia pessoal que irradia, na minha condição de migrante pernambucano e corintiano como ele). A imagem do líder sindical negociador e conciliador. A imagem de um Nelson Mandela brasileiro, de um Gandhi brasileiro. Um homem da paz e do diálogo. Alguém que conseguirá conciliar os interesses do capital e do trabalho no Brasil. A imagem ideal a ser mercantilizada pelos estrategistas do núcleo de direção do PT, Dirceu, Genoíno e Cia.. O produto pronto e acabado, íntegro, honesto, heróico, simpático, à espera do vendedor ladino e espertalhão.

Ignorando a lição de FHC (e de muitos outros pensadores infinitamente mais competentes e originais), o PT ignora que a burguesia brasileira odeia o país, não tem projeto para o capitalismo nacional e está se lixando para o povo. A falta de projeto nacional não lhe assusta e não lhe incomoda. Essa burguesia nacional aceita tudo no governo, até o PT, desde que não tenha que fazer concessões verdadeiras ao povo.

A burguesia brasileira ainda não rompeu seu cordão umbilical com a oligarquia rural reacionária que a pariu. A classe dirigente brasileira, mesmo a burguesia urbana, ainda pensa como os coronéis da época do café-com-leite. Não aceita, como dissemos, a menor concessão aos interesses do povo. Não aceita, por exemplo, uma reforma agrária verdadeira. O MST, que não transigiu como o PT, tem um projeto para o país, ou pelo menos sinaliza uma alternativa, um projeto voltado para os verdadeiros interesses brasileiros.

Mas a burguesia e a mídia que apoiaram o PT não suportam o MST. Tudo menos o povo ditando de verdade a agenda nacional. Os bem-pensantes e bem-pagos lacaios e arautos da mídia apelam para a mistificação mais grosseira. Jogam sujo para associar a imagem do MST com o medo mesquinho que a massa pequeno-burguesa inculta das grandes cidades sente de ter sua propriedade roubada. O MST está contra a propriedade, logo, deve ser exorcizado. Os bem-pensantes e bem-pagos áulicos e sátrapas da corte cobram do PT a fatura da responsabilidade e confiabilidade que tentou vender ao ingressar no jogo eleitoral burguês. Que reprima o MST, pelo bem da tradição, da família e da propriedade.

E o governo segue então com sua agenda errática, tentando conciliar esses interesses divergentes. Alguém disse que era preciso reformar a previdência, então vamos reformá-la. Com rolo compressor (e fisiologia) no Congresso, se assim for preciso. Não importa aqui entrar no mérito de qual tipo de previdência é necessário para o país. Importa perguntar porque é necessário, em primeiro lugar e antes de qualquer outra ação, reformar a previdência. Alguém disse, que era preciso. Mas quem? Qual voz soprada ao vento, idéia que cai de pára-quedas, mosca que pousa na sopa? Quem passou a cola? Não importa. Nós aqui, no fundão, queremos agradar. É o que querem os bedéis do mercado, então o faremos. Depois da previdência, a reforma tributária, a reforma política, autonomia do BC, ALCA, privatização da educação, da saúde, dos serviços essenciais, destruição da CLT, desmonte do Estado, cessão da Amazônia, etc.. Tudo para nos encaixarmos no figurino. Essa agenda alienígena e artificial esconde aqui a ausência de projeto e de visão, insistimos nessa tecla.

A fraude teórica da social-democracia (a impossibilidade de atender os interesses dos trabalhadores dentro do regime do capital) esconde o segredo da inapetência e imobilidade práticas do PT (a incapacidade de colocar em prática uma agenda verdadeiramente voltada para os trabalhadores) e projeta para o futuro próximo a sombria tragédia de vermos abortado o futuro do país (a ser em breve anexado pela ALCA). Pois a social-democracia, na própria Europa, vivencia seu ocaso, transformando-se, como o PT, no seu oposto.

A social-democracia européia põe em prática o desmonte do Estado do bem-estar social, a única conquista da classe trabalhadora européia que justificava a existência histórica da própria social-democracia como força política. É nessa barca furada que o PT está entrando. Para estar “up-to-date”, o PT tem que acompanhar os social-democratas do velho continente, fazendo tábua rasa do Estado de bem-estar que nem chegou a existir no Brasil. A previdência e os direitos trabalhistas formais, que nem chegaram a abraçar toda a população do país, quando muito a metade, serão asfixiados antes mesmo de nascer de fato. Para isso é preciso “reformar a previdência”, apagando da história o século XX e colocando o Brasil direto na barbárie capitalista/imperialista/globalizada do século XXI.

Se insistimos ao longo de todo o texto que o erro do PT está em acreditar que não há alternativa, é porque acreditamos, por nossa vez, que há alternativa. A alternativa, é claro, não é a minha alternativa, mas uma que seja construída com a soma de todas as contribuições A minha insignificante, inclusive. Eu insistiria em lembrar que a única prática política coerente com os interesses dos trabalhadores, dentro de um regime capitalista, é a redução da jornada de trabalho. Essa prática vai direto ao centro da oposição entre capital e trabalho, que é a luta pelo controle da mais-valia social. A redução da jornada de trabalho, sem redução do salário, significa na verdade a ampliação da participação do trabalhador na distribuição do produto do trabalho social, à custa da diminuição daquela da burguesia.

A ampliação da participação do trabalho na renda é a maneira de aumentar a porção da população consumidora participante do mercado. A maneira de criar um mercado consumidor de massa dentro do país. Um mercado consumidor interno que poderia revitalizar o capitalismo nacional e dar algum sopro de vida para as frações progressistas e esclarecidas da burguesia nacional. Dentro dessa lógica, a atual reforma da previdência produz o efeito contrário, pois obriga o trabalhador a produzir por mais tempo para assegurar a aposentadoria. A tentativa do capital de privatizar a previdência, em todo o mundo, é uma tentativa de reverter as conquistas históricas dos trabalhadores, ampliando o seu tempo de trabalho e dissolvendo as redes de proteção social.

O PT está se submetendo a isso, ao invés de, como dissemos, optar pela alternativa oposta. A possibilidade de criar um mercado de massas interno, desprezada pelo PT, é o que poderia recolocar o Brasil no controle de seu destino histórico. Condição em que estão os chamados países-baleia, como Índia e China. Condição que lhes permite negociar em termos menos desfavoráveis com as grandes potências imperialistas/globalizadas na grande farsa da OMC. Tirar vantagem do nosso grande mercado consumidor interno é a maneira de nos tornar atraentes e viáveis para o capital internacional. De ditar os termos pelos quais o capital pode se associar ao país. E de dizer qual é o tipo de capital que nos interessa ter no Brasil. Como fazem, repetimos, a Índia e a China.

Mas os neosábios do economicismo tupiniquim preferem imitar o México, atrair “maquiladoras” e nos transformar em plataforma de exportação com mão-de-obra barata e direitos sociais precarizados. Que venha a ALCA. Sejamos o 51o. Estado da América, como diz o refrão de uma velha canção punk. Triste fim para o ex-país do futuro, miséria da suprema falta de imaginação, tragédia de uma geração perdida de militantes e lutadores. Isso é claro se aceitarmos esse quadro. Há quem não aceite. O MST, citado acima como sinalização de uma alternativa ao modelo, não aceita.

O MST traz a alternativa da agricultura familiar em pequenas propriedades coletivistas, orgânica e ecologicamente sustentável. A antítese da agricultura transgênica de exportação que se quer implantar, agricultura dependente de sementes e agrotóxicos de multinacionais. Com sua monomaníaca veneração pelo mercado externo, os bem-pagos e bem-pensantes corifeus e efebos da respeitabilidade burguesa querem esconder a vergonha que sentem por viver em um país que, como uma república de bananas, ainda não fez sua reforma agrária. Um país que ainda tem conflitos por terras. Essa imagem é por demais vergonhosa para seus egos colonizados de economistas globalizados e “up-to-date” com as modas de Harvard e Princeton. O que se quer é passar por cima da história, da existência de uma massa de sem-terra no campo e chegar direto ao supra-sumo da modernidade, que é a tal agricultura de exportação.

Mas será que é esse o supra-sumo da modernidade? O que o MST tem a oferecer como resposta? A agricultura do MST mata vários coelhos com uma paulada. Estanca o êxodo rural, fixa o trabalhador no campo, cria empregos, esvazia as periferias das grandes cidades, esvazia os celeiros do crime, esfria a fervura da violência urbana, cria e distribui renda, cria e descentraliza mercados, demanda redes de distribuição e infra-estrutura, demanda organização de cadeias regionais e cooperativas de distribuição, produz uma consciência social e auto-gestionária da produção econômica, cria um diferencial para a produção agrícola brasileira que é a produção orgânica, cria uma consciência ecológica dos produtores, cria uma exploração sustentável dos recursos naturais, organiza as comunidades produtoras e exclui os atravessadores, eleva a auto-estima do povo brasileiro, nos torna o centro de uma novidade mundial em termos de renovação social, com reflexos na cultura, no turismo e na diplomacia.

São esses os resultados a médio e longo prazo que se podem esperar de uma reforma agrária maciça. É essa alternativa que o MST representa e que tanto incomoda os procônsules e nefelibatas. Os economistas de terno de grife e gel no cabelo sintonizados com as exigências do mercado internacional. Porta-vozes do capitalismo selvagem dos especuladores e bolsas de valores fictícios. A velha economia do petróleo e dos combustíveis fósseis não durará mais do que algumas décadas. Em seu lugar, deve surgir uma produção de energia limpa, do álcool, da biomassa, das hidrelétricas, vantagens competitivas que o Brasil possui e que é preciso subtrair aos brasileiros, aqueles néscios e indolentes caipiras macunaímicos.

O fetichismo da pseudo-modernidade economicista esconde da opinião pública brasileira que o futuro da economia mundial está na biodiversidade, nos remédios naturais, na produção de energia limpa, nas reservas de água-doce, todos esses patrimônios do Brasil localizados na Amazônia. Enquanto isso, à sorrelfa, privatizam e pirateiam a Amazônia, massacram comunidades indígenas e trabalhadores rurais, destroem a floresta para implantar monoculturas de soja e pecuária de gado, econômica e ecologicamente insustentáveis a longo prazo. A alternativa a isso, para proteger a Amazônia, o Pantanal, o que resta do cerrado, é entregá-lo aos brasileiros, ou seja, ao povo, aos sem-terra, aos produtores organizados.

Para isso, é preciso quebrar alguns ovos. Os latifundiários, grileiros de terras, proprietários especuladores e parasitas, multinacionais dos transgênicos e agrotóxicos, preconceitos da mídia e da classe dirigente, são alguns dos obstáculos a serem enfrentados. Uma possibilidade de futuro para o país é o que se tem a ganhar. Possibilidade que o atual governo não enxerga. Por enquanto, o PT derrapa.

Daniel M. Delfino

30/07/2003


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