1.5.07

70 anos da USP – Parte 1




HISTÓRIA

2004 é um ano em que se celebram muitas datas redondas, algumas das quais já devidamente abordadas pelo Duplipensar: 450 anos da fundação de São Paulo; 40 anos do golpe de 64; 30 anos da Revolução dos Cravos; 20 anos das Diretas Já. Na qualidade de aluno da USP, resta a este escriba a tarefa de tratar de outra data redonda: os 70 anos da Universidade de São Paulo.

Os demais assuntos, em função de sua amplitude, tiveram razoável repercussão em outras mídias de alcance nacional. O aniversário da USP teve uma ressonância quase que puramente paulista, ou mesmo paulistana. Por enquanto, as abordagens mais consistentes limitaram-se aos dois principais jornais da cidade. A “Folha de São Paulo” e o “Estado de São Paulo” publicaram cadernos especiais para celebrar a efeméride uspiana, respectivamente nos dias 23 e 25 de janeiro de 2004. Esses cadernos são a principal fonte de informações para este comentário, especialmente nas partes 1 e 2.

Nesta parte 1, tratamos da história da Universidade de São Paulo. Na parte 2, a ênfase está no paradoxo uspiano, o problema de termos uma Universidade pública freqüentada pela elite. Na parte 3, tratamos da atual crise do modelo de Universidade pública. Na parte 4, tentamos conceituar um certo pensamento típico uspiano, representativo dos dilemas do pensamento brasileiro e da auto-imagem nacional. Na parte 5 e apêndice, tratamos da vivência particular deste escriba como aluno do curso de filosofia.
Comecemos portanto pela história.

1.1Datas:

1934 – Decreto de fundação da Universidade, em 25 de Janeiro de 1934 (celebração do 380o. aniversário da fundação da cidade). Cria-se a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), à qual se agregam as já existentes Escola Politécnica, Faculdade de Medicina, Faculdade de Direito, Faculdade de Farmácia e Odontologia, Escola de Medicina Veterinária, Escola Superior Luiz de Queiroz (Agronomia) e Instituto de Educação.
1935 – Aula inaugural no dia 11 de março.
1937 – Forma-se a primeira turma de Filosofia, cujo paraninfo é Julio de Mesquita Filho.
1944 – Começa a construção da Cidade Universitária, na distante região do Butantã.
1949 – Faculdade de Filosofia muda-se para a rua Maria Antônia.
1959 – Mais de 7 mil estudantes se inscrevem para o vestibular e só 2 mil são chamados. Há sobra de vagas e a justificativa é o “desnível entre o curso secundário e o superior”
1962 – A partir deste ano até 1970 as unidades começam a se mudar para a Cidade Universitária. A mudança mais dramática será a da FFCL, em 1968, que passará a ser FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas)
1964 – Golpe militar derruba o Presidente João Goulart e instala governos ditatoriais que se seguiriam até 1984.
1967 – Polícia invade o Conjunto Residencial da USP (CRUSP), para expulsar estudantes clandestinos.
1968 – Professor Euryclides Zerbini realiza um transplante de coração pioneiro na América Latina.
1968 – Junho – Protesto de mais de mil estudantes contra a reforma universitária preconizada pelo convênio MEC-USAID.
1968 – Outubro – Confronto entre alunos da Faculdade de Filosofia e da Faculdade Mackenzie, com a morte do militante secundarista José Carlos Guimarães pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas) determina a mudança da unidade uspiana para a Cidade Universitária.
1969 – Abril – Professores são cassados pelo AI – 5 e aposentados sem direito a indenização ou remuneração. Entre eles, FHC, Paul Singer e Vilanova Artigas.
1969 – Julho – Reforma universitária transforma as unidades em institutos. Deixam de existir disciplinas semelhantes em vários cursos. Acabam as cátedras, organiza-se a carreira docente universitária.
1970 – Vestibular passa a ser classificatório. Todas as vagas oferecidas tem que ser preenchidas, independentemente da nota do candidato.
1972 – Escola Politécnica constrói o primeiro computador brasileiro, chamado de Patinho Feio.
1975 – É criado o CEPEUSP (Centro de Práticas Esportivas da USP).
1976 – É constituída a FUVEST, que fica responsável pelo vestibular. Redação torna-se obrigatória para todos os cursos.
1979 – Professores cassados são convidados a voltar.
1988 – Maior greve de professores da história dura 52 dias e fica marcada por conflitos.
1989 – Autonomia universitária: orçamento passa a representar 5,02% da arrecadação do ICMS.
1994 – 50% dos doutores do país são formados na USP.
1999 – Calouro da Faculdade de Medicina é encontrado morto na piscina o clube dos alunos, o que leva à proibição dos trotes.
2000 – Greve conjunta da USP, Unesp e Unicamp iguala a marca de 52 dias.*
2002 – Greve dos alunos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFLCH), movida pela falta de professores, dura 102 dias.
2003 – É anunciado o projeto de estender a USP para a Zona Leste de São Paulo.

Fonte: “Estado de São Paulo”, 25/01/2004 pp U3

1.2 Comentários

A USP foi fundada de acordo com o tradicional método brasileiro da improvisação. Muda-se o nome de uma coisa já existente para com isso dar a impressão de estar criando uma coisa nova. Incapaz de criar “ex nihilo” uma universidade completa, o governo do Estado lança mão de um decreto que unifica diversas faculdades já existentes sob o nome de Universidade de São Paulo. A centenária Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e a pioneira ESALQ (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz), em Piracicaba, estão entre as ilustres fundadoras da USP. O que existe de novo na USP é a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que se instalaria na rua Maria Antonia, no centro de São Paulo. A USP começa portanto como um conjunto de campus dispersos pela capital e interior.

A Universidade é oficialmente fundada em 25/01/1934, mas a primeira aula só acontece em 11/03/1935. Durante um ano, tivemos uma Universidade virtual, só no papel. Mas não importa. A Universidade estava lá, criada, e seus criadores podiam fazer propaganda dela. É assim que se faz as coisas no Brasil: primeiro a fachada, depois os fundamentos. Derrotada em 1932, a oligarquia paulista precisava de um projeto que pudesse lhe devolver a primazia nacional, e a criação da Universidade era um expediente conveniente. A USP foi um dos instrumentos da modernização conservadora do Brasil.

Na época, o Estado de São Paulo era governado pelo interventor nomeado por Getúlio Vargas, Armando Salles de Oliveira. Ao lado de Julio de Mesquita Filho, então diretor do jornal o “Estado de São Paulo”, foi o principal responsável pela criação da Universidade. Segundo Oliveiros S. Ferreira, os fundadores da USP “...não eram oligarcas. Eram homens iluminados, de um Brasil diferente” (Estado de São Paulo, 25/01/2004, pp U10). Esse modo de ver a situação é natural do ponto de vista bastante “isento” de alguém que foi funcionário do próprio Estadão e hoje é professor da própria USP e também da PUC.

Preferimos acreditar que a Universidade era a ponta de lança de um projeto elitista de recolocar São Paulo na liderança no cenário nacional. Eis o que diz a respeito o próprio Julio de Mesquita, na “Oração aos formandos da 1a. Turma de Filosofia da FFCL”, em 1937: “...o Brasil nada mais é do que um problema posto pelas Bandeiras; e, ou nós paulistas de hoje e de amanhã o resolveremos ou teremos irremediavelmente falhado na missão que nos legaram nossos antepassados” (citado em Estado de São Paulo, 25/01/2004, pp U5).

Os criadores da USP queriam com isso criar os quadros técnicos e intelectuais capazes de alavancar o imperialismo paulista sobre as demais regiões selvagens do país. Como subsistema do imperialismo mundial, o Brasil também tinha sua metrópole (São Paulo) e suas colônias (demais Estados). O Brasil da década de 1930 era uma semicolônia rural de “plantation”. Um exportador de café. No curto espaço de 5 décadas nos tornaríamos uma das principais economias do mundo industrializado, feito que em boa parte pode ser creditado ao empenho dos estadistas da década de 1930, que nos legaram coisas como a USP e a Petrobrás.

Os oligarcas de São Paulo eram ainda oligarcas, embora tivessem uma visão um pouco mais arejada que a dos coronéis esclerosados do interior. Não por acaso, São Paulo, e não o Rio, então Capital Federal, sediou uma Semana de Arte Moderna em 1922. A oligarquia paulista era conservadora, mas era modernizadora. Ou em outras palavras, trabalhou pela modernização do país, embora ainda uma modernização conservadora. Obviamente, a contradição desse projeto viria à tona na Universidade. A USP acabou escapando do plano traçado por seus criadores. Desde o início, o trabalho de estruturação feito pelos professores trazidos do exterior impediu que a USP se tornasse instrumento dócil dos interesses imediatos do grupo fundador.

Nas primeiras décadas, a USP formava principalmente professores para o ensino secundário. Posteriormente, passou a formar mestres e doutores, que são a espinha dorsal do ensino superior no Brasil. A USP é a matriz; as demais faculdades públicas e privadas são as filiais. Sob certos aspectos, os fundadores conseguiram portanto seu intento. O que é até bastante natural, dado o fato de São Paulo ser a locomotiva econômica do país. 11 ex-alunos da USP se tornaram Presidentes da República, 9 dos quais oriundos da Faculdade de Direito (Estado de são Paulo, 25/01/2004 pp U7).

O que os fundadores não contavam era com o fato de que os intelectuais ali formados, especialmente na área de Ciências Humanas, estariam na ponta das lutas democráticas do país. Basta lembrar de Florestan Fernandes, Antônio Cândido, Chico de Oliveira, Milton Santos, Marilena Chauí, e tantos outros. Do ponto de vista da ditadura de 1964, a FFLCH era um ninho de comunistas, com seus estudantes radicalizados de Filosofia e Ciências Sociais. Sob esse aspecto, portanto, o tiro dos fundadores saiu pela culatra. Queriam um pensamento elitista e autoritário; tiveram uma reflexão criativa e democrática, que transbordou da pesquisa acadêmica para a participação pública.

É claro que sempre há os pelegos que fazem questão de seguir o programa, como FHC, com sua Teoria da Dependência anti-nacionalista e José Artur Gianoti com sua filosofia de notas de rodapé. Não é fácil discernir qual o aspecto prevalecente, o elitista-autoritário ou o democrático-participativo. A USP é de fato uma contradição institucionalizada. A História da USP é uma História do Brasil no século XX; a história do seu pensamento é um pouco a história da auto-imagem nacional. O objetivo deste especial “70 anos de USP” é levantar os diversos aspectos dessa contradição. No primeiro momento, apenas lançamos a questão. Nas partes seguintes, desdobrá-la-emos mais a fundo.

Voltemos à História. Para ministrar os primeiros cursos na FFCL, são contratados professores estrangeiros, a maioria franceses. Desse conjunto de professores, a maioria também ainda jovens, alguns se tornariam mundialmente célebres, como Claude Levi-Strauss, Roger Bastide, Fernand Braudel. Nesse primeiro momento, as aulas eram dadas em francês, italiano, alemão, conforme fosse a língua do professor visitante. Isso por si só já expressa o caráter excludente e elitista da Universidade, desde seus primórdios. Para uma população ainda maciçamente rural e analfabeta, num país precariamente urbanizado, com um ensino médio esparsamente disseminado, o domínio de línguas estrangeiras era um indicador de diferenciação social radical.

Em outras palavras, a USP foi feita para os ricos, desde o começo. O ingresso na faculdade era determinado pelos méritos individuais, mais do que por uma disputa. Em alguns cursos, a seleção era feita por meio de entrevista. Não importava o número de vagas, apenas a competência do candidato. As primeiras turmas eram exíguas, pois poucos preenchiam os requisitos de excelência. Com relação a esse estágio inicial, a expansão havida a partir dos anos 1960 foi uma verdadeira massificação. A situação se inverteu: as vagas tinham que ser preenchidas, não importando o nível dos candidatos. Começou a haver competição por vagas. O país crescia e o ensino superior passava a ser o diferencial dos vencedores dessa corrida.

O projeto inicial dos fundadores perdeu-se, conforme a criatura escapou de seus criadores. A USP beneficiou-se da influência das missões estrangeiras, por afastar-se da polêmica político-partidária e focalizar-se na profissionalização do trabalho científico, que se tornou padrão para o país. O grupo político dos fundadores passou, a USP ficou. A ditadura cassou os elementos mais salientes do pensamento uspiano, mas não marginalizou a Universidade como um todo. O inverso do que aconteceu com a UnB, Universidade de Brasília, criada pr Darcy Ribeiro, a qual foi, esta sim, esmagada pela ditadura, em função de seu projeto radicalmente nacionalista e democrático. Em comparação com a UnB, a USP era careta e antiquada. Uma típica Universidade francesa.

A marca dos franceses fixou-se de forma indelével, notadamente na Faculdade de Filosofia. O que fornece o mote para o título do livro “Um departamento francês de ultramar”, do professor Paulo Arantes, que analisa essa influência sobre a formação dos pensadores brasileiros da área de humanidades. O nome “departamento” é dado para as subdivisões provinciais da administração francesa, o equivalente aos Estados no Brasil; e também é dado para as subdivisões de cada Faculdade, encarregadas de um determinado curso. O Departamento de Filosofia da USP é portanto uma província francesa. No interior dessa província reinaram nome como Jean Maugüê, Gerard Lebrun e Martial Gueroult.

O principal resultado da influência francesa na pesquisa em ciências humanas foi sua profissionalização. Um homem como Florestan Fernandes se definia como um sociólogo no sentido mais estrito e acadêmico. Era um pesquisador no sentido mais rigoroso e científico do termo, apesar de sua intensa participação política. A USP era uma espécie de torre de marfim onde os intelectuais podiam construir livremente seus castelos nas nuvens, dado que para isso a instituição foi criada. Quem quisesse passar das nuvens para a realidade passava a enfrentar oposição política, mas ninguém, saindo da USP deixaria de contar com o respaldo de um título acadêmico respeitado.

Dissemos “era” porque em certo sentido, a fase épica e histórica da USP está encerrada há cerca de vinte anos. Assim como a fase da auto-construção do Brasil. Mas isso é assunto para as partes seguintes.

* A História acontece no momento em que escrevemos. A preparação deste comentário sobre os 70 anos da USP somente foi possível porque este escriba/aluno estava com algum tempo livre, por ter ficado sem aulas. Sem aulas por causa de uma greve. Uma greve conjunta de professores, alunos e funcionários da USP, Unesp e Unicamp, que alcançou a marca de 63 dias, superando portanto as marcas de 1988 e 2000.

Daniel M. Delfino

22/02/2004

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